sábado, 22 de abril de 2017

"Mãos Limpas" e a 'engenheirização' da corrupção - Entrevista com o juiz Antonio Di Pietro

30/3/2015, redazionekeynesMilão, Itália






Ver também
 13/4/2015, Motta Araújo, "O desastre político e econômico da Operação Mãos Limpas", JornalGGN





Antonio Di Pietro, nascido em 1950, é político, advogado e ex-juiz. Vice-Procurador no Tribunal de Milão fez parte do grupo de juristas que trabalharam na "Operação Mãos Limpas". Entrou na política em 1996, como católico liberal de centro, e em 1998, fundou o partido "Itália dos Valores", do qual se separou em outubro de 2014. Di Pietro concedeu essa entrevista ao nosso pessoal, respondendo a perguntas sobre "Mãos Limpas", política e sua carreira política pessoal.

PERGUNTA: A época da Operação Mãos Limpas – todos recordam, foi caracterizada por uma série de investigações judiciais feitas entre 1992 e 1996 em plano nacional que envolveram políticos, membros de órgãos econômicos e de instituições italianas – foi dada por encerrada há cerca de vinte anos. Neste momento o que mudou na Itália sobre a legalidade do mundo político? Não lhe parece que tudo continua praticamente sem alteração alguma?

ANTONIO DI PIETRO: Talvez sim, continue tudo como sempre foi. Ao longo dos anos houve uma "engenheirização" da corrupção, hoje muito mais difícil de combater, a prevaricação enraizou.
Atualmente juízes que descobrem irregularidades 'selecionadas', umas sim, outras não, são tão culpados quanto a política, a economia. E as instituições são feitas principalmente a partir de personagens 'reciclados'. Pessoas que, na maioria são filhos de essas expressões que levaram ao escândalo de Tangentopoli[1] e a tanta coisa mais ... Infelizmente , vinte anos depois, só posso chegar a este fim.


PERGUNTA: Em fevereiro de '92 um pool de Procuradores da Procuradoria de Milão conseguiu quebrar a conspiração de silêncio entre o mundo dos negócios, da política e das instituições, abrindo o caminho para que se estabelecesse alguma verdade. No momento da prisão de Mario Chiesa ele estava ciente da expansão extraordinária de corrupção? E quais foram os primeiros movimentos do judiciário?

ANTONIO DI PIETRO: 1992 podemos dizer que foi o clímax, a chave para muitos processos em cidades 'semelhantes' (Milão, Palermo, Turim), que também fizeram investigações detalhadas. Foram vários escândalos: o caso do Banco Ambrosiano, a venda do Instituto para a Reconstrução Industrial (it. IRI) a descoberta da rede Propaganda 2 (P2, loja maçônica), as negociações entre o Estado italiano e a Cosa Nostra ...

Naquele ano, fui o único, no começo da investigação Mãos Limpas; o pool entrou em ação só mais tarde, quando houve a necessidade de mais gente. No plano processual eu já tinha feito várias pesquisas que mostravam um sistema entrincheirado e testado entre negócios, política e instituições. Minha investigação fazia referência clara às muitas investigações judiciais em curso naquele momento, tais como Lombardia Informatica, Carceri d’oro, Patenti Facili, Oltrepò Pavese, Alluvione in Valtellina, terrenos em Milão... Posso dizer que, antes, eu já tinha tentado várias vezes encontrar a chave para o submundo, à procura de um modo de abordar o crime de corrupção. Mas, com a prisão de Mario Chiesa e o escândalo do Pio Albergo Trivulzio já estava tudo a vista, ou tudo escondido, dependendo do ponto de vista.

PERGUNTA: 1992 foi o ano de máxima degradação do sistema político na Itália. Morreram nesse ano os juízes Falcone e Borsellino, Cossiga renunciou e Scalfaro o sucedeu. As pessoas tomaram as ruas, ao mesmo tempo, manifestando uma profunda necessidade de justiça. De acordo com Ezio Mauro, a 1ª República, como regime, estava morrendo. Na investigação, foi descoberto que os principais grupos industriais, praticamente todos, financiavam partidos políticos (Democracia Cristã, os socialistas, os republicanos). Tudo aquilo derreteu, em menos de dois anos. Parecia o fim da República. Mas não. Em vez de fim daquilo tudo, a coisa, pode-se dizer, recomeçou! Foi o início de um novo período, e um líder carismático, oportunista, que colheu a oportunidade... estou falando de Silvio Berlusconi. O que você pode nos dizer dessa passagem, da 1ª para a 2ª República?

ANTONIO DI PIETRO: Essa transição de uma República à outra é a maior fraude do pós-guerra. Estamos sempre na mesma República, onde há pessoas de bem, como talvez Aldo Moro, Piersanti Mattarella, Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, e de gente corrupta. Nesse período, sempre o mesmo, o sistema ilegal desenvolveu-se e adaptou-se para viver melhor, como que se aprimorou, aprendeu melhor a escapar das investigações. Mas quero lembrar que nem só os grandes industriais financiavam partidos e políticos eleitos. Havia também um acordo, como um sistema, pelo qual os partidos normalmente recebiam os fundos e distribuíam a pessoas, políticos e funcionários públicos de carne e osso (motivo pelo qual os fundos eram encontrados em contas pessoais, não na contabilidade de algum partido. O financiamento para partidos passou a ser financiamento para pessoas).

E ninguém escapava. Sejamos bem claros, a direita, mas também a esquerda estava no 'esquema', até o pescoço. A corrupção espalhara-se, disseminara-se, para associações, cooperativas. Funcionava mais ou menos assim:

– criavam-se empresas temporárias, de fachada;
– sempre uma grande empresa associada a um determinado partido: e 
– concorrências e propostas eram manipuladas; nem importa quem ganhou uma ou outra obra, porque mais cedo ou mais tarde, todos ganhavam o que queriam.

A característica de que a esquerda seria melhor, que se chamou o "melhorismo" dos partidos da esquerda foi um engodo, para escapar das consequências penais. Acho ainda mais imoral, conseguiram fugir, escondendo os subornos em contratos de contratação de algumas cooperativas.

PERGUNTA: Muitos entendem que, com a coisa das "mãos limpas" a qualquer custo, todos perderam, os culpados, e corruptos, mas também o Judiciário e os cidadãos respeitadores da lei. Que a Operação Mãos Limpas limpou pouco, e, talvez indiretamente, nos pôs sob governo de Berlusconni e criou a situação atual . Qual foi o maior erro de que a Operação Mãos Limpas cometeu?

ANTONIO DI PIETRO: É verdade que muitos entendem que todos perderam, que foi uma derrota, mas na realidade foi uma operação que, mais ou menos, começou a controlar a doença da corrupção na Itália. Que a doença não tenha sido erradicada não é culpa de quem expôs a patologia. Pessoalmente não me sinto derrotado. Mas resta uma amargura, porque quem deveria ter intervindo e agido, nem interveio nem agiu. 

A Operação Mãos Limpas não contribuiu para criar a situação atual, mas pode ajudar a compreender a fase pela qual passa a Itália.  A ideia de que a justiça tenha sido derrotada é falsa, efeito de um sistema doentio de 'informação' que só fez martelar incansavelmente a mente dos italianos e realmente 'dirigiu' a opinião pública. Os italianos acabaram por já não saber a diferença entre uma batalha entre a lei e o criminoso, e a batalha entre dois bandos criminosos. Na verdade, os que conseguimos nos organizar (não falo só dos juízes em Milão, contemporaneamente, até do gemello della Palermo dell’omertà) chegamos a resultados extraordinários. Do norte ao sul, conseguimos colaborar e definir um sistema que mostrava que, em Milão, o jogo se dava entre o corrupto e o corruptor; em Palermo era mais amplo, via-se a influência também na política, com compra de votos e de leis, ação de corrupção também pela imprensa (contratos ilegais) e a máfia (que tudo regulava como intermediário).

Equipe da Mãos Limpas, foto do arquivo pessoal de A. Di Pietro

PERGUNTA: Em declaração recente, o Procurador Davigo admitiu que o pool da Operação Mãos Limpas, em vez de enfraquecer a corrupção tornou-a ainda mais poderosa, com leis que, ao longo dos anos favoreceram os mais corruptos a ponto de torná-los inalcançáveis pela lei. Que a Operação Mãos Limpas teria batido no fraco e fortalecido ainda mais os mais fortes. É também sua opinião? Por quê?

ANTONIO DI PIETRO: Meu querido amigo Piercamillo Davigo nesse caso, quer destacar que, assim como há a seleção natural no mundo físico, também um processo de uma investigação há uma espécie de lógica do mais forte, que não significa que o mais forte ou mais perigoso seja 'protegido' ou 'beneficiado' mas, simplesmente, que o mais forte tem mais meios ou é mais esperto e consegue escapar. 

A Operação Mãos Limpas mostrou que há três tipos, todos tipicamente corruptos:

– o que colabora com a magistratura;
– o que não fala ou nega até o óbvio, evidente; e um tipo novo, recém surgido e em crescimento,
– o que se elege ou elege um procurador e faz as leis necessárias para não ser processado.

Infelizmente, o tipo que mais rapidamente prosperou nos últimos anos é esse terceiro.

PERGUNTA: Em 6/12/1994, o senhor escolheu demitir-se e deixar o poder judiciário. Por quê? Ali começou sua carreira política: o senhor foi Ministro das Obras Públicas em 1996; e dia 21/3/1998 o senhor fundou o partido Itália Dos Valores, IDV; aproximou-se dos Democratas, e em 2000 novamente se afastou. Em 2005, juntou-se à coalizão União. e em 2006 foi Ministro da Infraestrutura no segundo governo Prodi. Sua carreira alternou altos e baixos. Que tipo de política fez nos últimos anos? Arrepende-se de alguma coisa?

ANTONIO DI PIETRO: Muitos supõem que deixei a magistratura em 1994, mas não, foi em 1995, quando tomei posse como consultor da Comissão Parlamentar de Inquérito do sobre a investigação do Uno Bianca. Em 95 renunciei, mas não para fazer política – que só comecei a fazer livremente, dois anos mais tarde – e, sim, para poder combater a onda de difamação e de 'dossiês' de que fui vítima naqueles anos e que ameaçava atingir também o trabalho da Operação Mãos Limpas, no esforço para fazer reviver o sistema de corrupção que havia sido exposto. 

Desde o dia da minha demissão, conduzi 16 processos (com absolvição em todos eles) e até hoje ainda há 861 processos em andamento por difamação, calúnia e insulto. Uma enorme provação!

Nesses anos creio que promovi uma boa política. Porque logo em 2006, imediatamente depois de nomeado Ministro da Infraestrutura, afastei do ministério Ettore Incalza (hoje no centro do inquérito Perotti) e fiz o mesmo com Angelo Balduzzi (interrogado pelo G8 na Maddalena); introduzi a rotação dos dirigentes superiores – de que tanto se fala hoje – já a implantei há 16 anos. Nos meus anos como político bati-me em vários fronts, mas dediquei-me especialmente a dois: promover a troca generacional de políticos e administradores, e a transparência na administração pública.

PERGUNTA: Em outubro de 2014, sem concordar com a política de seu partido, o senhor decidiu abandonar Itália Dos Valores. O que significa isso? Voltaremos a contar com o senhor na vida política?

ANTONIO DI PIETRO: Deixei o IDV sem rompantes, mas como um pai respeitado. Preferia que o partido adotasse posição mais democrática. No momento em que decidiu apoiar o Governo Renzi, aprovando as reformas e aliando-se ao centro-direita, preferi afastar-me e não me ocupar mais com política. Tirei, pode-se dizer, um ano sabático, para me dedicar à minha família, que negligenciei por trinta anos. Sinceramente não posso dizer se voltarei à política ou ao serviço público. Por hora, não tenho nenhuma vontade. Imagine que há poucos dias apresentei minha candidatura, como possibilidade, à prefeitura de Milão, e os partidos já deram sinais de que não me querem lá. Por que têm tanto medo de me ver de volta à política?

PERGUNTA: Falemos de legalidade. Que papel tem a política na produção e na administração das leis?

ANTONIO DI PIETRO: Cabe à política fazer leis que realmente garantam que se faça justiça. Hoje, se faz lei pela lei, muitas vezes leis para promover a injustiça, contra a justiça substancial. A política deve participar, sim, do processo de produzir a legalidade. Deve dar um bom exemplo aos cidadãos.

PERGUNTA: Uma pergunta inevitável, que conselho o senhor tem, para as gerações futuras?


ANTONIO DI PIETRO: Eu realmente tenho que me forçar! Gostaria de fazer uma afirmação positiva e de esperança, mas eu tenho que fazê-lo a partir de uma história pessoal. (...) O que quero dizer é que para os jovens de hoje é mais difícil do que foi para mim. É um pouco 'como jogar um jogo de futebol, seguindo as regras, mas com muitos truques e maquiadores'. Nesses casos, recomendo não desistir e, sempre, jogar para o time!*****



[1] A Operação Mãos Limpas (em italiano: Mani pulite), foi inicialmente chamada "Caso Tangentopoli" [lit. "cidade do suborno" ou "cidade da propina", termo cunhado por Piero Colaprico, cronista do jornal la Repubblica, referindo-se à cidade de Milão]. Mais sobre o assunto em, Das Mani Pulite a antipolítica (1992-2012) ,16/2/2012Altalex, Itália (it.), em https://goo.gl/VEzL9b [NTs].

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