sábado, 3 de março de 2018

Quem faz o que na Síria (2/2): Síria assume a iniciativa

26/2/2018, Ghassan Kadi, The Vineyard of the Saker


Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

Ver também

Quem faz o que na Síria e por que (1/2)10/2/2018, Ghassan Kadi (traduzido em Blog do Alok)
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Em meu artigo anterior "Quem faz o que na Síria e por que", expressei minha visão de que é altamente improvável uma guerra total na Síria. De fato, essa tem sido minha visão, sem alterações, já há anos, contra as teorias belicistas pró-guerra total que sugeriam que os EUA estariam a um passo de bombardear a Síria e reduzir o país a ruínas.

Isso, porque sempre acreditei que a Síria é diferente de todos os demais países contra os quais os EUA inventaram guerras; a Síria tem foguetes que podem alcançar Israel, e basta isso, como fator de contenção que blinda a Síria, com que outros países não podem contar. Se essa realidade formou a base do que se tornou uma sólida aliança entre Síria e Rússia, nada aí deveria nos surpreender.

Não haveria exagero em dizer que esse fator de contenção foi tão efetivo quanto seria um arsenal nuclear sírio. E finalmente, o próprio presidente Assad disse claramente e publicamente, pela primeira vez dito por voz autorizadíssima, não sou eu quem diz, é o presidente da Síria, que, se tropas dos EUA invadirem a Síria, nesse caso a Síria retaliará e atacará Israel.

Esse anúncio gravíssimo não apareceu nas manchetes do jornalismo ocidental. Na verdade, é praticamente impossível encontrar sequer rastros dessa informação em qualquer veículo, nem da grande mídia-empresa nem na mídia dita 'alternativa'.

Tudo isso posto, uma guerra "menor" parece mais inevitável, mas quem puxará o gatilho e atirará primeiro? Terá de ser ou algum maluco procurando briga grande, ou alguém seguro das próprias capacidades e certo de que, na eventualidade de a guerra escalar, aquela pessoa estará em posição vantajosa.

Se Netanyahu tivesse qualquer mínima esperança de vencer algum pequeno enfrentamento com a Síria sem permitir que escalasse para grande guerra, e crê que, se o enfrentamento escalasse, Israel teria chance de converter a pequena vitória em grande guerra, nesse caso não há melhor momento para fazê-lo, do que agora. Afinal de contas, Netanyahu está envolvido em acusações de corrupção, e os israelenses estão nas ruas, exigindo que ele renuncie. Nada ajudaria mais esse Netanyahu encurralado, que uma guerra, limitada ou sem limites, desde que ele tivesse certeza de vencê-la. Porém, dada a derrubada recente de um F-16 israelense por um relativamente arcaico SAM-5, para nem falar dos milhares de foguetes prontos a serem derramados sobre Israel se se fizer necessário, é bem pouco provável que Netanyahu insista nessa jogada: é como boxeador com a cara quebrada, que 'exige' a revanche para antes de recuperar-se do atual nocaute.

A situação no sul da Síria portanto permanece inalterada e provavelmente assim ficará, ainda que uma guerra limitada esteja para escalar no norte, onde soldados de EUA e Turquia atacaram a soberania síria, ilegalmente, é claro.

Mas os dois pontos conflagrados não são completamente desconexos, porque escalada direta entre forças sírias e norte-americanas COM CERTEZA envolverá Israel, como já ficou dito.

Assim sendo, o que fazem as tropas sírias, em avançada contra a cidade síria de Manbij ocupada por tropas dos EUA?

Não se deve esquecer que há poucos dias unidades do Exército Árabe Sírio entraram na cidade síria de Afrin, a qual esteve sob ataque turco por mais de um mês, sem que os turcos conseguissem qualquer avanço. O mais interessante aqui é que o povo de Afrin recebeu com festas o Exército Árabe Sírio,exibindo cartazes de ambos, do presidente Assad e do líder curdo Ocalan.

São cenas que entusiasmam os sírios que buscam a unidade nacional. Afinal, e independente do que se diga a favor ou contra os curdos da Síria, eles são cidadãos sírios, descendentes de uma linhagem de vários milênios, cuja história tem essa cidadania bem documentada, com documentos cuja autenticidade ninguém contesta.

Ao dirigir suas tropas para Afrin, e com elas festejadas lá como foram festejadas, a Síria envia vários recados a Erdogan; alguma delas há de enfiar algum bom-senso naquela cabeça.

Para começar, a Síria está dizendo a Erdogan que Afrin é território sírio. Em segundo lugar, os cidadãos de Afrin está dizendo a Erdogan que são leais à Síria. Nessas entrelinhas, Erdogan deve ver que os sírios estão-se unindo, indiferentes às etnias, e que, se ele inventar alguma luta, corre o risco de ver-se preso numa batalha desnecessária; porque a união do povo sírio significa que algum estado curdo independente absolutamente não está na agenda; ou, no mínimo, já não está na agenda.

Mas as tropas sírias também planejam avançar para a cidade síria de Manbij, e Manbij não é como Afrin, porque em Manbij há soldados norte-americanos que não se retiraram, apesar do pedido formal que receberam da Turquia, para deixarem a cidade.

Turquia não fez qualquer movimento em direção a Manbij depois que os EUA recusaram-se a sair. As tropas turcas ainda estão em Afrin, sem conseguir vitória clara e, assim, sem poder pensar em deslocar tropas ou planejar passos seguintes. Mas a Síria não consultou os EUA; decidiu entrar e pôr lá as suas tropas. Manbij é território sírio; a presença de norte-americanos não autorizados é ilegal; e a Síria não precisa de aprovação de Washington para pôr tropas sírias em Manbij, assim como Washington não precisa da aprovação dos sírios para pôr soldados norte-americanos na Califórnia.

Voltamos à questão inicial. O lado que primeiro puxar o gatilho, o primeiro que derramar sangue adversário, ainda que seja em guerra limitada, será necessariamente ou algum maluco, procurando briga grande, ou alguém que tem plena certeza de que pode vencer.

No pé em que as coisas parecem estar, a Síria jamais esteve em melhor posição, em muito tempo – apesar dos danos materiais e do descomunal sofrimento humano que a guerra causou ao país.

Não sabemos o que acontece por trás do palco. E o governo sírio jamais, em tempo algum, supôs que seria tarefa fácil conter as aspirações separatistas dos curdos e manter os curdos sírios sob o telhado de Damasco.

Os curdos separatistas – e nem todos os curdos são separatistas – jogaram seu jogo e perderam. Sem bola de cristal que adivinhe o que se passa fora do palco, por trás das portas fechadas dos anciãos curdos, parece claro que se criou o consenso de que é preciso no mínimo tirar o protagonismo dos projetos separatistas, apoiar e dar as boas-vindas ao Exército Árabe Sírio, e levantar-se contra a incursão dos turcos em Afrin. A atual presença das tropas sírias em Afrin e as boas-vindas que receberam dos locais são o testemunho vivo dessa nova realidade.

Haverá acordo semelhante, já firmado entre os anciãos curdos e o governo sírio, no caso de Manbij? É bastante provável que sim. Soldados sírios não entrarão em Manbij para lutar contra população civil. Só entrarão depois que esteja bem encaminhado um projeto de reconciliação nacional que permita esse movimento e garanta que os soldados recebam boas vindas equivalentes às que receberam em Afrin.

Assim sendo, o que acontecerá com as tropas norte-americanas estacionadas em in Manbij quando as tropas sírias entrarem?

A resposta a essa pergunta dependerá do modo como as tropas norte-americanas responderem ao avanço das tropas sírias sobre Manbij – onde os EUA estão como ocupantes ilegais.

Em resumo, a Síria apresenta-se. Tudo sugere que os sírios tenham boas razões, realistas, com fundamentos em campo, para definir que a conjuntura de solidariedade, potência para decidir e determinação lhe é favorável, com vistas a impor a própria soberania sobre todo o seu território nacional.

Com esses movimentos contra a presença ilegal dos dois países, Turquia e EUA, em seu território, a Síria não está, de modo algum, procurando briga nem com um nem com o outro. Mas a Síria está dizendo a ambos aqueles países que o território sírio pertence à Síria; e que, se Turquia ou EUA tentarem deter a passagem de soldados sírios ou atacá-los quando estiverem exercendo sua legitimidade, um direito soberano sobre o próprio território, como a ONU reconhece e protege, nesse caso não restará à Síria qualquer alternativa que não seja empurrar os intrusos para a saída, sendo necessário, pela força.

Infelizmente, o governo dos EUA tem longa história de chegar ao fim de ações desse tipo com grande número de sacos de cadáveres ensanguentados para levar para casa. Na história do pós 2ª Guerra, a triste maioria daqueles sacos abrigou os cadáveres de jovens norte-americanos pobres. Ninguém em sã consciência dentro ou fora dos EUA deseja ver mães de soldados norte-americanos que se alistaram de boa fé, pensando que ajudavam o próprio país, condenadas a receber seus filhos e filhas de volta aos EUA, em sacos de cadáveres.

Quem não se solidarize com os medos e apreensões daquelas mães não pode ser considerado humano. Não se pode saber se todas aquelas mães compreendem a realidade por trás das guerras que seus filhos e filhas alistaram-se para lutar, mas, compreendam ou não, o peso do que aconteça aos filhos e filhas daquelas mães pesa sobre os ombros dos governantes dos EUA.

Muito se disse e escreveu-se recentemente sobre soldados dos EUA devolvidos às famílias em sacos de cadáveres. De todo meu coração sempre preferirei vê-los voltar vivos, depois de os governantes tomarem as decisões mais justas.

Mas pelo que se vê acontecer na Síria, os governantes dos EUA estarão pondo sob grave risco os soldados norte-americanos, se os políticos nos EUA não se decidirem pela imediata evacuação, que tem de ser muito rápida.

Os EUA bem fariam se examinassem a experiência do Vietnã e saíssem já da Síria, sem demora. Com ou sem apoio dos russos, se todos os sírios, incluídos os curdos sírios, se unirem – como parece que estão fazendo hoje –, os EUA perderão todo e qualquer apoio que tenham em solo local. A cada minuto é mais urgentemente necessário que os EUA saiam do território sírio. Logo será tarde demais.

Fato é que os EUA nada têm a ganhar com permanecer na Síria. Sequer precisavam ter ido para a Síria. A presença de soldados dos EUA na Síria só faria sentido se houvesse algum objetivo estratégico real a ser alcançado lá; e isso absolutamente não existe.

Afinal, nesse quadro, quem está fazendo o que, na Síria, hoje?

– EUA não parecem saber o que fazem lá, nem sabem quem é aliado e quem é inimigo. 

– Os curdos parecem ter compreendido a realidade em campo, e viram a luz.

– O governo sírio parece ter estabelecido um guarda-chuva, com base em Damasco para a importante questão curda.

– Turquia não consegue alcançar nenhum objetivo militar e, sem plano curdo para criar algum Estado curdo, a Turquia já não "precisará" continuar na Síria atacando curdos. 

Afinal, mas nem por isso menos importante, caso os EUA finquem pé e recusem-se a deixar a Síria pela via pacífica, e se optarem por combater militarmente contra o Exército Árabe Sírio, não apenas se autocondenarão à derrota militar, como também, porque o confronto avançará para o sul, arrastarão Israel com eles, para a mesma desgraça.*****

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