segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Como a Grã-Bretanha denega seus Holocaustos, por George Monbiot

27.12.2005, George Monbiot em seu Blog


Traduzido por E.Silva



Por que tão poucas pessoas sabem sobre as atrocidades do Império?

por George Monbiot. Publicado em The Guardian em 27 de Dezembro de 2005




Lendo os relatórios do julgamento do romancista turco Orhan Pamuk, você fica chocado com duas coisas. A primeira, é claro, é a brutalidade anacrônica das leis do país. O senhor Pamuk, bem como uma porção de outros escritores e jornalistas, está sendo processado por “denegrir a identidade turca”, o que significa que ele ousou mencionar o Genocídio Armênio durante a primeira guerra mundial e o Massacre dos Curdos na década passada. A segunda coisa é a surpreendente estupidez desse processo. Se há uma coisa que só poderia ter sido calculada precisamente para chamar a atenção sobre esses massacres, esta coisa é o julgamento do maior romancista do país por tê-los citado.


Em seus esforços para aceder à União Europeia, o governo turco descobrirá que outros membros da União Europeia acharam um meio muito mais eficaz de supressão. Sem coerção legal, sem uso de turbas ensandecidas para arrancar escritores de suas casas, nós desenvolvemos uma quase infinita capacidade de esquecer nossas próprias atrocidades.

Atrocidades? Quais atrocidades? Quando um escritor turco usa estas palavras, todos os turcos sabem do que ele está falando, mesmo denegando veementemente o aludido. Em situação semelhante, muitos britânicos ficariam simplesmente boiando. Sendo assim, deixe-me dar-lhe dois exemplos, ambos tão bem documentados quanto o Genocídio Armênio.

Em seu livro Late Victorian Holocausts (Os Holocaustos do Fim da Era Vitoriana), publicado em 2001, Mike Davis conta a história das penúrias que mataram entre 12 e 29 milhões de indianos (1). Estes povos foram, ele o demonstra, assassinados pela política do Estado Britânico.

El Niño estava golpeando severamente os agricultores do Planalto do Decão em 1876, mas havia um claro excedente de arroz e trigo na Índia. Mas o vice-rei, Lord Lytton, obstinou-se a garantir a exportação destes produtos para a Inglaterra. Em 1877 e 1878, no auge da penúria, mercadores de grãos exportaram um recorde de 6.4 milhões de quintais de trigo. Quando os camponeses começaram a morrer de fome, as autoridades foram instadas a “desalentar quaisquer esforços paliativos por todos os meios possíveis” (2)

A Lei Contra os Auxílios Caritativos de 1877 proibia “sob pena de detenção, atos de auxílio caritativo potencialmente consequenciais para a determinação dos preços dos grãos.” O único auxílio permitido em muitos distritos era o trabalho forçado, do qual estavam excluídos aqueles em avançado estado de inanição. Nos campos de concentração laboral, os trabalhadores recebiam menos alimento que os internos de Buchenwald. Em 1877, a mortalidade nos campos de concentração laboral atingiu a taxa anual de 94%.

Enquanto milhões morriam, o Governo Imperial lançava uma “campanha militar para arrecadar os impostos atrasados durante a seca.” O dinheiro, com o qual os arruinados poderiam ter sobrevivido à penúria, foi usado por Lytton para financiar sua guerra contra o Afeganistão. Até mesmo em lugares de produção excedentária, as políticas de exportação do governo, como Stálin na Ucrânia, produziram fome crônica em massa. Nas províncias do Noroeste, Oud e Punjab, que tinham batido três recordes anuais sucessivos em suas colheitas, pelo menos 1.25 milhão de pessoas morreram de fome.

Estes três livros recentemente publicados – Britain’s Gulag  (Os Gulags Britânicos) de Caroline Elkins, Histories of the Hanged (Histórias dos Enforcados)  de David Anderson e Web of Deceit (Teia de Enganos) de Mark Curtis – mostram como ocupantes brancos e tropas britânicas esmagaram a revolta Mau Mau no Quênica, nos anos 1950. Despossuídos de suas melhores terras, privados de direitos políticos, os Kikuyu começaram a ser organizar – alguns violentamente – contra o domínio colonial. Os Britânicos responderam colocando 320.000 deles em campos de concentração (3).

Muitos dos remanescentes – mais de um milhão- foram mantidos em “aldeias cercadas”. Os prisioneiros eram interrogados com o auxílio de técnicas como “ter as orelhas cortadas em pedacinhos, perfurações de tímpano, espancamento até a morte, derramar parafina nos suspeitos e depois atear fogo, perfurações de tímpano com pontas de cigarros acesos”. (4) Os soldados Britânicos usavam um “instrumento metálico de castração” para recortar testículos e dedos. “Então eu aproveitei para recortar os colhões dele logo”, gabava-se um ocupante branco – “ele já não tinha mais orelhas, e o glóbulo ocular dele, o direito, eu acho, estava pendurado fora da cavidade” (5). Os soldados estavam autorizados a atirar em qualquer um que quisessem, “contanto que fosse um Negro” (6). Elkins põe em evidência que provavelmente mais de 100 000 Kikuyu foram mortos pelas tropas Britânicas ou morreram em campos de concentração vítimas da fome ou de doenças. David Anderson documenta o enforcamento de 1090 suspeitos rebeldes, o que supera o número de executados pelos franceses na Argélia (7). Milhares de pessoas foram sumariamente executadas pelos soldados, segundo os quais elas não haviam obedecido à ordem de parar.

Estes são apenas dois exemplos de pelo menos umas vinte atrocidades semelhantes supervisionadas e organizadas pelo Governo Britânico e pelos Ocupantes Coloniais Britânicos: inclua-se o Genocídio Tasmânio, a prática de castigo coletivo na Malásia, o bombardeio de aldeias em Omã, a guerra suja contra o Iêmen do Norte, a evacuação de Diego Garcia. Algumas dessas atrocidades talvez possam disparar uma vaga e profunda memória em alguns leitores, mas a maior parte das pessoas não tem a menor ideia do que estou falando. Max Hastings, na edição de hoje do jornal The Guardian, se queixa de nossa “relativa falta de interesse pelos crimes de Stálin e Mao.” (8). Mas pelo menos estamos conscientes de que eles aconteceram.

No Express, podemos ler o historiador Andrew Roberts alegar que “no decorrer da maior parte da longa história da metade do milênio, o Império Britânico foi uma exemplar força do Bem... os Britânicos concederam seus impérios, mormente, sem banhos de sangue, depois de ter selecionado e educado seus sucessores governantes nos caminhos da democracia e das instituições representativas” (9) (ao que parece botando na cadeia seus futuros líderes). No Sunday Telegraph, ele insiste em dizer que “o Império  Britânico propiciou enormes taxas de crescimento, pelo menos nos países que tiveram sorte o bastante para ter a cor rosa no globo.” (10) (Compare isso com o achado central de Mike Davis, segundo o qual “não houve aumento da renda per capta na Índia de 1757 a 1947”, ou com a demonstração de Prasannan Parthasarathi, segundo a qual “lavradores do Sul da Índia tinham rendas superiores às dos seus homólogos Britânicos no século XVIII e tinham muito mais segurança financeira em suas vidas.” (11). No Daily Telegraph, John Keegan assevera que “o Império se tornou altamente benevolente e moralista em seus últimos anos.” Os Vitorianos “decidiram levar a Civilização e o Bom Governo às suas colônias e deixá-las quando não mais fossem bem-vindos. . Em quase todos os países, uma vez assumida a cor vermelha no mapa, eles persistiram em suas resoluções.” (12)

Há um corretamente sacralizado Holocausto na História da Europa. Todos os outros podem ser ignorados, denegados ou desdenhados. Como salienta Mark Curtis, o sistema de pensamento dominante entre os Britânicos “promove um conceito chave que está subjacente a todo o resto – a ideia de uma Benevolência Britânica fundamental. A crítica à política externa do Império é, todavia, possível e normal, mas dentro de estreitos limites, que apontam “exceções” à regra ou “erros” pontuais, mas sempre promovendo a ideia fundamental da benevolência.” (13) Temo que esta ideia seja o verdadeiro “sentido da Identidade Cultural Britânica, cuja suposta perda Max hoje lamenta. Nenhum juiz ou censor se faz necessário para executar isso. Os proprietários dos jornais simplesmente encomendam as histórias que eles querem  ler. 

A entrada da Turquia na União Europeia, agora posta em perigo pelo julgamento de Orhan Pamuk, não requer que a Turquia acerte suas contas com suas atrocidades; quer apenas que seus escritores sejam autorizados a encolerizar-se inutilmente contra elas. Se o governo quer que o Genocídio Armênio seja esquecido, ele deveria abandonar suas leis de censura e deixar que as pessoas digam o que querem. Pra isso basta apenas permitir que Richard Desmond e os irmãos Barclay comprem seus jornais e o passado nunca voltará a perturbá-los.

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Referências:

1. Mike Davis, 2001. Late Victorian Holocausts: El Nino Famines and the Making of the Third World. Verso, London.

2. An order from the lieutenant-governor Sir George Couper to his district officers. Quoted in Mike Davis, ibid.

3. Caroline Elkins, 2005. Britain’s Gulag: The Brutal End of Empire in Kenya. Jonathan Cape, London.

4. Mark Curtis, 2003. Web of Deceit: Britain’s Real Role in the World. Vintage, London.

5. Caroline Elkins, ibid.

6. Mark Curtis, ibid.

7. David Anderson, 2005. Histories of the Hanged: Britain’s Dirty War in Kenya and the End of Empire. Weidenfeld, London.

8. Max Hastings, 27th December 2005. This is the country of Drake and Pepys, not Shaka Zulu. The Guardian

9. Andrew Roberts, 13th July 2004. We Should Take Pride in Britain’s Empire Past. The Express.

10. Andrew Roberts, 16th January 2005. Why we need empires. The Sunday Telegraph.

11. Prasannan Parthasarathi, 1998. Rethinking wages and competitiveness in Eighteenth-Century Britain and South India. Past and Present 158. Quoted by Mike Davis, ibid.

12. John Keegan, 14th July 2004. The Empire is Worthy of Honour. The Daily Telegraph.

13. Mark Curtis, ibid.







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