Notas sobre a guerra em que a Rússia está engajada desde os anos 1990s
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Dias 27-28 de abril, o Ministério da Defesa da Rússia realizou conferência internacional sobre segurança. Participei de um painel que discutiu os "golpes coloridos", também conhecidos como "revoluções coloridas" (mas são golpes de Estado, não são revoluções).
Os analistas tinham 5 minutos para expor, e os discutidores tinham 1 minuto, tempo exíguo demais para apresentar o conceito completo de golpes coloridos na política contemporânea e o impacto deles em geral e na segurança militar do Estado afetado. Assim sendo, apresento minhas ideias numa lista itemizada. Serei breve, porque é possível escrever estudo de vários volumes sobre "revoluções/golpes coloridas/os" e guerras híbridas em geral, e nem assim se poderia dar o tópico por esgotado ou satisfatoriamente coberto.
Tese 1 – O simples fato de os militares estarem aqui reunidos e interessados nesse assunto (representantes de várias dúzias de ministros da Defesa de vários países participam dessa discussão) mostra que "golpes coloridos" não são vistos pelos Estados modernos não como ameaça interna (caso que só interessaria à Polícia e às forças especiais), mas como ameaça externa, com características de agressão militar; assim sendo, a resposta é serviço a ser atribuído aos militares.
Tese 2 – Golpes/revoluções coloridos/as, sendo elementos da moderna guerra híbrida, surgiram porque um confronto direto entre duas potências nucleares tornou-se impossível (por causa da destruição mútua garantida). Estudaram-se e continuam a ser estudados diferentes cenários de uma guerra nuclear limitada ou de conflito militar entre as duas superpotências em que se empreguem só armas não nucleares. Mesmo assim, se o país tem armas atômicas, sempre será possível um conflito em que se usem essas armas, e os gabinetes militares têm de ter planos para essa eventualidade.
Golpes coloridos foram uma resposta a esse beco político sem saída, que emergiu como resultado da formação, tanto dentro de nações civilizadas como no plano da lei internacional, de uma visão pela qual a guerra não é ferramenta admissível para resolver problemas políticos. Assim, os custos políticos e morais contra um Estado que inicie hostilidades, mesmo quando enorme vantagem em força permita vitória rápida com mínimas perdas, tornou-se mais alto que as vantagens materiais e políticas de controlar o território do inimigo. A Blitzkrieg [guerra relâmpago] e, ainda mais, a campanha militar prolongada já não são efetivas, considerados os custos.
Tese 3 – Um golpe colorido não acontece quando a situação esteja madura para mudança de regime (situação clássica, essa sim, de revolução), mas quando há uma força externa interessada em obter o controle sobre o Estado-vítima.
O golpe colorido é impossível sem interferência externa. Quando o mecanismo do golpe colorido é iniciado num país, é que o país está sendo atacado por agressor externo.
De modo geral é sempre fácil identificar esse agressor. Contudo, provar suas intenções agressivas, por óbvias que sejam, é quase sempre impossível no âmbito da lei internacional. O agressor sempre explicará sua interferência nos assuntos internos do Estado-vítima servindo-se de pretextos humanitários, supostos éticos ou relacionados à proteção de direitos humanos. (Gostaria de lembrá-los de que, pelos acordos de Helsinki – que hoje são regras da Organização para Segurança e Cooperação na Europa, OSCE, e da ONU –, a defesa de direitos humanos não pode ser tomada como assunto exclusivamente interno de nenhum Estado.)
Tese 4 – Seja como for, qualquer agressor precisa legitimar suas ações aos olhos da comunidade internacional. Assim sendo, quase sempre, o Estado agressor tenta conseguir um mandado para interferir, ou da ONU ou da OSCE, ou, no mínimo, formar uma coalizão internacional formalizada de vários Estados, para assim mascarar a agressão, exibindo-a como se se tratasse de forçar algum "regime ditatorial" a respeitar normas internacionais.
Tese 5 – Isso limita o tipo de Estado que pode servir-se do mecanismo dos golpes coloridos. O Estado agressor tem de ter mais que vasta superioridade militar sobre o Estado-vítima (essa é condição desejável, mas não é absolutamente necessária). Precisa ter suficiente poder político e diplomático para garantir que sua interferência receba suficiente proteção da lei.
Tese 6 – Como qualquer guerra ou operação militar, o golpe colorido é cuidadosamente planejado e preparado. Usualmente, se desenvolvem vários planos, dependendo do nível de resistência do Estado-vítima.
O cenário ideal envolve capitulação das elites nacionais, ou traição. É a opção mais barata. Nesse caso, todos os recursos do Estado-vítima, inclusive o sistema político e a estrutura administrativa, podem ser imediatamente usados pelo agressor a favor de seus objetivos geopolíticos.
No caso em que as elites nacionais não capitulam, o método é "protestos pacíficos de rua". A elite que resista é forçada a ceder o poder a setores mais maleáveis sob a pressão dos protestos de rua. Essencialmente, temo de escolher entre a capitulação voluntária e uma tentativa para reprimir os protestos, com risco de mortes "acidentais", que garantem o pretexto para que o regime seja declarado "repressor e ditatorial", acusado de "brutalidade policial" e para que se declare que o regime "perdeu legitimidade".
Se esse tipo de pressão pacífica não funciona, no prazo de semanas ou meses (dependendo da situação e da resiliência do regime no Estado-vítima), avança-se para o levante armado. Nesse caso, o regime-vítima é forçado a escolher entre capitulação e mortes inevitáveis num confronto militar, que podem ir de dúzias a centenas.
Além de incitar os "protestos pacíficos" ou o levante militar, o Estado agressor organiza o isolamento político e diplomático do Estado-vítima.
Se o levante militar na capital não acontece ou se não resulta em mudança de regime, o cenário seguinte é guerra civil. Nesse caso, o Estado-agressor declara ilegítimo o governo, reconhece a 'oposição' e assegura a ela apoio político, diplomático, financeiro e, afinal, militar.
Por fim, se a guerra civil resulta em impasse, ou se a 'oposição' está em desvantagem, é possível uma agressão direta (sob o pretexto de intervenção humanitária). A versão mais branda dessa agressão é a criação de zonas aéreas de exclusão e fornecimento massivo de armas, inclusive armamento pesado, aos rebeldes. A versão mais dura envolve invasão direta de tropas estrangeiras, quase sempre travestidas como 'voluntários' ou executada por forças especiais.
Tese 7 – Como se vê, apesar do caráter ostensivamente pacífico e informacional do golpe colorido, o sucesso é assegurado pela presença, por trás de diplomatas e jornalistas, de uma força militar, que, se necessário, pode suprimir a resistência da elite nacional, mesmo que essa elite decida lutar até o fim.
Essa variante foi usada no Iraque, na Sérvia e na Líbia. Até o presente, só falhou na Síria.
Mas na Síria havia um importante novo componente: os recursos, inclusive militares, de outra superpotência que se engajou naquela guerra em apoio ao governo legítimo.
Assim, a situação na Síria mudou: de golpe colorido, para confrontação direta de duas superpotências – como aconteceu na Guerra da Coreia e na Guerra do Vietnã.
Assim se eliminou no caso da Síria a exigência sine qua non de todo e qualquer golpe colorido: a vantagem política, diplomática, econômica, financeira e militar absoluta de que o Estado agressor goza sobre o Estado-vítima. O que nos leva à tese seguinte.
Tese 8 – Golpes coloridos não podem ser detidos nem por consolidação da elite nacional (ela simplesmente passará ao cenário seguinte), nem pela prontidão de seus militares para a luta (estarão exauridos), nem por trabalho efetivo da mídia-empresa nacional (estarão já sob domínio das superiores capacidades tecnológicas do agressor).
A prontidão do Estado-vítima para resistir é condição necessária mas não suficiente para bloquear os mecanismos do golpe colorido.
Só se as autoridades legítimas do Estado-vítima receberem apoio de outra superpotência capaz de confrontar o Estado agressor com força equivalente e opositiva, é possível deter um golpe colorido.
Por fim, Tese 9 e conclusão – Hoje os golpes coloridos são operações locais dentro da confrontação global entre as superpotência. Assim como as guerras da Coreia, do Vietnã e outras guerras dos anos 1950s-90s foram quase sempre apenas guerras por procuração entre URSS e EUA combatidas em território alheio. Os modernos golpes coloridos – que são uma das modalidades da guerra híbrida, também são elementos do confronto entre Rússia e EUA.
O golpe colorido, portanto, é guerra. É uma nova modalidade de guerra. Não a guerra como continuação da política por outros meios (na expressão de von Clausewitz), mas tecnologia de golpe colorido como uma extensão da guerra por outros meios.
Os russos nos engajamos nessa guerra 'ampla' que está em curso, antes de nos darmos conta de que estávamos entrando em guerra. E como tantas vezes acontece com a Rússia, começamos com derrotas nos anos 1990s. Mas então retomamos a capacidade de pensar, aprendemos a combater e nos últimos dois anos, afinal, estamos combatendo com sucesso.*****
Olá Dario, nunca deixe de postar essas reportagens. São maravilhosas. Imagina se 30% da população brasileira lessem seu artigos?
ResponderExcluirAbracos
Olá Dario, nunca deixe de postar essas reportagens. São maravilhosas. Imagina se 30% da população brasileira lessem seu artigos?
ResponderExcluirAbracos
E é exatamente isso que ocorre hoje no Brasil.
ResponderExcluirMatéria analítica de excelente nível. Continue assim. Seu blog tem este diferencial que o destaca dos demais.
ResponderExcluirO próprio debacle da União Soviética entre o final dos anos 80 e inicio dos anos 90 pode ser considerado uma situação de Guerra Hibrida, junto com o esfacelamento da Iugoslávia e a situação que levou ao massacre da Praça Celestial, na China?
ResponderExcluirExcelente síntese, adequada ao Brasil da atualidade, e que nos permite concluir que antes de chegar a metade destas etapas o Brasil estará de joelhos frente ao império do caos e, nem para salvar os BRICS acredito que uma Rússia interviria aqui.
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