sábado, 14 de janeiro de 2017

The Saker: Riscos e oportunidades para 2017 (e considerações sobre EUA na América Latina)

12/1/2017, The Saker, Unz Review The Vineyard of the Saker
















Poucos dias depois de inaugurado 2017 e já se pode dizer com alto grau de garantia, que 2017 será ano histórico. Mais que isso, digo que 2017 será o "Ano de Trump" porque acontecerá, pode-se dizer, uma das seguintes coisas: ou Trump cumprirá plenamente todas as promessas e ameaças de campanha; ou Trump cumprirá parte delas, bem longe de todas elas; ou, finalmente, Trump será neutralizado pelo Congresso controlado pelos neoconservadores, ou será neutralizado pela mídia-empresa ou pela comunidade de inteligência. Também pode sofrer impeachment e pode ser assassinado. Claro, há uma infinidade de subpossibilidades aqui, mas para efeito dessa discussão chamarei à primeira das possibilidades acima, "Trump pesado" [orig. Trump heavy]; à segunda, "Trump leve" [orig. Trump light]; e à terceira "Trump derrubado" [orig. Trump down]. 

Antes de discutir as possíveis implicações dessas três principais possibilidades, temos de pelo menos definir o cenário, considerado o tipo de situação na qual o presidente Trump estará pondo os pés. Discuti alguns desses tópicos na análise que publiquei antes dessa, intitulada "2016: o ano do triunfo da Rússia" (trad. 1/2 e 2/2), e só mencionarei aqui alguns dos resultados do ano passado. São os seguintes:


1.            EUA foram derrotados na guerra contra a Síria. Aqui escolho cuidadosamente as palavras: o que de início tinha muitos aspectos de uma guerra civil quase imediatamente converteu-se em guerra de agressão por uma coalizão muito grande de países sob a liderança dos EUA. Desde a criação dos "Amigos da Síria", para ocultar o apoio dessa coalizão a várias organizações terroristas, até as tentativas de isolar o governo sírio, os EUA rapidamente passaram a controlar a "guerra contra Assad"; por isso hoje "são proprietários" daquela derrota. 

Hoje quem está no pleno comando do futuro da Síria é a Rússia. Primeiro, os russos tentaram trabalhar com os EUA, o que logo se revelou impossível, e os russos concluíram com profundo desgosto que a política exterior dos EUA não é comandada de dentro da Casa Branca ou do Departamento de Estado, mas de dentro do Pentágono. O Pentágono porém fracassou, fracasso completo, abjeto, na Síria e nada conseguiu; e os russos parecem ter chegado assim à interessante conclusão de que doravante podem ignorar os EUA. E viraram-se na direção de turcos e iranianos, para construírem o fim da guerra. 

Esse desenvolvimento é absolutamente sensacional: pela primeira vez desde a 2ª Guerra Mundial, os EUA tornaram-se irrelevantes para o resultado final de um conflito para o qual tanto contribuíram na criação e na perpetuação: tendo concluído que os norte-americanos são "gente incapaz para acordos" (ru. недоговороспособны), os russos sequer tentaram opor-se aos esforços dos EUA: os russos simplesmente os ignorarão. Creio que o caso da Síria será o primeiro e mais dramático, mas no futuro acontecerá do mesmo modo em todos os lugares, especialmente na Ásia. Essa é uma situação que nenhum norte-americano jamais teve de encarar, e é muito difícil prever como Trump se adaptará a essa situação absolutamente nova. Alimento um otimismo cauteloso: como bom empresário e negociador, Trump fará a coisa certa e aceitará a realidade pelo que é e concentrará seus esforços e recursos em apenas umas poucas questões/regiões críticas, em vez de se entregar aos delírios fumados dos neoconservadores e a tal "dominação de pleno espectro" lá deles. Adiante, volto a esse tópico.


2.            Europa em estado de total caos. Como já escrevi várias vezes, em vez de a Ucrânia ter-se tornado "Europa", a Europa é que se tornou "Ucrânia": simplesmente insustentável e condenada ao fracasso. A crise europeia é crise massiva, de vários estratos. É, claro, crise econômica, mas agravada por crise política, a qual, por sua vez carrega um elemento de profunda crise social e, resultado disso, todo o sistema da UE e elites que o governavam enfrentam hoje uma crise fundamental, de legitimidade. 

Quanto aos políticos europeus, consomem mais tempo negando que exista crise, do que enfrentando a crise. Os EUA ao longo de décadas cultivaram atentamente e nutriram uma geração inteira de 'líderes' europeus sem espinha dorsal, de mente estreita, neutralizados desde o berço e infinitamente subservientes; agora, enfrentam o desagradável resultado de só haver políticos europeus absolutamente sem noção de coisa alguma, cegos como gatinhos recém-nascidos, sem visão política e sem visão alguma que os capacitasse a fazer fosse o que fosse: são prisioneiros num modo de sobrevivência de curto prazo caracterizado por visão quase totalmente afunilada que os impede de tomar conhecimento do ambiente no qual operam. Continente que produziu Thatcher, de Gaulle ou Schmidt produz hoje não entidades asininas feito Hollande ou Cameron. Trump pois herdará uma colônia de-facto completamente incapaz de se autoadministrar. E, só para piorar, ao mesmo tempo em que as 'elites'comprador da colônia não têm nem visão nem política, elas também odeiam Donald Trump e apoiam furiosamente seus inimigos neoconservadores. Mais uma vez: nenhum presidente dos EUA jamais enfrentou situação semelhante.


3.            Rússia é agora o país mais poderoso do planeta. Sei, sei, a economia russa é relativamente pequena; a Rússia tem incontáveis problemas; há apenas um ano, Obama descartou a Rússia como "potência regional", e McCain fala do país como "posto de gasolina fantasiado de país". O que posso dizer? Dois imbecis que claramente dizem bobagem, estão errados. E não seriam esses dois a acertar, e a revista Forbes a errar ao declarar Putin o homem mais poderoso do planeta quatro anos consecutivos. E não só por as Forças Armadas da Rússia serem provavelmente as mais poderosas e mais capacitadas do planeta (mesmo que não sejam as maiores), ou por a Rússia já ter derrotado os EUA na Síria e, na verdade, no resto do Oriente Médio. Não. A Rússia é o país mais poderoso do planeta por duas coisas: a Rússia rejeita e denuncia abertamente, o sistema político, econômico e ideológico mundial que os EUA impuseram ao nosso planeta desde a 2ª Guerra Mundial, e porque Vladimir Putin conta com o sólido apoio de mais de 80% da população russa. 

A maior força da Rússia em 2017 é força moral e força política, é a força de uma civilização que se recusa a jogar pelas regras que o Ocidente conseguiu impor ao resto da humanidade. E agora que a Rússia se movimenta, outros inevitavelmente a apoiarão e seguirão (outra vez: especialmente na Ásia). Essa também é situação completamente nova para o novo presidente, que terá de operar num mundo no qual desafiar os EUA já não apenas deixou de ser sentença de morte, mas pode até já ser tomado como 'tendência generalizada'.


4.            China já firmou sua aliança estratégica com a Rússia evento absolutamente inédito na história do mundo. Diferente de alianças passadas que podiam ser rompidas ou abandonadas, o que Putin e Xi fizeram foi converter seus dois países em simbiontes: a Rússia basicamente depende da China para muitos bens e serviços; e a China depende da Rússia para energia, defesa, aeroespaço e alta tecnologia (para quem se interesse por esse tópico, recomendo o excelente artigo que Larchmonter445 escreveu para o blog do Saker sobre isso: The Rússia-China Double Helix (26/12/2014, "Documento ‒ A Dupla Hélice: China-Rússia (íntegra)" traduzido em redecastorphoto). 

Resultado disso, Rússia e China são hoje uma espécie de "gêmeos siameses" que têm cabeças separadas (têm independência política e seus próprios governos), mas partilham vários órgãos vitais para as duas cabeças. Significa que mesmo se Rússia/China quiserem "burlar China/Rússia" em troca de alguma reaproximação com os EUA... não poderá fazê-lo. Que eu saiba, jamais se viu coisa semelhante entre duas potências na história do mundo. 

Jamais antes dois (ex-)Impérios decidiram permanecer separados, mas completamente integrados um no outro. Nada de grande carta, nada de grande aliança, nada de tratado solene foram jamais assinados para fazer acontecer a aliança, só número (comparativamente) enorme de contratos e acordos menores. E assim os dois países alcançaram status absolutamente inédito na história da humanidade. 

Isso implica, para os EUA, que já não podem confiar na velha estratégia do "dividir para governar" para tentar reinar sobre o planeta, pela suficiente razão de que aquela estratégia simplesmente não mais funcionará: ainda que líderes russos e chineses metam-se em disputas acirradas, não podem desfazer o que foi feito agora. O momentum integracionista entre China e Rússia só poderá ser detido, provavelmente, por uma guerra, e não é o que está acontecendo. Nesse momento, Trump está fazendo muitos gestos de provocação em direção à China, possivelmente na esperança de que se os EUA normalizam relações com a Rússia, a China se sinta isolada. Mas isolar a China é tão impossível quanto isolar a Rússia, e provocar a China simplesmente não faz sentido algum. Pela primeira vez desde a 2ª Guerra Mundial, dado que o presidente eleito dos EUA terá de acomodar-se no triângulo Rússia-China-EUA, os EUA são a ponta mais fraca e mais vulnerável.


5.           Irã poderoso demais para ser provocado ou submetido. É verdade que o Irã é muito mais fraco que Rússia ou China e que o Irã não é grande player internacional. Apesar disso, minha ideia é que o Irã é uma superpotência regional formidável que provavelmente pode, só com uma mão, enfrentar qualquer combinação de países regionais e vencê-los, mesmo que o custo seja alto. Exatamente como a Rússia, o Irã é protegido por uma perfeita combinação de geografia e forças armadas avançadas. Oh, sim, claro, as capacidades do Irã não são equivalentes às de EUA ou Rússia, mas são suficientes para fazer do Irã alvo duro e difícil de atacar. Há muitos anos, no distante 2007, escrevi artigo intitulado "Iran’s asymmetrical response options", hoje claramente datado, mas sobretudo no sentido de que, de 2007 até hoje, o Irã tornou-se ainda mais perigoso para ser atacado pelos EUA, por Israel ou por um combo de ambos. Rússia e/ou China irão à guerra contra EUA, no caso de ataque EUA/Israelense ao Irã? Não. Mas haveria consequências políticas severas para os EUA: veto garantido no Conselho de Segurança da ONU (mesmo que forças dos EUA sejam atacadas na Arábia Saudita ou no Estreito de Ormuz), apoio político, econômico e possivelmente militar para o Irã, apoio de inteligência para operações iranianas, não só no Irã, mas também na Síria, Iraque, Afeganistão e por toda parte, um upgrade das atuais relações semioficiais com o Hezbollah e apoio à Resistência libanesa. 

Mas a principal "arma" usada contra os EUA seria informacional – qualquer ataque enfrentará oposição veemente da mídia russa e da blogosfera ocidental simpática à Rússia: esse é exatamente o cenário que EUA e OTAN tanto temem: puxada porRT e Sputnik, uma campanha de difamação contra os EUA nas mídias sociais. Aí está mais uma nova realidade para 2017: não estamos habituados à noção de que a Rússia conte a favor dela com qualquer modalidade de "soft power", nesse caso, soft power político, mas fato é que essas capacidades russas são reais e formidáveis, e esse é o motivo pelo qual os neoconservadores culpam "a máquina de propaganda do Kremlin" pelo Brexit E pela vitória de Trump nos EUA. Embora não exista a tal "máquina" há uma blogosfera ativa e espaço em mídia não norte-americana aí pela Internet, que parece poderosa o bastante para, pelo menos, encorajar uma espécie de "rebelião dos servos" dos líderes neoconservadores do Império. Resumo da ópera é o seguinte: os EUA perderam o monopólio informacional que tinham em todo o planeta; e o próximo presidente dos EUA terá de competir – competir realmente – para convencer e atrair simpatizantes para suas ideias e sua agenda.

Como Trump lidará com esses desafios fundamentalmente novos?

Se se verificar a possibilidade "Trump derrubado", teremos algo muito semelhante ao que tivemos com Obama: muitas promessas quebradas e esperanças fracassadas. Em termos práticos, os EUA nesse caso retornarão ao que eu chamaria de "políticas de consenso do Império Anglo-sionista" – o que houve sempre desde pelo menos Bill Clinton e que a cada quatro anos é "sempre aquela mesma coisa velha, só que pior". Se Trump for derrubado por impeachment ou assassinado, é possível que a agitação exploda dentro dos EUA, o que absorverá praticamente todo o tempo e toda a energia dos que trabalharam para tirar-lhe a presidência. Se Trump comprovar que é só conversa fiada, sem qualquer ação, voltaremos diretamente para a situação com Obama: presidência fraca, resultado em várias agências "fazendo só a coisa de cada uma", sem tomar conhecimento e sem se interessar por o que façam os outros. Será desastre, internamente e fora dos EUA. O resultado mais provável será o crash brutal, repentino e irreversível do Império Anglo-sionista. Se houver "Presidente Pence" algum dia, os riscos de guerra termonuclear voltam a subir como foguete de volta ao píncaro a que chegaram antes da eleição. Essa é absolutamente a pior opção para todos.

"Trump leve" é a via realmente mais provável. Mas que ninguém se engane: ainda que eu chame de "Trump leve", mesmo nesse caso podem acontecer coisas sérias. Primeiro e mais importante, EUA e Rússia podem decidir negociar entre si à base do autointeresse, do senso comum, do realismo e do respeito mútuo. E já seria variante bastante radical e revolucionária, na comparação com as políticas anti-Rússia nos EUA desde Bill Clinton (e, de fato, desde o fim da 2ª Guerra Mundial). Contudo, a colaboração entre Rússia e EUA não seria global, mas limitada a algumas questões específicas. Por exemplo, EUA e Rússia podem definir operações conjuntas contra o Daech na Síria, mas os EUA não porão fim à atual política de EUA/OTAN de escalada e confronto contra a Rússia na Europa. Assim também, o Congresso controlado pelos neoconservadores impedirá qualquer real colaboração EUA-Rússia na questão da Ucrânia. Essa opção seria muito menos do que alguns apoiadores linha-dura de Trump esperam, mas em todos os casos sempre será infinitamente melhor que Hillary na Casa Branca.

Apesar de menos provável, a via "Trump pesado" pode realmente iniciar uma era fundamentalmente nova nas relações internacionais. Nesse caso, Rússia e os EUA dariam jeito de montar meia dúzia de acordos de longo alcance nos quais possam agir em conjunto para resolver questões chaves. As possibilidades são, em teoria, simplesmente fantásticas.

Primeiro e sobretudo, EUA e Rússia podem refazer toda a segurança europeia, revivendo e modernizando a pedra basilar da segurança europeia: o Tratado Forças Convencionais Europa [ing. Conventional Forces Europa (CFE)]. EUA e Rússia podem negociar um novo CFE-III e usá-lo como uma base para equacionar todas as principais questões de segurança na Europa, o que tornaria de fato impossível uma guerra na Europa. Tal acordo seria imensamente benéfico para todo o continente e marcaria o início de era completamente nova para a Europa. Únicos reais perdedores seriam os países ocidentais de média renda [ing. western MIC] e uns poucos estados encrenqueiros que, ademais, não têm qualquer serventia (Latvia, Polônia, etc.) cujo único produto valioso de exportação é a paranoia russofóbica. 

Contudo, como em todos os casos nos quais a guerra, potencial ou real, é substituída por paz, a vasta maioria dos povos da Europa se beneficiariam com um acordo desse tipo. Haveria algumas negociações mais delicadas e duras para acertar todos os detalhes, mas entendo que se a Rússia receber algumas garantias reais, verificáveis de segurança, o Kremlin aceitaria ordenar 'Descansar!' às forças russas a oeste dos Urais.

Segundo, EUA e Rússia podem, juntos, tomar medidas para pôr fim à guerra civil na Ucrânia, fazer da Ucrânia uma federação com grande autonomia garantida a todas as regiões da Ucrânia (não só ao Donbass) e declarar que uma Ucrânia não alinhada e neutra passaria a ser a pedra angular de um novo sistema europeu de segurança. Se Rússia e EUA chegarem a um acordo sobre isso, não há os que os ucronazistas ou os europeus possam fazer para impedir que aconteça. Sinceramente: assim como adolescentes irresponsáveis e violentos não são chamados para votar nas decisões de gente grande, a União Europeia e a junta de Kiev devem ser despachadas: deve-se dizer a eles que os adultos decidiram pôr fim àquele pesadelo, para que as coisas não piorem ainda mais. Aposto que tal abordagem teria o apoio de muitos ucranianos, se não da maioria deles, hoje absolutamente fartos do que veem acontecer por lá. A maioria dos europeus (exceto as elites políticas, claro) e muitos russos receberiam com alívio o fim do clusterf*ck ucraniano (desculpem, mas é descritor acurado).

Os EUA perderam muito da importância que tinham no Oriente Médio. Apesar disso, ainda têm poder suficiente para ajudar produtivamente a destruir o Daech, especialmente no Iraque. Enquanto Rússia, Irã e Turquia provavelmente podem impor algum tipo de acordo para pôr fim à guerra contra a Síria, poder contar com apoio dos norte-americanos seria imensamente útil. O CENTCOM ainda é muito poderoso e contar com campanha conjunto russo-norte-americana para acabar com o Daech seria muito benéfico para toda a região. Ter russos e norte-americanos finalmente numa relação de colaboração inteligente seria novidade fascinante de observar, e tenho certeza que os soldados dos dois lados apreciariam muito a oportunidade. Não há jogo de soma zero no Oriente Médio, mas o próximo presidente dos EUA terá de compreender que os EUA são agora parceiro júnior de coalizão muito maior. É o preço que você paga por manter um idiota na Casa Branca durante oito anos.

Desnecessário dizer, se norte-americanos e russos trabalham bem em conjunto na Europa, Ucrânia e Oriente Médio, teríamos afinal uma novidade valiosa, dramática, em relação à "guerra morna" que houve entre Rússia e EUA durante o desastroso governo Obama.

Infelizmente, há sempre as questões preocupantes de Trump operar como serviçal do lobby EUA-Israel e aquela sua estúpida, delirante retórica contra o Irã. Se Trump mantiver esse nonsense depois de assumir a Casa Branca, simplesmente se autoexcluirá e excluirá os EUA de qualquer real negociação que aconteça no Oriente Médio. Além mais, sabendo da doentia russofobia dos neoconservadores, se Trump ceder às demandas deles contra o Irã, estará também reduzindo severamente o objetivos de qualquer colaboração EUA-Rússia na Europa, na Ucrânia e por toda parte. O mesmo vale para a tola provocação de Trump contra a China: se Trump realmente crê que os EUA estejam em posição que lhes permita provocar e abusar da China, ele que se prepare para algumas desilusões realmente dolorosas. Já vai muito longe o tempo quando os EUA realmente podiam intimidar a China; se insistir, Trump só conseguirá fracassar contra a China, do mesmo modo que Obama fracassou contra a Rússia.

Essa, em minha opinião, é A questão chave da presidência Trump: os EUA em governo Trump aceitarão que a hegemonia mundial dos EUA acabou-se de uma vez por todas e que, doravante, os EUA são apenas um grande ator, dentre outros grandes atores? Claro, a América, o país, não o Império, *pode* ser tornada "grande outra vez", mas só se desistir do Império e aceitar a condição de país "normal", apesar de, sim, dos mais importantes.

Se o establishment EUA continuar a operar sob o pressuposto de que "somos o nº 1", "os militares norte-americanos são os mais poderosos da história do mundo" ou que "os EUA são a nação indispensável", que tem de "liderar o mundo", nesse caso o governo Trump terminará em desastre. Ideias messiânicas e imperialistas sempre levaram ao fracasso mais catastróficos os que as professam, e os EUA não serão exceção. Por um lado, a mentalidade messiânica e imperialista é sempre profundamente delirante, porque sempre favorece a ideologia, acima da realidade. E, como diz o ditado, se a cabeça está enfiada no buraco, o traseiro está para cima. Uma das maiores vantagens que Rússia e China têm sobre os EUA é que se dão perfeitamente conta de que são mais fracas que os EUA em vários campos. No final das contas, embora paradoxalmente, essa consciência objetiva clara é que as torna mais fortes.

Deve portanto ser alta prioridade para o presidente Trump controlar a atitude infinitamente arrogante tão típica dos neoconservadores e de seus ancestrais Trotskiystas (no plano físico, como no plano ideológico) e substituí-la por aguda consciência de o quanto é necessário engajar os EUA em políticas comensuráveis com as capacidades do país. Política realista baseada em fatos deve agora substituir o húbris* imperial.

Assim também, deve tornar-se alta prioridade para o presidente Trump purgar as elites dos EUA, extraindo de lá a gangue tóxica que as invadiu e hoje domina: assim como a principal ameaça ao presidente Putin é a 5ª Coluna russa, creio firmemente que a maior ameaça ao presidente Trump será a 5ª Coluna que os neoconservadores controlam nos EUA – especialmente o Congresso, a mídia, Hollywood e a comunidade de inteligência. Os neoconservadores jamais deixarão barato, ou de algum modo, seja como for, aceitarão que o povo dos EUA os demitiu de Washington. Em vez de aceitar, farão o que sempre fizeram: a mais viciosa campanha de ódio contra Trump pessoalmente, e contra quem  se tenha atrevido a elegê-lo. Nesse momento, Trump está claramente tentando apaziguá-los, jogando um osso aqui e ali para uns ou outros (Pence, Priebus, Friedman, demonização do Irã, etc.) o que me parece bastante justo. Mas se continuar a ziguezaguear desse modo, depois de tomar posse, verdade é que Trump não terá sequer uma mínima chance contra seus inimigos.

Michael Moore acaba de convocar "100 dias de resistência" a partir da posse de Trump. Por mais que o próprio Moore seja simples palhaço, talentoso, mas tolo, esse tipo de iniciativa pode virar 'tendência', especialmente entre os filhos 'do milênio', perfeitamente zumbificados nos EUA, e os vira-bosta pseudo 'liberais' que simplesmente não conseguem e não aceitarão que a Hillary-deles não tenha sido eleita. Jamais subestimemos as capacidades dos agentes de Soros, para iniciar uma revolução colorida dentro dos EUA.

O 'estado profundo' dos EUA também é inimigo poderoso e imensamente perigoso, cujas opções para enfrentar uma ação de "Trump pesado" incluem não só o assassinato do próprio presidente, mas também a criação de outro 9/11, ação sob falsa bandeira dentro dos EUA, talvez mesmo com materiais atômicos, e usar a coisa como pretexto para impor alguma espécie de estado de emergência.

Por fim, e como sempre, há os bancos (num sentido geral, incluindo seguradoras, fundos de investimentos etc. – basicamente todos os financistas) que combaterão com todas as forças, contra uma re-soberanização dos EUA. Normalmente, uso a expressão "re-soberanização" para descrever o que Vladimir Putin tentou fazer na Rússia desde 2000: o processo de tomar o poder, das garras de uma pequena elite transnacional, devolvê-lo ao povo russo e fazer da Rússia um país verdadeiramente independente e soberano. O mesmo conceito, contudo, também se aplica aos EUA, cujo povo tornou-se claramente refém e servo de uma pequena elite, de fato menor que o 1%, que está no total controle dos centros reais de poder. 

Grande parte desse controle, quase todo, na verdade, está concentrado em várias instituições financeiras que realmente controlam todos os braços do governo nos EUA. Alguns os chamam "EUA corporativos", "EUA, Inc.," mas de fato tratamos aqui com financistas, não com empresas que ganhem a vida oferecendo bens e serviços. Aí estão as reais alavancas que movem a corrupção nos EUA e provavelmente acima de qualquer outro agente no planeta, se se consideram as somas descomunais de dinheiro envolvidas. Os parasitas (literalmente) corruptos que comandam essa máquina de fazer dinheiro farão qualquer coisa ao alcance deles para impedir que o povo norte-americano retorne ao poder. E jamais permitirão que "um homem – um voto" venha a substituir o atual "um dólar – um voto".

É irônico, claro, que o próprio Trump e toda sua entourage venham daquelas mesmas elites financistas. Mas seria erro assumir que, simplesmente porque alguém vem de um determinado meio, sempre o apoiará e apreciará sem críticas. Che Guevara era médico, filho de família abastada da burguesia argentina. Oh, não estou comparando Trump e Che! Só estou dizendo que a teoria da consciência de classes carrega exceções interessantes. No mínimo, Trump conhece bem essa gente e pode talvez ser a pessoa ideal para modificar o atual monopólio do poder.

Conclusão:

Arriscar previsões para um ano como 2017, quando a maior parte dos eventos dependem diretamente do que uma pessoa faça ou deixe de fazer, é absolutamente sem serventia. No máximo, é simples exercício de arriscar a sorte nas estatísticas. Os que acertarem nas previsões claro que parecerão ótimos, e aqueles cujas previsões não se materializarem péssimos. Mas na verdade, uns e outros realmente não têm qualquer pista de coisa alguma. Por isso escolhi falar de riscos e oportunidades e examinar pelo menos três grosseiramente demarcadas "variantes de Trump". 

Seja como for, há processos nos quais Trump e os EUA são fatores cruciais ou, no mínimo, fatores centrais, mas há outros nos quais pesam muito, muito menos. Assim sendo, nessa conclusão arrisco alguns palpites e os ofereço com todas as ressalvas imagináveis, porque muito provavelmente estarei errado. Esclarecido isso, vamos lá.

Primeiro, acho que há boa chance de Rússia, Irã e Turquia conseguirem pôr fim à guerra contra a Síria. O país permanecerá uno, mas com bem delimitadas áreas de influência e um governo que incluirá Assad, mas também representantes da oposição. A Síria é grande demais e diversa demais para conviver com a paz que se vê hoje na Chechênia; assim, pode-se esperar no máximo uma espécie de semipaz como a que o Daguestão enfrenta já há alguns anos. Absolutamente não será paz perfeita, não; mas o horror absoluto terá fim.

Segundo, acho que Poroshenko perderá poder em 2017. A Ucrânia ocupada pelos nazistas sobreviveu por um mix de oportunidade (ainda havia ali muita riqueza deixada pela era soviética) e ajuda ocidental. Esses dois fatores agora estão chegando à absoluta extinção. Mais que isso, há sinais crescentes de que as forças armadas ucranianas estão tendo tanto trabalho para simplesmente sobreviver no campo, que basicamente se tornaram incapazes de empreender operações significativas de combate. Se algum batalhão de voluntários nacionalistas especialmente alucinado ou líder político idem ordenar ataque à Novorrússia, os ucranianos expõem-se a sofrer grande derrota, seguida pela libertação dos territórios ainda ocupados por nazistas, nas regiões de Donetsk e Lugansk. E dessa vez, caso aconteça, os novorrussos terão os meios para libertar Mariupol e ali se manter, sem serem isolados do Donbass por algum contra-ataque ucraniano pelos flancos. 

Por fim, se Poroshenko vier a ser substituído por elementos ainda mais lunáticos, a Rússia pode decidir reconhecer a independência das Repúblicas Populares, de Lugansk e de Donetsk, o que, por sua vez, resultará inevitavelmente em as populações das duas Repúblicas Populares aprovarem, em referendum, a incorporação à Rússia. Políticos da União Europeia terão ataques apopléticos, e Polônia e Estônia declararão que estaria iminente um ataque russo, mas a Rússia simplesmente os ignorará, todos esses. 

Quanto a Trump, é pouco provável que faça grande coisa quanto a isso tudo, especialmente considerando que os nazistas ucranianos investiram todas as suas fichas em apoio total a Hillary, e descartaram Trump como se não passasse de piada. A única e última chance que o "Banderastão Independente" terá para evitar aquele resultado é afinal implementar integralmente o Acordo Minsk-2, para, basicamente, se autodissolver. Será que os doidos em Kiev terão a inteligência de compreender isso? Duvido muito. Mas sabe-se lá, talvez Deus tenha piedade do povo da Ucrânia e dê a ele forças para livrar-se da podridão Banderista que tanta desgraça atraiu sobre eles.

Com isso, me resta uma área que muito me preocupa: a América Latina.

É evidência que recebeu pouca atenção em geral, mas a América Latina é o único campo de toda a política exterior dos EUA no qual Obama alcançou algum sucesso, pelo menos do ponto de vista dos que apoiem a subjugação da América Latina pelos EUA: Castro foi-se; Chávez foi-se, possivelmente assassinado; Christina Kirchner foi-se; a presidenta Dilma Rousseff foi derrubada por golpe parlamentar, e parece que Nicholas Maduro não escapará do mesmo destino. Muito significativamente, Cuba aceitou um acordo que dará aos EUA muito maior poder de alavancagem sobre o futuro da ilha-estado. É verdade que Evo Morales, Rafael Correa e Daniel Ortega ainda estão no poder, mas é fato inegável que os pesos pesados da política latino-americana caíram. 

Será que Trump mudará a política dos EUA para a América Latina? Duvido muito, se por mais não for, porque "no que está funcionando não se mexe". E de um ponto de vista EUA-imperialista, a atual política está, sim, funcionando; de fato, é considerável sucesso. Simplesmente não vejo razão que leve Trump a decidir dar liberdade e direitos de soberania aos latino-americanos e reverter a já quase bicentenária Doutrina Monroe. A liberdade da América Latina só virá ao preço de longa luta, não importa quem  esteja na Casa Branca.

Por tudo isso, a vida em 2017 permanecerá muito distante de vida em mundo perfeito, mas há chance maior que média de que 2017 venha a assistir algumas melhorias significativas e muito necessárias em relação ao quadro absolutamente desastroso dos últimos anos. Ainda há esperanças de que Trump venha a cumprir o que prometeu, e se cumprir pode ainda ser um dos melhores presidentes dos EUA em muitos, muitos anos. E cumpra ele ou não as promessas que fez, o mundo terá caminhado vários passos para longe da unipolaridade em direção à multipolaridade – e essa é evolução imensamente desejável. 

Todas as contas feitas, e pela primeira vez em décadas, sinto-me otimista. É sentimento estranho e pouco natural em mim, motivo pelo qual me sinto quase culpado pelo meu otimismo de hoje. Mas às vezes algum gozo culpado também pode ser bem divertido!

[assina] The Saker




* Português do Brasil: o húbris, cf. VOLP-ABL; português europeua húbris [NTs]

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