terça-feira, 11 de abril de 2017

Frente a frente com Pasolini, por Leila Salem

07.05.2016, Leila Salem - Le Grand Soir



« Melhor ser um inimigo do povo que um inimigo da realidade »

Pasolini


Tradução E. Silva







Maio 2006


Soava meia-noite quando cheguei ao país das dunas de areia, das grandes planícies pedregosas e dos frágeis arbustos. Neste lugar de desolação e refúgio, Pasolini, tu estás ao meu lado, tu serás meu companheiro de estrada e tu sofrerás, apesar de ti mesmo, minhas jeremiadas e tagarelices.

Tamanrasset nos acolhe nos confins do Hoggar, a pérola do deserto, encruzilhada das especiarias e das caravanas, cidade dos homens azuis. Tamanrasset, etapa de alguns dias, para que nos repousemos, façamos algum escambo e repartamos rumo ao sul.

Sou recebida por uma família tuaregue que vive numa casa sólida e não, como no passado, numa tenda em que a mulher comandava tudo e o homem cuidava dos rebanhos. Uma casa com cama, cozinha, talheres de metal e também uma televisão, uma grande televisão.

Sim, eu sei, tu não gostas da televisão. Tu a descobriste quando estavas gravemente enfermo e não podias ler; te impuseste o suplício de olhá-la quotidianamente « eu olho a televisão. É infinitamente pior e mais degradante do que pode supor a mais feroz imaginação », havias escrito.


Para ti, a televisão se inscreve no fenômeno geral do neocapitalismo. Ela impõe uma cultura de massa e precipita ainda mais baixo as camadas pobres da sociedade. Ela realiza a discriminação neocapitalista entre os bons e os maus. « Emana da televisão algo assustador. Algo pior que o terror que devia inspirar em outros séculos a simples ideia dos tribunais da Inquisição. Há, nas profundezas da chamada televisão, algo de semelhante, precisamente, ao espírito da Inquisição : uma divisão nítida, radical, grosseiramente imposta, entre aqueles que podem passar e aqueles que não podem passar : só pode passar aquele que é imbecil, hipócrita, capaz de dizer frases e palavras que não sejam mais que som; ou então aquele que sabe ficar calado. Aquele que não é capaz destes silêncios não passa » havias escrito.

Tu afirmaste que a televisão é um poderoso meio ideológico da classe dominante para conseguir a total servidão dos dominados.

Na impossibilidade de oferecer trabalho aos jovens, os ricos a utilizam para que as massas pobres esqueçam seu presente amargo e não pensem em seu futuro incerto.

Com sua aprovação, a televisão faz dos homens políticos e dos personagens de primeiro plano verdadeiros palhaços e idiotas.

Ela exclui os espectadores de qualquer participação política como no tempo do fascismo : normal, o rebanho é incapaz de pensar; outros o fazem em seu lugar.

Em vez de matá-lo, a televisão transforma o homem em imbecil e malvado; é por isso que os responsáveis dos programas são criminosos que exercem uma repressão e uma violência semelhantes àquelas dos piores regimes antidemocráticos.

Ainda que não exista nenhum artigo do código penal que puna quem quer que critique a televisão, ninguém ousa fazê-lo por medo de perder os pequenos privilégios oferecidos pela telinha « mágica». 

« Quando os operários de Turim e de Milão começarem a lutar também por uma verdadeira democratização deste aparelho fascista que é a televisão, poderemos realmente começar a ter alguma esperança. Mas enquanto todos, burgueses e operários, se amontoarem diante de seu televisor para se deixar humilhar desse jeito, só nos restará a impotência do desespero », escrevias tu em 1972. 

Bem que eu gostaria de te anunciar boas novas, mas tu sabes que, com Berlusconi na Itália, Rupert Murdoch nos Estados Unidos e seus equivalentes na França e em todo o mundo, a situação piorou muito. As redes midiáticas estão agora em mãos de tiranias privadas. Para controlar a sociedade, os propagandistas praticam a política do « dividir para reinar » e utilizam a televisão como meio para propagar o ódio e o medo entre as pessoas. A televisão cria necessidades artificiais, controla a maneira como as pessoas pensam e olham as coisas. Em nossos dias, a televisão se tornou uma arma de destruição massiva e não há mais esperança!

Olha, meus amigos tuaregues estão me chamando. Penso que eles não estão ainda familiarizados com a televisão e preferem passar suas noites no deserto, com música, em volta de uma fogueira. Com eles, vou saborear um chá adoçado e escutar as notas mágicas de uma intérprete de Imzad. Sabias tu que a mulher tuaregue que toca Imzad transmite a escrita Tifinagh, os poemas e a cultura às crianças e define sua linhagem? O homem cuida dos rebanhos e é peão de obra, motorista de caminhão ou guia turístico.

Eis-nos aqui, em pleno deserto, neste mundo de uma beleza perturbadora e cujo maior luxo é o silêncio. Estamos longe de teu mundo de sonho « com a grande poesia do não-poético, fervilhando de camponeses e pequenas indústrias, bem-estar abundante, bom vinho, boa comida, pessoas polidas e grosseiras, meio vulgares, mas sensíveis ».

No entanto, deste país de sonho, tu fugiste com tua mãe, tendo como única bagagem a desonra, o desemprego e a miséria. Havias morado numa casa pobrezinha num povoado da periferia de Roma. Teus personagens se tornaram então estes subproletários desses povoados e teus romances foram inspirados na vida da escória destes lugares miseráveis. Tu amavas o real e tu estavas convencido de que o capitalismo leva  ao desaparecimento, à morte de tudo o que há de bom e de real sobre a terra. 

No mundo real, a pessoa preserva seu senso do real, seu senso moral e sua capacidade de confiar em sua experiência e em seu julgamento. Ela é mais sensível e mais receptiva aos eventos que transtornam nosso mundo.

Seu oposto é um indivíduo espremido pela máquina propagandística até se tornar vazio e depois cevado de ideias que ele não pode constestar nem recusar; as estratégias de doutrinação utilizadas o despossuíram de sua capacidade de exercer seu julgamente de maneira independente e conseguiram controlar totalmente seu pensamento, sua ação e seus sentimentos.

Chomsky fala desta doutrinação. Ele explica que o processo começa na maternal, diante da televisão. Na escola, a seleção é feita pela docilidade. Ele diz que frequentou universidades chiques porque soube se calar e obedecer. A receita do sucesso é pois a passividade e a disciplina; aqueles que não se submetem a isso são perturbadores que devem ser afastados do sistema seja como for.

O famoso linguista conclui que, para vencer o combate em favor do espírito humano, é preciso lutar contra a televisão, a indústria cinematográfica e o sistema escolar e contra todo o resto. Eles nos avisa que o combate é rude, muito rude.

Já é tarde e a noitada está terminando; voltamos para a casa sólida; amanhã, num 4x4, tomaremos a direção do Tassili de Hoggar.

O Tassili de Hoggar é esta paisagem lunar, com seus estranhos relevos, suas gravuras e pinturas rupestres, sua fauna, sua flora, os traços deixados pelos antigos escoadouros de água e suas cidades fantasma destruídas pelo tempo e pelas guerras; tudo dá testemunho de que há vários milhares de anos viviam aqui homens que deixaram marcas de suas vidas quotidianas.

Seria pela nostalgia de um mundo antigo e pelo medo desta modernidade imposta pela tirania do mercado que fui levada a vir a este estranho ambiente em que misturam-se inquietude e fascinação? Tu também buscaste na nostalgia do Friul, do mundo rural das diversidades culturais, no terceiro mundo e nos povoados da periferia de Roma uma maneira de te apoiar nas forças do passado para resistir a uma modernidade que se tornou bárbara e destrutiva.

Tu, que levavas o terceiro mundo em teu coração, tu, que apoiaste a independência da Argélia « estou de todo coração com os argelinos; assumiria qualquer responsabilidade para apoiá-los » havias declarado. Gostarias que estivesses ao meu lado para visitar um dos oásia da terra argelina.

Entre Biskra, Béni Isguen, Ghardaïa, Timimoun, no vale do Gourara, El Goléa, Reggane, Adrar e tantos outros, eu escolhi ir a Ghardaïa, no vale do M’zab.

Ghardaïa é sinônimo de mito e miséria. Conta-se que um moça chamada « Daïa », repudiada por todos por estar grávida, refugiou-se numa gruta. Um dia, o xeique Sidi Bou Gdemma passava por ali e, percebendo fumaça acima da gruta, se deteve. Seduzido pela beleza da jovem, ele a pediu em casamento. E ambos fundaram a cidade de  Ghardaïa « Ghar (Gruta) de Daïa ».

Vamos pois para o norte, rumo à « Gruta de Daïa » ; os 4x4 avançam com dificuldade pelas sendas varridas pelo vento e pela areia. O calor é intenso e estou esgotada. Olha, ao longe, é Ghardaïa, surgida de lugar nenhum e em seu centro se ergue orgulhosamente a mesquita, que espia, como um farol, os mínimos movimentos do deserto.  

Estou na cidade do deserto por excelência. Com seus imensos palmeirais, sua rede de ruelas medievais, seus ksours (celeiros fortificados) e seu minarete, que domina o soco (mercado tradicional), classificado como patrimônio mundial. O vale do M’zab abriga uma admirável herança deixada por milhares de anos de história humana.  

Pasolini, tu teceste o elogio da droga, do horror, da cólera, do suicídio e da religião, pois eles são « a única esperança que permanece contestação pura e ação sobre a qual se mede o enorme erro do mundo. Não é necessário que uma vítima saiba e fale ».

Tu também denunciaste o que haviam chamado na época de « liberação sexual » e tu rejeitaste as revoltas estudantis de 68, o que te acarretou um dilúvio de insultos e de desprezo. No entanto, nisso também tinhas razão : o sexo se tornou uma mercadoria como qualquer outra e a gente pode ver o que se tornaram os Serge July, Cohn Bendit, Alexandre Adler e outras personalidades do « movimento de maio de 1968 ».

Estamos todos em perigo

Pasolini, tu és um profeta, tu tinhas razão sobre quase tudo : estamos todos em perigo. O « nivelamento brutal e totalitário do mundo » do qual havias falado se realizou. Graças à televisão e ao mercado, um modelo único e exclusivo se impôs ao mundo inteiro « o que o fascismo histórico não conseguiu realizar, o novo poder conjugado do mercado e da mídia o opera de mansinho (na servidão voluntária); um verdadeiro « genocídio cultural », em que o povo desaparece para dar lugar a uma massa indiferenciada de consumidores submissos e alienados ». 

Pasolini, tua obra é imensa. Eras poeta, cineasta, romancista, dramaturgo e ensaísta.

Eras um intelectual rebelde e engajado. Contra o novo fascismo, a aculturação e a homogenização mundial, tu protestaste, queimaste, dramatizaste e amplificaste sem jamais se curvar. Tu foste maldito, perseguido, insultado e desprezado.

Tu disseste que aqueles que fazem a História são aqueles que dizem « não » e não os cortesões ou assistentes de cardeais.

Contudo, tu impuseste a este « não » uma grandeza, e não uma mesquinharia, um « não » total e não parcial, absurdo e não racional.

Teus romances, teus poemas e teus filmes foram os companheiros ideais de minhas longas noites solitárias. Tu me fizeste sonhar, ganhar coragem, rir e chorar. Eu sei quase tudo sobre ti.

Nasceste num 5 de março de 1922, em Bolonha, e morreste assassinado no dia 2 de novembro de 1975, em Ostie. Sei que teu pai aprovava o fascismo; compreendi teu ódio misturado à compaixão por aquele pobre homem e li tua coletânea de versos « poemas à Casarsa », escrito em dialeto friulano e traduzido em francês, que tu dedicaste a esta vítima ignara e sem espírito crítico da guerra fascista.

Compartilhei tua dor pela morte de teu irmão Guido, guerrilheiro morto por outros guerrilheiros comunistas. A coisa mais importante de tua vida? Era tua mamãe e também teu companheiro Ninetto. Sei como te tornaste marxista, aprovo teu ódio pela burguesia italiana e por qualquer burguesia. Tua vida? Ela foi um rico e tumultuoso poema lírico.

Tu te engajaste na escrita, mas também na vida « é preciso resistir no escândalo e na cólera, mais do que nunca, ingênuos como animais no abatedouro, perturbados como vítimas, justamente : é preciso dizer mais alto que nunca seu desprezo para com a burguesia, urrar contra sua vulgaridade, cuspir na irrealidade que ela escolheu como única realidade, não ceder nenhum ato e nenhuma palavra no ódio total contra as burguesias, suas polícias, seus magistrados, suas televisões e seus jornais ».

Mal se levantou o sol e eis-me já no mercado. Ouço a voz do imã salmodiando palavras corânicas nesta bela língua árabe, musical e forte, como o vento do deserto.

Me abasteço : compro um pão kisra, tâmaras e leite, depois me dirijo à « Gruta de Daïa », onde as mulheres vêm invocar a santa Lalla Saliha, a dama que facilita as coisas. Todas as mutações que sacodem a sociedade argelina e o mundo não têm nenhum poder sobre  Ghardaïa; ela permanece majestosamente simples e fiel a suas tradições ancestrais.  

Detenho-me sob uma palmeira e, com os olhos semicerrados, revejo a cena de Nourredine com as três moças no banho, um trecho de teu filme « as mil e uma noites ».

« - Portador, olhe bem e não erre : como se chama isso? – diz a primeira moça, apontando a parte íntima de seu corpo.

Pombo, respondeu Nourredine.

Não, diz a moça, é a erva perfumada do prado.

Então louvada seja ela, respondeu Nourredine.

Agora é minha vez, disse a segunda moça. Portador, venha aqui. Como você chama isso?- disse ela mostrando também sua parte íntima.

Erva perfumada do prado, respondeu Nourredine.

Idiota, não é isso – diz a moça – é a romã descascada

Portador, chegue mais perto e não erre : como se chama isso? – disse a terceira moça, imitando suas duas colegas.

Romã descascada, respondeu Nourredine.

Não, idiota, é o albergue da boa acolhida.

Mas então, qual o nome disso? – se enervou Nourredine, mostrando ele mesmo sua parte íntima.

É o burro que pasta a erva perfumada do prado, que come a romã descascada e passa a noite no albergue da boa acolhida – explicou ele, explodindo de rir. »

Pasolini, tu, o último poeta expressionista, tu, o homem emocionante, humano e cativante, tu te tornaste meu amigo.



Leila Salem



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