terça-feira, 1 de novembro de 2016

O direito universal à renda do capital

31/10/2016, Yanis Varoufakis, Atenas, Project Syndicate














O direito à preguiça tem sido tradicionalmente exclusividade dos proprietários ricos, com os pobres obrigados a lutar por salários e condições de trabalho decentes, contra o desemprego, por seguro por incapacidade, por assistência universal à saúde e outros itens indispensáveis a qualquer vida digna. A ideia de que os pobres devem ter garantida uma renda não condicionada suficiente para viver tem sido anátema não só para os ricos e poderosos mas, também, para o movimento trabalhista, que abraçou uma ética que gira em torno de reciprocidades, solidariedades e contribuição para a sociedade.

Quando se propuseram esquemas de renda básica não condicionada, há anos, aqueles modelos enfrentaram reações furibundas de organizações de empregadores, sindicatos, economistas e políticos. Mais recentemente porém, a ideia ressuscitou, dessa vez com considerável apoio da esquerda radical, do movimento Verde e, até, da direita libertarista. Causa disso é o surgimento de máquinas que, pela primeira vez desde o início da industrialização, ameaçam destruir mais empregos do que a inovação tecnológica cria – e está puxando o tapete sobre o qual os colarinhos-brancos descansavam os pés.

Mas, assim como vai ressurgindo a ideia de uma renda básica universal, assim também volta a crescer a resistência contra ela, vinda dos dois lados, da direita e da esquerda. A direita fala da impossibilidade de se levantar renda suficiente para financiar esses esquemas, sem esmagar o setor privado e sem queda na oferta e produtividade da mão de obra, por causa da perda dos incentivos para trabalhar. A esquerda preocupa-se com a ideia de que uma renda mínima universal enfraqueceria a luta para melhorar as condições de vida e trabalho, legitimaria o ócio dos ricos, levaria à erosão dos direitos de negociação coletiva que tanta luta custaram aos trabalhadores (com o evento de empresas como Uber e Deliveroo), abalaria as fundações do estado de bem-estar, encorajaria a cidadania passiva e promoveria o consumismo.

Divulgadores apoiadores daqueles esquemas – tanto à direita como à esquerda – argumentam que a renda básica universal ajudaria os que realmente entregam valor impagável à sociedade, principalmente mulheres no setor da atenção à vida – ou, inclusive, artistas que produzem grandes obras públicas das quais o próximo se beneficia, sem nada receberem por isso. Os pobres seriam libertados das obrigações e exames periciais viciosos do estado de bem-estar, e a rede de segurança que protege os que vivem em pobreza permanente seria substituída por uma plataforma que lhes garanta sustento mínimo, até que obtenham melhor emprego ou melhores condições de vida. Os jovens teriam a chance de testar diferentes carreiras e estudar tópicos que não são considerados lucrativos. Ainda mais importante, na economia do precariato [orig. gig economy], com sindicatos que não param de encolher e vão perdendo a capacidade para proteger trabalhadores, se restauraria a estabilidade que tantos estão perdendo.

A chave para dar um passo adiante é buscar novo ponto de vista para abordar a conexão entre a fonte de financiamento da renda universal básica, o impacto causado pelos robôs e nossa compreensão do que signifique ser livre. Isso implica combinar três proposições: (i) impostos não podem ser fonte legítima para financiar esses esquemas; (ii) deve-se acolher a ascensão das máquinas; e (iii) haver renda básica universal é principal pré-requisito para a liberdade.

A ideia de que você trabalha muito e paga seus impostos, ao mesmo tempo em que eu vivo de sua bondade obrigatória, nada fazendo por decisão minha, não é admissível. Para que uma renda básica universal seja legítima, não pode ser financiada por impostos que se cobram de Jill para pagar Jack. Por isso a renda básica universal não será paga com dinheiro de impostos, mas com rendas do capital. 

Mito conhecido, que os ricos não se cansam de promover, é que a riqueza seria produzida individualmente antes de ser coletivizada pelo Estado, mediante os impostos. 

A verdade é que a riqueza é sempre produzida coletivamente e privatizada pelos que têm poder para fazer isso: a classe proprietária. Solo e sementes, formas pré-modernas de capital, foram coletivamente desenvolvidas por gerações de trabalho dos camponeses, do qual os donos da terra apropriaram-se furtivamente. Hoje, qualquer smartphone inclui componentes desenvolvidos graças a bolsas estatais para pesquisa, ou a partir de ideias surgidas em comunidades de pensamento, sem que a sociedade jamais tenha recebido dividendos por suas criações.

Assim sendo, como se poderia compensar a sociedade? "Com impostos" é a resposta errada. Empresas pagam impostos em troca dos serviços que recebem do estado, não por injeções de capital que gerem dividendos. Há assim um argumento forte a favor de os comuns merecerem uma parte do estoque de capital (ações) e dividendos associados, refletindo o investimento que a sociedade faz no capital das corporações. 

Dado que é impossível calcular o tamanho do capital do estado e da sociedade cristalizado em qualquer empresa (em todas), só mediante um mecanismo político é possível decidir o quanto do estoque de capital de cada empresa deve ser propriedade da sociedade.

Política bem simples seria aprovar lei que exija que uma porcentagem do estoque de capital (ações) de toda e qualquer Oferta Pública Inicial [ing. initial public offering (IPO)] seja canalizada para um Depositório de Capital Comum [ing. Commons Capital Depository], cujos dividendos associados financiarão um dividendo básico universal [ing. universal basic dividend (UBD)]. Esse dividendo básico universal deve e pode ser inteiramente independente do pagamento de benefícios de bem-estar, seguro-desemprego e assim por diante, o que reduziria a preocupação de que venha a substituir o estado de bem-estar, que incorpora o conceito de reciprocidade entre trabalhadores assalariados e desempregados.

Ter medo de máquinas que podem nos libertar da labuta é sintoma de sociedade tímida e dividida. Os luditas estão entre os atores históricos mais mal compreendidos. A vandalização das máquinas pela qual ficaram conhecidos não foi protesto contra a automação, mas contra os arranjos sociais que os privavam da possibilidade de ganhar a vida, diante da inovação tecnológica. Nossas sociedades devem acolher as máquinas, mas assegurar que contribuam para a prosperidade partilhada, assegurando a todos os cidadãos direitos de propriedade sobre todas as máquinas, gerando um dividendo básico universal [ing. universal basic dividend (UBD)].

Uma renda básica universal permite nova compreensão da liberdade e da igualdade que, graças a ela, existirá para blocos políticos antes irreconciliáveis, ao mesmo tempo em que estabiliza a sociedade e revigora a noção de prosperidade partilhada, acolhendo a inovação tecnológica que, sem a renda básica universal, seria fator de desestabilização. Claro que continuará a haver desacordos; mas serão desacordos sobre questões como a proporção das ações de uma empresa que devem ir para o Depositório; sobre quanto de apoio de bem-estar e seguro-desemprego deverá ser pago, além do dividendo básico universal; e sobre o conteúdo dos contratos de trabalho.

Quem mesmo assim ainda não se tenha reconciliado com a ideia de "pagamento por nenhum serviço feito" deve fazer-se algumas perguntas simples: "Quero que meus filhos tenham um pequeno fundo que os proteja do medo da miséria e dê-lhes meios para investir sem medo em seus talentos reais?" E "Será que essa paz de espírito os converteria em preguiçosos degenerados?" Se se reconhecer que esse risco não existe... Qual a base moral para negar a todas as crianças a mesma exata vantagem que quero para os meus filhos? *****

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