terça-feira, 1 de setembro de 2015

Pepe Escobar: Bem-vindos às guerras por acordos comerciais

28/5/2015, Pepe Escobar, Asia Times Online





Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu


BANGKOK — A China continua a crescer nada desprezíveis 7%. Mesmo assim, por causa da desvalorização do yuan e de uma queda abrupta no mercado de ações, em muitas capitais a narrativa circulante é de que um Armagedon ter-se-ia abatido sobre o modelo econômico que ao longo dos anos gerou crescimento que sextuplicou o PIB da China.

Poucos sabem que Pequim, simultaneamente, está engajada numa tarefa titânica: mudar seu vetor de crescimento, das exportações para investimento massivo em serviços; enfrentar o papel negativo ou só de autossatisfação das empresas estatais; e desinflar pelo menos três bolhas – da dívida, da especulação imobiliária e do mercado de ações –, no contexto de uma virtual estagnação econômica global.

Tudo isso, enquanto praticamente não há qualquer cobertura na mídia ocidental, sobre o impulso puxado pela China rumo à integração do comércio eurasiano, que ajudará eventualmente a consolidar o Império do Meio como a maior economia do planeta.


O que nos leva a uma subtrama crucial no Grande Quadro: o Sudeste da Ásia.

Daqui a quatro meses, a Associação de Nações do Sudeste Asiático, ANSA [ing. Association of Southeast Asian Nations (ASEAN)], de dez membros, estará integrada, via a Comunidade Econômica da ANSA, CEANSA [ing. ASEAN Economic Community (AEC)].

A Comunidade Econômica da Associação de Nações do Sudeste Asiático não é pouca coisa. Estamos falando da integração econômica de um mercado combinado de 620 milhões de pessoas, e PIB coletivo de $2,5 trilhões.

Claro, ainda é uma ANSA dividida. Em termos gerais, os países do interior do continente do Sudeste da Ásia são mais próximos da China; a franja marítima do mesmo Sudeste da Ásia é mais confrontacional – dentre outros motivos porque os EUA só fazem insuflar o confronto. Vai demorar até que haja um código de conduta baseado em regras para o Mar do Sul da China, assinado por todos os participantes.

Mesmo assim, ainda que haja contraste visível entre a área continental e a área marítima do Sudeste da Ásia, e a integração das duas áreas possa conter mais retórica que fatos – pelo menos no curto prazo –, Pequim não parece estar preocupada com o grande jogo. Afinal de contas, a China é inextrincavelmente conectada ao sudeste asiático continental.

Considerem Cambodia, Laos, Myanmar e Tailândia. É mercado coletivo de 150 milhões de pessoas e PIB de mais de $500 bilhões. Inclua esses quatro no contexto da sub-região do Grande Mekong, que inclui as províncias de Guangxi e Yunnan do sul da China, e tem-se mercado de 350 milhões de pessoas e PIB de mais de $1 trilhão. A conclusão, como Pequim vê as coisas, é inevitável: o Sudeste Asiático é o quintal do sul da China.

TPP versus PERA

A Parceria Trans-Pacífico [ing. Trans-Pacific Partnership (TPP)] comandada pelos EUA é amplamente considerada, em inúmeras latitudes da ANSA, como componente chave da 'pivotagem para Ásia'.

Se a ANSA já é dividida, a TPP só acentua a divisão. Só quatro países da ANSA – Brunei, Malásia, Cingapura e Vietnã – estão envolvidos em negociações dos acordos da [parceria] TPP. Os outros seis países preferem a Parceria Econômica Regional Ampla, PERA [ing. Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP)].

A PERA é ideia ambiciosa que aspira a converter-se maior acordo de livre comércio do mundo; 46% da população da Terra, com PIB conjunto de $17 trilhões e 40% do comércio mundial. A parceria PERA inclui 10 nações da ANSA plus China, Japão, Coreia do Sul, Índia, Austrália e Nova Zelândia. Diferente da [parceria] TPP, liderada pelos EUA, a [parceria] PERA é liderada pela China.

Ainda que haja substancial grau de vontade política, será impossível para esses 16 países concluir suas negociações nos próximos quatro meses – para anunciar a constituição da [parceria] PERA simultaneamente ao início da Comunidade Econômica da ANSA, CEANSA. Seria forte estímulo à noção partilhada da "centralidade" da ANSA.

Problemas e mais problemas por todos os lados. Para começar, a grave disputa China-Japão pelas ilhas Diaoyu/Senkaku. E a sempre crescente confusão entre China/Vietnã/Filipinas no Mar do Sul da China. Competição e desconfiança é a norma. Muitas dessas nações veem a Austrália como um cavalo de Troia. Assim sendo, é pouco provável que se alcance algum consenso antes de 2017.

A ideia da Parceria Econômica Regional Ampla, PERA, nasceu em novembro de 2012 numa reunião de cúpula da ANSA no Cambodia. Até hoje já aconteceram nove rodadas de negociações. Curiosamente, a ideia inicial partiu do Japão – de um mecanismo que combinasse a multidão de acordos bilaterais que a ANSA construíra entre seus parceiros. Mas atualmente a China está na liderança.

E como se não bastasse a disputa entre as 'parcerias' TPP e PERA, há também a Área de Livre Comércio do Pacífico Asiático, ALCPA [ing. Free Trade Area of the Asia-Pacific (FTAAP)]. Foi introduzida na reunião da Associação dos Países Exportadores de Petróleo (APEP) em Pequim, ano passado, pela – obviamente – China, para distanciar do ideário da [parceria] TPP as nações cujo principal parceiro comercial é a China.

Joseph Purigannan de Foreign Policy in Focus resumiu bem todo esse frenesi: "Se se conectam todos esses desenvolvimentos de 'mega acordos de livre comércio", o que se vê é na verdade a intensificação do que se pode chamar de guerra por território entre os grandes players.” Quer dizer que, mais uma vez, é guerra China vs. EUA, guerreada por procuração.

A Big Pharma manda

A parceria trans-Atlântico, TPP, é divulgada nos EUA como se visasse a fixar padrões comuns para quase a metade da economia mundial.

Mas essa parceria TPP – negociada sob máximo segredo poderosos lobbies empresariais bem longe de qualquer controle, longe até de qualquer conhecimento, público – é essencialmente a OTAN 'comercial' (e parceira íntima da outra 'parceria' orientada para a UE, a TTIP). A TPP foi desenvolvida como braço econômico/comercial do 'pivoteamento para a Ásia' – com dois sonhos ardentes embutidos: excluir a China e diluir a influência do Japão. E, sobretudo, a TPP visa a impedir que grande parte da Ásia – e dentro dela, as nações da ANSA – consigam chegar a qualquer acordo que não inclua os EUA.

A reação da China é sutil, não frontal. Pequim está apostando, de fato, em multiplicar os acordos – da Parceria Econômica Regional Ampla, PERA, para a Área de Livre Comércio do Pacífico Asiático, ALCPA. O objetivo final é reduzir a hegemonia do dólar norte-americano (não esqueçamos: a TPP é baseada no dólar).

Mesmo depois de ter assegurado a aprovação no Congresso, mês passado, para uma tramitação rápida que leve a um acordo, o presidente Obama e o todo poderoso lobby comercial pró TPP estão encontrando muita dificuldade para convencer os 12 parceiros – muito desiguais – nessa 'parceria' TPP].

Para a futura geração de drogas biológicas, por exemplo, a 'parceria' TPP privilegia abertamente as gigantes da indústria farmacêutica, "Big Pharma", como a Pfizer, e a Takeda do Japão. A TPP opõe-se a empresas de propriedade estatal – muito importantes em economias como Cingapura, Malásia e Vietnã –, em benefício de concorrentes estrangeiras, na disputa por contratos com os governos desses países.

TPP quer pôr fim ao tratamento preferencial que a Malásia garante a malaios étnicos no business, moradia, educação e contratos com o estado – um dos fundamentos do modelo de desenvolvimento da Malásia.

Sob o pretexto de cortar tarifas sobre tecidos "sensíveis", as grandes corporações têxteis dos EUA, como Unifil, querem impedir o Vietnã de vender roupas baratas, feitas na China, no mercado dos EUA.

E EUA e Japão continuam em séria oposição na agricultura e na indústria automobilística, ainda discutindo, por exemplo, em que ponto um veículo inclui conteúdo local suficiente para qualificar-se à isenção de impostos.

O primeiro-ministro general Prayut Chan-ocha está convencido de que a 'parceria' TPP tanto pode salvar como pode quebrar a Tailândia – com ênfase na parte "quebrar". Foi o que disse a importante grupo de visitantes do Conselho de Comércio EUA-ANSA.

Bangkok está aterrorizada, temendo que aquelas leis sobre patentes de medicamentos – por exemplo, o direito de fabricar medicamentos genéricos – sejam substituídas por leis extremamente restritivas, ditadas pelos suspeitos de sempre: a "Big Pharma".

Um cinturão, uma Rota, um banco

No final, tudo sempre volta à fórmula hoje legendária do presidente Xi Jinping da China, I Tai I Lu (“Um Cinturão, Uma Rota"). Também conhecida como a estratégia da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda, da qual um dos componentes chaves é a exportação de todos os modos de tecnologia chinesa de conectividade para outras nações ANSA.

Começa com o Fundo Rota da Seda, de $40 bilhões, anunciado no final do ano passado. Mas outras vias de investimento para redes de infraestrutura – autoestradas, ferrovias, portos – devem vir através do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, BAII [ing. Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB)].

O BAII portanto pode também ser interpretado como uma extensão do modelo chinês de exportações. A diferença é que, em vez de exportar bens e serviços, a China estará exportando expertise em infraestrutura, além do seu excesso de capacidade doméstica de produção.

Um desses projetos é uma ferrovia da província de Yunnan atravessando Laos e Tailândia até Malásia e Cingapura – com a Indonésia ali bem próxima (onde a China já disputa com o Japão o contrato para construir os primeiros 160 km de ferrovia para trens de alta velocidade entre Jacarta e Bandung). A China construiu nada menos que 17 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade – 55% do total mundial – em apenas 12 anos.

Washington não está exatamente apreciando muito as relações cada vez mais próximas entre Pequim e Bangkok. A China, por sua parte, gostaria que seus laços com a Tailândia servissem como protótipo para o relacionamento com outras nações ANSA.

Daí a pressa que mostram os empresários chineses para investir em outras nações ANSA, usando a Tailândia como sua base regional de investimentos. Trata-se sempre de investir em nações com potencial excelente para tornarem-se bases de produção chinesa.

No futuro imediato, é inevitável a integração econômica nas terras continentais do Sudeste Asiático. É possível que vá de Myanmar ao Vietnã. E logo, por ferrovia, do sul da China, pelo Laos, até o Golfo da Tailândia; e por Myanmar, até o Oceano Índico.

O mercado de trabalho está cada vez mais integrado. Há cinco milhões de pessoas de Myanmar, Cambodia e Laos já trabalhando na Tailândia – a maior parte dos quais legalmente. O comércio de fronteira está crescendo – uma vez que "fronteiras" institucionais pouco significam nas regiões centrais do sudeste da Ásia (como tampouco significam muito entre Afeganistão e Paquistão, por exemplo).

Mas ainda é jogo muito aberto. Tudo aí tem a ver com conectividade. Com cadeias globais de produção. Tem a ver com regras comerciais harmonizadas. Mas quase tudo aí é um jogo de poder de apostas tremendamente altas: para determinar quem – EUA ou China – virá eventualmente a fixar as regras globais para comércio e investimento. *****

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