20/10/2017, John Pilger, Counterpunch
Dia 16 de outubro a Australian Broadcasting Corporation, ABC Australia, pôs no ar uma entrevista com Hillary Clinton: uma de muitas para promover seu livro no qual estabelece uma dita sua verdade sobre por que não foi eleita presidenta dos EUA.
Mover-se pelas páginas do livro de Clinton What Happened [O que Aconteceu] é experiência desagradável, de revirar o estômago. Só calúnias e lágrimas. Ameaças e inimigos. "Eles" (os eleitores) sofreram lavagem cerebral que os pôs contra ela, culpa do odioso Donald Trump mancomunado com os sinistros eslavos saídos das profundas daquela escuridão macabra chamada Rússia, ajudados por um "niilista" australiano de nome Julian Assange.
No New York Times, viu-se uma espantosa fotografia de uma repórter consolando Clinton, imediatamente depois de a ter entrevistado. A líder que os EUA perderam seria, sobretudo, "absolutamente uma feminista". Os milhares de vidas de mulheres que a dita "feminista" destruiu enquanto foi governo – na Líbia, na Síria, em Honduras — não contam nem interessam a ninguém.
Na revista New York, Rebecca Traister escreveu que Clinton estava finalmente "expressando alguma justa ira". Até hoje é difícil para Clinton sorrir: "tão difícil, que os músculos do rosto lhe doem". Claro, conclui a moça: "se admitíssemos ressentimentos femininos como admitimos resmungos dos homens, os EUA seriam obrigados a lidar com o fato de que todas essas mulheres zangadas podem ter mesmo razão".
Baba desse tipo, que trivializa as lutas das mulheres, marca a imprensa de hagiografia pró Hillary Clinton. O extremismo político e o belicismo, suas marcas indeléveis, são tratados como coisa sem importância e sem qualquer consequência. O problema, escreveu Traister, foi uma "obsessão doentia" pela história dos emails". Em outras palavras: pela verdade.
Os e-mails do coordenador de campanha de Clinton, John Podesta, que vazaram, revelaram uma conexão direta entre Clinton e a criação e o financiamento do jihadismo organizado no Oriente Médio e com o "Estado Islâmico" (EI). A Arábia Saudita, fonte essencial de quase todo o terrorismo islamista, foi fator crucial para o crescimento da carreira dela.
Um email, em 2014, enviado por Clinton a Podesta pouco depois de ela ter deixado o posto de secretária de Estado dos EUA, revela que o grupo EI é financiado pelos governos de Arábia Saudita e Qatar. Clinton aceitou quantias descomunais de dinheiro desses dois governos para a Fundação Clinton.
Como secretária de Estado, ela aprovou a maior venda de armas de toda a história para seus benfeitores na Arábia Saudita, negócio de mais de $80 bilhões. Graças a ela, as vendas de armas dos EUA para todo o mundo – para serem usadas contra países devastados, como o Iêmen – dobraram.
Tudo isso foi revelado por WikiLeaks e publicado pelo New York Times. Ninguém duvida da autenticidade dos emails. A campanha subsequente de assassinato de caráter contra WikiLeaks e seu editor-chefe Julian Assange, apresentados como "agentes a serviço da Rússia", cresceu e converteu-se numa fantasia de proporções monstro chamada "Russiagate". O "enredo" teria sido concebido e posto em execução por Vladimir Putin em pessoa. Ninguém jamais encontrou nem fiapo de prova disso.
A entrevista com Clinton que ABC Australia publicou é exemplo impressionante de mentira e censura política por omissão. Pode-se dizer que é modelar.
"Ninguém" – diz a Clinton a entrevistadora Sarah Ferguson – "deixaria de se emocionar com a dor estampada em seu rosto naquele momento [na posse de Trump] … Lembra-se de o quanto aquilo foi visceral, para a senhora?"
Tendo assim 'noticiado' que Clinton sofreu visceralmente, Ferguson pergunta sobre o "papel da Rússia".
CLINTON: Acho que a Rússia afetou a percepção e a visão de milhões de eleitores, hoje já sabemos. Acho que a intenção deles, que veio de cima, de Putin, era ferir-me e ajudar Trump.
FERGUSON: Quanto disso tudo foi vingança pessoal de Vladimir Putin contra a senhora?
CLINTON: … Quero dizer... Ele quer desestabilizar a democracia. Quer enfraquecer a América, quer atacar a Aliança Atlântica, e consideramos que a Austrália... é uma espécie de extensão do que ele quer agredir…
Mentira. A verdade é o contrário disso. São os exércitos ocidentais que se aproximaram e agora se acumulam junto à fronteira da Rússia, pela primeira vez em 100 anos, desde a Revolução Russa.
FERGUSON: Quanto mal fez ele [Julian Assange] pessoalmente contra a senhora?
CLINTON: Bem, tenho muita história com ele, porque eu era secretária de Estado quando (...ah) WikiLeaks publicou grande quantidade de informação sensível de nosso Departamento de Estado e de nosso Departamento da Defesa.
O que Clinton não diz – e a entrevistadora não se interessa por fazê-la lembrar – é que em 2010, WikiLeaks revelou que a secretária de Estado Hillary Clinton ordenou uma campanha secreta contra a liderança da ONU, inclusive contra o secretário-geral Ban Ki-moon, e contra os representantes de China, Rússia, França e Reino Unido no Conselho de Segurança.
Uma ordem secreta, assinada por Clinton, foi distribuída a diplomatas dos EUA em julho de 2009, exigindo detalhes de perícias forenses sobre os sistemas de comunicações usados pelos principais funcionários da ONU, inclusive senhas e chaves pessoais de encriptação usadas em redes privadas e comerciais.
A coisa ficou conhecida como "Cablegate". Não passou de espionagem ilegal.
CLINTON: Ele [Assange] é muito evidentemente ferramenta da inteligência russa. E (...ah), fez o serviço.
Clinton nada acrescentou que servisse como prova dessa acusação tão grave. E Ferguson nem cogitou de insistir.
CLINTON: Ninguém vê informação negativa saída do Kremlin contra WikiLeaks. Ninguém jamais viu publicada qualquer coisa desse tipo.
Mentira. WikiLeaks publicou quantidade massiva de documentos sobre a Rússia – mais de 800 mil documentos, a maioria dos quais críticos, muitos dos quais usados em livros e apresentados como prova perante tribunais.
CLINTON: Acho que Assange converteu-se numa espécie de oportunista niilista que presta serviços a um ditador.
FERGUSON: Muita gente, inclusive na Austrália, acha que Assange é um mártir da luta pela liberdade de manifestação e de informação. Como a senhora o descreve. Já o descreveu como niilista.
CLINTON: Ah, sim, e uma ferramenta. Quero dizer, é ferramenta da inteligência russa. E se é, você diz, mártir da liberdade de expressão, porque WikiLeaks nunca publica segredos da Rússia?
Mentira. E outra vez a jornalista nada diz que corrija a informação ou pressione a entrevistada.
CLINTON: Houve operação concertada entre WikiLeaks e Rússia e muito provavelmente também com gente dos EUA para converter aquela informação em arma, para inventar histórias... para ajudar Trump.
FERGUSON: Além de algumas histórias exageradas, circulou informação sobre a Fundação Clinton, que pelo menos na mente de alguns eleitores pareceram associadas à senhora ….CLINTON: Sim, mas era falso!
FERGUSON: … e ao tráfico de influência...
CLINTON: Era falso! Era totalmente falso!
FERGUSON: A senhora compreende o quanto ficou difícil para alguns eleitores compreender as quantidades de dinheiro que a Fundação [Clinton] está recebendo, a confusão com a consultoria que também está arrecadando dinheiro, dando presentes e viagens e tal e tal, a Bill Clinton e até a Chelsea, e que tinham questões pendentes? …
CLINTON: Bem, quero dizer, sinto muito, Sarah, quero dizer, os fatos eu conheço.
A jornalista da rede ABC e entrevistadora saudou Clinton como "ícone de nossa geração". Não lhe fez sequer uma pergunta sobre as quantias gigantescas de dinheiro que ela extraiu de Wall Street, como os $675 mil dólares que recebeu por uma palestra no banco Goldman Sachs, um dos bancos que esteve no centro do crash de 2008. A ganância insaciável de Clinton perturbou profundamente a faixa de eleitores que ela agrediu, chamando-os de "os deploráveis".
Claramente à procura de manchete barata para a imprensa australiana, Ferguson perguntou a Clinton se Trump era "perigo presente e ostensivo para a Austrália" e recebeu a resposta que previu e desejava.
Essa jornalista dita 'de prestígio' não mencionou o "perigo presente e ostensivo" que é ela, Clinton, para o povo do Irã, que ela uma vez ameaçou "destruir totalmente", e para os 40 mil líbios que morreram no ataque contra a Líbia, em 2011, orquestrado por ela. De faces rosadas de excitação, mãos cerradas, a secretária de Estado riu e festejou o horrendo assassinato do líder líbio, coronel Gaddafi.
"A Líbia foi guerra de Hillary Clinton" – disse Julian Assange em entrevista filmada que me concedeu ano passado. "Barack Obama opôs-se inicialmente. Quem insistiu e insistiu em que a guerra começasse? Hillary Clinton. Está tudo documentado nos emails dela… há mais de 1.700 emails dos 33 mil emails de Hillary Clinton que publicamos sobre a Líbia. Não foi o petróleo barato da Líbia. Ela viu na ação de remover Gaddafi e derrubar o estado líbio algo que ela poderia usar na trilha até a eleição geral para a presidência.
"Então, no final de 2011 há um documento interno chamado o Tick Tock da Líbia que foi produzido por Hillary Clinton, e é a descrição de como ela era a figura central na destruição do estado líbio, que resultou em cerca de 40 mil mortos dentro da Líbia; jihadistas foram para lá, o ISIS foi para lá, o que levou à crise europeia de refugiados e migrantes.
"Há não só gente que foge da Líbia, gente que foge da Síria, a desestabilização de outros países africanos como resultado dos fluxos de armas, mas o próprio estado líbio já não consegue controlar o movimento das pessoas dentro do próprio país."
Essa, sim, foi a história real – não alguma dor "visceral" de Clinton, por perder eleições para Trump, nem todo o resto de autopromoção e subserviência, naquela patética entrevista à ABC. Clinton é também responsável pela desestabilização massiva no Oriente Médio, que levou à morte e ao padecimento homens, mulheres e crianças e os obrigou a fugir.
Ferguson não disse uma palavra sobre isso. Clinton ficou livre para caluniar Assange repetidas vezes, sem quem o defendesse ou lhe garantisse o direito de responder numa rede de comunicação comercial de seu próprio país.
Em tuíto de Londres, Assange citou o próprio Código de Conduta da rede ABC que diz: "Nos casos em que se façam acusações a pessoas ou empresas, empreender esforços razoáveis nas dadas circunstâncias para assegurar uma justa oportunidade para responder."
Depois da apresentação na TV, a produtora executiva de Ferguson, Sally Neighbour, re-tuitou o seguinte: "Assange é puta de Putin. Todos sabemos!"
A ofensa sórdida, imediatamente deletada, foi usada como link para a entrevista do canal ABC, redigida como 'Assange é p**a de Putin. Todos sabemos!'
Ao longo dos anos que conheço Julian Assange, assisti a uma continuada campanha de furiosas ofensas pessoais para detê-lo e deter WikiLeaks. Foi assalto direto contra o serviço que prestam os sentinelas que, enfrentando riscos graves, alertam para os crimes em curso [ing. whistleblowing], contra a livre manifestação do pensamento e o jornalismo livre, tudo que continua também sob ataque ininterrupto por governos ditatoriais e empresas que controlam a internet.
O primeiro ataque sério contra Assange veio do Guardian que, feito amante desprezada, atirou-se ferozmente contra sua antiga fonte, depois de muito ter lucrado com as revelações de WikiLeaks. Sem jamais pagar um vintém a Assange ou WikiLeaks, um livro editado pelo jornal Guardian levou a um polpudo contrato com Hollywood e a um filme. Assange foi apresentado como homem de personalidade "insensível" e "perturbada".
Foi como se um ciúme obsessivo e sempre crescente, que não conseguia reconhecer a distância que separava o notável trabalho e as impressionantes realizações de Assange, e, muito abaixo e em vergonhoso contraste, o que fazem seus detratores na mídia-empresa "dominante". É como ver os guardiões do status quo, independente da idade e dos tempos, sempre empenhados em tentar silenciar a verdadeira opinião divergente e impedir que o novo e a esperança prosperem.
Hoje, Assange ainda vive como refugiado político, vítima das máquinas de produzir guerras das quais Donald Trump é caricatura, e Hillary Clinton, encarnação. A coragem e a capacidade de resistir de Assange são impressionantes. Tão diferentes dele, os e as que o perseguem não passam de poltrões e poltronas.*****
Assange é um verdadeiro herói. Vida longa e liberdade para ele.
ResponderExcluir(aka, "Killary")
ResponderExcluirExcelente.
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