sábado, 3 de fevereiro de 2018

Democratizar é polarizar e desgastar instituições envelhecidas e/ou velhacas



Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu




Muitas vezes é preciso quebrar as regras, para criar sistema mais democrático.

Há duas ou três semanas, tive uma intuição, um lampejo de pensamento que desde então não me sai da cabeça: o discurso que monopoliza as discussões nos EUA, sobre 'desgaste das instituições', nada tem, de fato, com Trump. Nada tem a ver com autoritarismo. Só tem a ver, mesmo, com "extremismo", esse cavalo velho e manco do liberalismo da Guerra Fria. E, mesmo que o tal discurso sobre 'desgaste das instituições' pouco possa conseguir em matéria de conter Trump e os Republicanos mais retrógrados, a real contribuição será demarcar os limites externos da política da esquerda, bem no momento em que se vê uma esquerda que parece desejosa de forçar aqueles limites. Esse foi o lampejo de ideia que em passou pela cabeça.

E agora aparece no New York Times essa coluna assinada por Steven Levitsky e Daniel Zilblatt, dois dos principais especialistas acadêmicos em 'desgaste das instituições'. Ninguém encontrará naquela coluna a palavra autoritarismo, embora haja uma rápida referência aos "impulsos autocráticos de Trump". O que mais se encontra lá, isso sim, é grave preocupação com a tal de "disfunção" e com a tal de "crise".

O que lá se vê é o seguinte:


Os Democratas estão começando a responder na mesma moeda. A recente ação de bloquear as votações, o que levou ao trancamento do governo, copiou a 'ação' do manual de Gingrich. E se reconquistarem a maioria do Senado em 2018, já se fala de poderem negar ao presidente Trump a oportunidade de nomear juiz para a Suprema Corte. Essa espiral é perigosa.


Agora imaginem – me acompanhem –, que estamos em 2020, Sanders é eleito com Partido Democrata de certo modo radicalizado no Congresso. Ou, se isso é demais para engolir, imaginem versão diferente da mesma hipótese (sem Sanders necessariamente, ou sem Democratas, mas com alguma esquerda eleitoral empoderada) em 2024. Ou um realinhamento do tipo que os EUA já tiveram em 1932. Realinhamentos sempre envolvem algum tipo de contestar normas; realinhamentos mudam normas; realinhamentos atropelam normas. E todos esses conselhos contra o desgaste das normas e a polarização – que muita gente na mídia e na academia está hoje invocando contra Trump e os Republicanos – correrão então contra a esquerda.

E como não o fariam? Quando você fixa "normas" como seu padrão, sem avaliar a específica valência democrática das normas em cada instância; e os projetos aos quais estão conectadas, como se poderá saber se uma norma contribui para a democracia, em sentido substantivo ou procedimental, ou se as trai e afasta-se da democracia? Como avaliar se o desgaste de uma norma ou instituição é bom ou mau, democrático ou antidemocrático?

Levitsky e Zilblatt mencionam duas normas: tolerância mútua e mútua paciência no exercício do poder. Às vezes a paciência serve à causa da democracia; às vezes, não. Mas à luz do que dizem os autores, uma falta de paciência sempre traria problemas para a democracia.

Considerem esse trecho revelador, daquela coluna:


"Poderia acontecer entre nós? Já aconteceu. Nos anos 1850s, a polarização na discussão sobre a escravatura minaram as normas democráticas nos EUA. Democratas sulistas viam como ameaça existencial o antiescravismo do emergente Partido Republicano. Atacaram os Republicanos como 'traidores da Constituição' e juraram 'jamais permitir que esse governo federal seja entregue às mãos traidoras do Partido Republicano pró-negros'."


Os autores querem apresentar os anos 1850s como um momento que "minou as normas democráticas dos EUA," sugerindo fortemente que antes dos 1850s, haveria gozo robusto de muitas normas democráticas nos EUA. Muitos de nós argumentaríamos que, quando uma banda do povo escravizaoutra banda, negando ao outro lado a própria humanidade, além do voto, não há vigente qualquer norma realmente democrática. (Para nem falar que metade da população dos EUA, branca e preta, sequer tinha direito de votar.) E, embora tivesse sido maravilhoso se os sulistas proprietários de escravostivessem concordado com sair tranquilamente do palco da história, praticamente todos sabemos que nunca foi o caso. 

Fora do sul, escreveu C. Vann Woodward, o fim da escravidão foi "a liquidação de um investimento". No sul, foi "a morte de uma sociedade". Sociedade escravista agonizante não é contexto em que os protagonistas deixem-se apagar sem luta, no silêncio da noite.

Se fosse para eliminar a escravidão, alguém teria de declarar o problema e explicitar a pergunta. Foi o que fizeram os abolicionistas (e o Partido Republicano). Esses polarizaram a sociedade. (Para conhecer um exemplo de como polarizaram, sim, o próprio discurso, leia aqui.) E o resultado – por terrível que tenha sido a Guerra Civil (e que ninguém se engane; foi mais terrível do que você possa imaginar) — não foi a destruição da democracia e de normas democráticas, mas a criação de mais e melhor democracia – um "renascimento da liberdade", como Lincoln descreveu o momento —, liberdade que, na sequência foi logo destruída depois da Reconstrução, a qual também foi política de destruir normas e instituições.

Como Jim Oakes mostrou, os Democratas sulistas norte-americanos acertaram, ao muito temer o Partido Republicano e ao ver naquele partido uma ameaça existencial. Os Republicanos realmente queriam destruir a escravatura, queriam quebrar a espinha dorsal da escravatura, para detonar de vez um modo de vida que viam como ultrapassado. Queriam fazê-lo pacificamente, mas também compreendiam que, se viesse a guerra, seria possível fazer o que queriam fazer, embora pela violência; oportunidade que os Republicanos sulistas não deixariam escapar. 

Os Republicanos norte-americanos abolicionistas eram os mais ativos detonadores de normas naquele momento: não queriam apenas limitar a expansão da escravatura para os territórios (e não se sabe com certeza se limitar a expansão da escravidão foi realmente a norma nos EUA de antes da Guerra Civil; de fato, pode-se dizer que a discussão dessa questão foi muito mais a norma, do que qualquer acordo para conciliar os lados; sobre isso, ver o livro de Mark Graber, Dred Scott); queriam limitar aquela expansão, como prelúdio para destruir a instituição em todo o território. Freedom national.[1]

Levitsky e Zilblatt sabem que o desgaste da norma e a polarização estiveram sempre ativados durante os anos 1850s. Mas querem fazer-crer que toda a 'culpa' pelo desgaste da norma e pela polarização estaria com os proprietários de escravos. Assim fazendo, a dupla pode tomar posição contra o desgaste da norma, sem deixar ver que, com isso, apoiam os escravistas; e conseguem jogar o pecado da polarização integralmente também sobre os Sulistas [Democratas] escravistas; assim conseguem falar contra o desgaste da norma e a polarização, ao mesmo tempo em que desgastam a norma e polarizam a discussão. É politicamente compreensível, em limitado sentido; mas historicamente Levitsky e Zilblatt erram grosseiramente o alvo.

Talvez mesmo, feitas as contas, não seja compreensível sequer politicamente. Porque esse raciocínio sugere – não; porque ele diz – que, se os sulistas tivessem sido tolerantes e tivessem mostrado paciência e moderação [nada de polarização-radicalização] diante do escravismo dos Democratas sulistas, parte significativa da lei escravista teria sobrevivido sem sofrer 'desgaste'...  

Sobre as questões de (i) não se 'desgastar' o escravismo-instituição, e da (ii) legalidade da ordem escravista, Levitsky e Zilblatt nada têm a declarar[assim como a presidenta do STF no Brasil do golpe, no início dos trabalhos do STF em 2018, também nada teve a dizer e até mandou respeitar e acatar a ordem golpista, só muito frouxamente 'legalizada' (NTs)].

(Anoto que Zilblatt e eu tivemos discussão interessante sobre essas questões, pelo Twitter.)

Momento semelhante, talvez menos vicioso, aparece também quando tratam da Constituição:


"Ninguém deve dar a democracia por garantida. Nada há de intrínseco na cultura dos EUA que nos imunize contra ataques à democracia. Nem nossa Constituição tão brilhantemente concebida pode, só ela, garantir a sobrevivência da democracia. Se pudesse, a república não teria mergulhado numa guerra civil, 74 anos depois de nascer."


Um dos últimos livros que Robert Dahl escreveu foi How Democratic is the American Constitution? [Quão democrática é a Constituição dos EUA?] A resposta dele foi: não é muito.

O discurso contra o desgaste da norma (i) reescreve os EUA de antes da Guerra Civil, quando metade do país era sociedade escravista de proprietários de escravos, como se os EUA 50% escravistas fossem sociedade democrática, com normas escravistas que merecessem ser protegidas contra o desgaste e as forças de polarização. Assim também o mesmo discurso (ii) apresenta a Constituição como texto "brilhantemente concebido" embora não muito brilhante no quesito "garantir a sobrevivência da democracia".

O que a coluna evidencia é que o real problema e objeto de preocupação que se identifica no discurso contra desgaste de normas não é algum autoritarismo: é o que lá se chama de 'extremismo' ['sem adjetivos']. 

Essa abordagem apaga a evidência de que há extremismo de democratização (como o dos abolicionistas) e há extremismo de desdemocratização (ou reacionário) (como o dos proprietários de escravos). [Ou, no contexto do Brasil do golpe: a abordagem de 'conciliação a qualquer preço' apaga a evidência de que há o extremismo de desdemocratização (no STF-com-tudo golpista). Infelizmente parece apagar também a evidência de que não há – e muitos ativamente recomendam que nunca haja – extremismo de democratização... (NTs)]. 

Os Republicanos que hoje paralisam o governo nos EUA para impedir que o Estado dê ao povo cobertura integral no atendimento à saúde [ou para não dar ao povo o governo Lula-Dilma escolhido nas urnas] preservam, contra qualquer 'desgaste' de democratização, as mesmas normas antidemocráticas que os Democratas também preservam quando paralisam o governo para permitir que imigrantes vivam nos EUA. [Como o PT conciliador, que preserva o STF golpista, sob a hipótese de que nenhuma lei e nenhuma ordem poderia jamais ser 'desgastada', e nem a ordem poderia ser jamais 'polarizada'... sequer quando sejam lei e ordem golpistas (NTs).] 

Tudo isso implica dizer que os dois lados são igualmente conservadores de uma ordem que não facilita a democratização. Nem um lado nem o outro cogitam de avançar na democratização da sociedade, produzindo cada vez mais e cada vez melhor democracia. Os dois lados estão satisfeitos com a democracia q há...

Para arrochar um pouco mais o parafuso. Consideremos um dos casos que Levitsky e Zilblatt mencionam — o recente fechamento do governo Trump nos EUA. Um dos argumentos mais fortes a favor da ideia de que Trump chefia governo autoritário é o modo como trata os imigrantes. 

Os Democratas trancam o governo, para forçar alguma espécie de acordo que permitiria que centenas de milhares de Dreamers [Sonhadores] permaneçam no país onde já viveram a maior parte da vida. A questão a decidir é:


– assumindo-se que o fechamento do governo leve necessariamente àquele resultado, o fechamento faz a democracia avançar? Ou não passa de lastimável 'desgaste da norma', com aumento não desejável da polarização?


Pode-se dizer que é as duas coisas, e de modo tal que mostra que o avanço da democracia e o desgaste da norma estão ligados entre si: sem a polarização e o desgaste da norma, a democracia não avança. Parece que o desgaste da norma, a polarização e o aprofundamento da democracia não são antitéticos: são aliados.

Se o mais alto valor para alguém é preservar as instituições e evitar a "disfuncionalidade", o discurso contra qualquer desgaste na norma faz sentido. Mas nem tanto, se o mais alto valor for a democracia. Às vezes, só haverá democracia se as instituições e as normas forem radicalmente desgastadas, estraçalhadas.

Reconheço perfeitamente que o diabo mora nesse "às vezes". Há desgastes que minam a democracia, outros a aprimoram. Mas essa é a discussão realmente necessária. Essa é a discussão que temos de fazer! Ninguém precisa de toxina venenosa de espectro tão amplo que paralise todo e qualquer desgaste de toda e qualquer norma: como uma toxina que paralise todas as oposições — e que nos porá num quadro de política de centro e morta, não de política democrática. Precisamos, sim, de discussão bem informada no campo da normatividade, que ajude a sociedade a ver com mais precisão as falhas da democracia, para poder avançar.

Por hora, deixo-lhes apenas esse pensamento, retrato do ponto em que está minha reflexão: democracia é projeto em permanente movimento para desgastar normas e instituições; um perene derrubar as normas e as instituições de hierarquia e dominação e todas as instituições e modalidades políticas que possibilitam a hierarquia e a dominação, que as facilitam ou que não se opõem a elas.*****



[1] Título do discurso, dia 28/8/1852, no Senado dos EUA, de Charles Sumner, de Massachusetts, encaminhando contra a aprovação da "Lei do Escravo Fugitivo" (íntegra, ing.) [NTs].

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