sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Sputnik entrevista The Saker sobre a Síria

3/8/2017, The Saker, Vineyard of the Saker












Sputnik: O que há por trás da decisão de Donald Trump de pôr fim ao programa da CIA para armar clandestinamente os chamados "rebeldes sírios"? Como isso afetará as posições dos EUA na Síria? Ajudará o Exército Árabe Sírio a derrotar al-Qaeda e Daech e a restaurar a soberania do país?

The Saker: Acho que os norte-americanos afinal desistiram, pelo menos temporariamente, dos tais "terroristas do bem" (também conhecidos como Exército Sírio Livre), simplesmente porque não tiveram alternativa. Em termos militares, a coalizão Síria-Irã-Rússia-Hezbollah está vencendo; o Daech está nas cordas; e os tais "terroristas do bem" concluíram (acertadamente) que o melhor negócio possível para eles é aceitar a proposta que a Rússia lhes fez, no processo de negociação, em vez de serem eliminados junto com os demais terroristas linha-duríssima do Daech.

Sputnik: Enquanto isso, a aliança das Forças Sírias Democráticas [apoiadas pelos EUA] dominadas pela milícia curda YPGcontinua a ganhar terreno no norte da Síria. É possível que a suspensão do programa clandestino da CIA seja simplesmente um modo de fortalecer as posições do Pentágono na Síria? (Noticiou-se que tem havido repetidos confrontos entre as Forças Sírias Democráticas apoiadas pelo Pentágono e os militantes sírios apoiados pela CIA. É possível que o movimento de Trump signifique que ele esteja buscando mais apoio do Departamento da Defesa, ao mesmo tempo em que tenta reduzir o poder da CIA?

The Saker: Os curdos são os únicos candidatos possíveis à função de "coturnos em solo" a serviço dos EUA. Não surpreende que os norte-americanos tentem usá-los, seja como for. Isso, por sua vez, implica que os norte-americanos terão de dar *algo* aos curdos, como uma promessa de que, de algum modo, terão um Curdistão ou algo semelhante, mais ou menos independente. Sem isso, por que os curdos se prestariam àquele papel? Além disso, os curdos são a única força com competências de combate e que não é parte da coalizão Síria-Irã-Rússia-Hezbollah, o que faz deles aliados potenciais extremamente atraentes para os EUA. O problema é que ninguém, nem Turquia, nem Síria, nem Iraque, nem Irã, quer qualquer tipo de Curdistão independente, especialmente não, se for independente "de direito". Assim sendo, os curdos só permanecerão lutando na Síria enquanto os grandes (Turquia, Irã, Síria) estiverem dispostos a tolerá-los por ali. Mas se forçarem a mão, serão contidos.

SputnikO que o senhor pensa das tentativas dos curdos de realizarem eleição local em Rojava? O governo Trump apoiará as aspirações curdas à independência? Washington ainda tem planos para aplicar o chamado "plano B de Kerry", para dividir a Síria? Como isso pode ser evitado?

The Saker: Estou convencido de que os EUA eventualmente tentarão dividir a Síria. É estratégia típica dos EUA: o que não podem controlar, eles tentam espatifar. Além do quê há Israel, que é ator chave, embora clandestino, em tudo isso, e também sempre quererá enfraquecer a Síria o mais possível, inclusive fazendo em cacos o país. A boa notícia é que a Rússia opõe-se a esse plano e que Irã e Turquia também se opõem, como efeito direto da oposição que fazem à criação de qualquer tipo de Curdistão. Essa realidade em campo significa que qualquer plano dos EUA para criar qualquer tipo de Curdistão para enfraquecer a Síria e pressionar Turquia e Irã acabará no ar, como sonho ou delírio. Há uma razão excelente que explica muito bem por que até agora não surgiu qualquer Curdistão: ninguém na região quer que aconteça.

Sputnik: É possível que os EUA estejam apoiando clandestinamente a independência dos curdos no Irã e na Síria, tentando criar um ator completamente novo na região, que cogitam usar para pressionar e, se preciso, no longo prazo, minar Iraque, Irã, Síria e Turquia? Washington estará tentando realizar o conhecido plano de Ralph Peters e redesenhar o mapa do Oriente Médio?

The Saker: Sempre – insisto: sempre – foi política dos EUA apoiar minorias contra maiorias. E, por mais que essa política venha embalada em muita conversa 'ética' e 'democrática', sobre direitos humanos, autodeterminação e liberdade, o real motivo é muito primitivo: as maiorias não necessitam dos EUA, não dependem dos EUA, para mandar. Minorias, sim, necessitam e precisam dos EUA para ter algum poder. Assim, qualquer minoria que aceite o apoio dos EUA torna-se dependente desse apoio até para sobreviver. Isso, inevitavelmente, faz de qualquer minoria uma ferramenta obediente nas mãos das políticas globais imperiais dos EUA. A situação com os curdos é exatamente isso.

O único meio para escapar dessa armadilha é a minoria aceitar acordo que lhe dê "menos que o ideal" com algum poder majoritário local, e não depender dos EUA para sobreviver. Até aqui, diferentes facções curdas têm adotado diferentes abordagens para sair desse dilema, o que complica ainda mais a situação.

SputnikOs EUA realmente desistiram do plano para derrubar Assad? O que há por trás dessa aparente "mudança de fundo"?

The Saker: Por enquanto, sim, parece que sim. Quanto a o que haveria por trás dessa mudança – eu diria que é a realidade em campo. Não acho que alguém, além de McCain, crê seriamente que o governo sírio será derrotado, muito menos por grupelhos minúsculos (e completamente ficcionais) de "terroristas do bem". A CIA e o Pentágono provavelmente concluíram que não estão conseguindo coisa alguma com os tais planos para derrubar Assad.

SputnikO que o senhor pensa da possibilidade de se criar uma coalizão EUA-Rússia na Síria?

The Saker: Havia real possibilidade até que Trump basicamente se rendeu aos neoconservadores. Agora que o Congresso dos EUA na essência já neutralizou Trump e a histeria russofóbica alcança picos cada vez mais altos, não acho que Trump possa fazer coisa alguma que tenha substância, com a Rússia, sem parecer agir como algum tipo de "agente de Putin". O que os neoconservadores fizeram foi autolobotomia em todos os membros do Executivo dos EUA, que hoje estão completamente incapazes para lidar inteligentemente com qualquer situação que envolva a Rússia. E péssimo, é de dar vergonha, porque o potencial de ação conjunta a favor de interesses comuns é imenso. Mas a mesquinha política interna dos EUA arruinou todo aquele potencial.

Sputnik: Qual seu prognóstico para novas ações militares na Síria: o Exército Árabe Sírio conseguirá restaurar a unidade nacional? Em que medida? O que farão os EUA se as Forças Sírias Democráticas libertarem Raqqa? O Daech porá fim nas atividades na Síria ou apenas mergulhará na clandestinidade e manterá a luta, como a Al-Qaeda fez no Iraque, depois da invasão dos EUA? O que é preciso fazer para derrotar completamente o Daech?

The Saker: Para usar um exemplo russo, a situação na Síria é muito mais semelhante à situação no Daguestão, que à situação na Chechênia. A Síria é um mosaico de diferentes grupos étnicos e grupos religiosos que todos têm diferentes alinhamentos, agenda e patrocinadores internacionais. Significa que é muito mais fácil manter algum tipo de guerra civil 'em fogo baixo' na Síria, do que seria em país mais homogêneo. Nem Daech nem al-Qaeda desaparecerão sem mais nem menos. Mas terão de reduzir o objetivo e a natureza de suas operações. Quanto ao governo sírio, enfrentará luta sem fim para proteger e manter seguras as zonas que o estado recuperou do controle dos Takfiris. A família Assad e o Partido Baath só conseguirão manter a paz, a lei e a ordem se controlarem com mão de ferro a sociedade síria.

Agora que o nacionalismo secular árabe está em refluxo, e o extremismo religioso está avançando, não há como Bashar al-Assad recriar o tipo de controle que seu pai manteve. Nem pode substituí-lo por uma ordem religiosa como a que se tem no Irã. Por último, mas não menos importante, Israel não passará um dia sem sabotar, subverter e desestabilizar a Síria, para Israel o vizinho mais perigoso, aliado chave do Hezbollah. Por todas essas razões, não vejo a Síria voltando ao estado anterior. Minha esperança é que, com a assistência de Rússia, Irã, Iraque e Hezbollah, a maior parte da Síria será libertada dos doidos Takfiri e que a vida normal da sociedade e sua economia florirão novamente nas áreas libertadas. Mas terroristas como os do Daech muito provavelmente permanecerão escondidos nos desertos da Síria, ainda por muito tempo.*****

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