28/8/2018, Jonathan Cook, Counterpunch
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
"A verdade é que a elite governante na Grã-Bretanha está explorando os judeus britânicos e alimentando seus medos, como parte de um jogo de poder muito mais amplo, no qual todos nós – todos os 99%, inclusive muitos judeus – somos descartáveis. Aquela gente continua a pôr fogo nessa campanha para estigmatizar Corbyn, mesmo sabendo que há o risco de a campanha gerar reação que leve a aumento muito real no antissemitismo."
O mais recente 'escândalo' que sacode a Grã-Bretanha – ou, para ser mais preciso, as elites britânicas – tem a ver com o uso da palavra "sionista" pelo líder dos Trabalhistas Jeremy Corbyn, líder da oposição e possivelmente o próximo primeiro-ministro.
Mais uma vez, Corbyn vê-se apanhado na armadilha montada para ele por umas poucas organizações de judeus, que se autoapresentam como muito improváveis representantes da "comunidade dos judeus da Grã-Bretanha", e por outro pequeno grupo, dessa vez de jornalistas de grandes empresas 'de mídia', que se autoapresentam como muito improváveis representantes da "opinião pública britânica". Para esses dois pequenos grupos, o país estaria enfrentando hoje o que gostam de chamar de "o problema do antissemitismo" do Partido Trabalhista".
Nem entrarei na noção patentemente ridícula de que "sionista" seria palavra código para "judeu", não, pelo menos, por enquanto. Há enorme quantidade de artigos que explicam por que essa ideia é perfeita tolice absurda.
Quero tratar de um aspecto diferente, da mesma velha crise que hoje está sendo chamada de "crise do antissemitismo dos Trabalhistas". Exemplifica, creio eu, uma crise muito mais profunda e mais ampla de nossas sociedades: a questão de confiar ou não confiar.
Temos agora dois grandes campos, engalfinhados um contra o outro, com concepções absolutamente diferentes sobre o que é a sociedade na qual vivem e para onde ela precisa andar. Num sentido muito real, esses dois campos já não falam a mesma linguagem. Houve uma ruptura, e já ninguém encontra território comum.
Não falo aqui das elites que dominam nossas sociedades. Elas têm agenda própria. Só se servem, em todos os contatos, da linguagem do dinheiro e do poder. Falo aqui, isso sim, de nós: os 99% que vivemos à sombra daquelas elites.
Primeiro, examinemos o cisma ideológico e linguístico profundo e crescente que se abriu entre aqueles dois campos dos nossos 99%: vamos mapear as divisões que, dadas as limitações de espaço, exigirão muita generalização.
O campo dos 99% que confia
O primeiro campo de nós, 99%, investe a própria confiança, com mínimas reservas, nos que dirigem nossas sociedades. Os segmentos da esquerda e da direita desse campo dividem-se primeiramente quanto ao grau em que acreditam que os que vivem na parte inferior da sociedade precisam de ajuda para puxá-los para cima da escada social.
A não ser por isso, todo o campo que confia, dos 99%, é unido nos seus pressupostos.
Todos nesse campo admitem que, no caixote dos nossos políticos eleitos há a velha, conhecida de todos, maçã podre. E, claro, compreendem que é preciso debater política e valores sociais. Mas concordam em que os políticos ascendam principalmente graças às próprias capacidade e ao próprio talento; que devem prestar contas aos respectivos eleitores; e que os políticos são pessoas que desejam o melhor para a sociedade como um todo.
Por mais que esse campo conceda que a mídia é propriedade de um punhado de empresas concebidas com vistas ao lucro, mesmo assim o campo dos 99% que acredita confia que o livre mercado – a necessidade de vender jornais e seduzir os públicos – asseguraria que notícias significativamente importantes e vasta gama de opinião legítima sejam acessíveis aos leitores/telespectadores/ ouvintes.
Ambos, políticos e a mídia serviriam – embora nem sempre com sucesso completo – como uma proteção contra a corrupção e o abuso do poder por outros atores poderosos, como a comunidade dos profissionais do business.
Esse campo crê também que as democracias ocidentais seriam sistemas políticos melhores, mais civilizados, que os sistemas que se veem nas demais partes do mundo. Sociedades ocidentais não querem guerras, querem paz e segurança para todos. Por essa razão, foram empurradas – bem pouco confortavelmente – para o papel de policiais globais. E os estados ocidentais viram-se praticamente sem escolha, como que condenados a fazer "guerras boas", para domar os instintos genocidas e a fome de poder de ditadores e de doidos em geral.
Conspirações russas
Era uma vez – quando a visão de mundo desse campo era raramente, praticamente nunca, contestada –, a resposta desse campo a qualquer item difícil de reconciliar com suas crenças básicas (da invasão do Iraque em 2003, ao crash financeiro de 2008) era sempre a mesma: "Incompetência, fizeram tudo errado, não fazem nada certo! Não foi conspiração!" Agora, quando há cada vez mais questões que põem em risco algumas de nossas crenças e verdades mais prestigiadas e amadas, a resposta desse campo – paradoxalmente – passou a ser "Culpa de Putin!" ou "Fake news!".
A atual obsessão com conspirações russas é em grande parte resultado do crescimento extraordinariamente rápido de um segundo campo ativo também entre nós, os 90%, e crescimento com certeza turbinado pelo acesso sem precedentes que os públicos ocidentais passaram a ter à informação, mediante as mídias sociais, tanto à informação útil quanto à informação que absolutamente não presta.
Nunca, na história humana, tanta gente foi capaz de pôr a cabeça para fora de um quado permitido – seja pelo estado, pela igreja, pelas grandes empresas – de distribuição e repetição de informação, para falarem, as próprias pessoas, umas com as outras diretamente e também num palco global.
Não é fácil caracterizar esse novo campo surgido nos 99%, usando a velha linguagem da política de direita/esquerda. A principal característica do novo campo é que aí absolutamente ninguém confia nem nos que dominam nossa sociedade, nem, tampouco, em nenhuma das estruturas sociais dentro das quais os que dominam operam.
Esse segundo campo não vê essas estruturas como imutáveis, nem como modos ordenados por Deus para organizar e ordenar a sociedade, tampouco como o resultado racional da evolução política e moral das sociedades ocidentais. Em vez disso, esse segundo grupo vê essas estruturas como produto engendrado pela engenharia de uma pequena elite, para se agarrar a qualquer poder que tenha.
Essas estruturas deixam de ser, em primeiro lugar, nacionais: são globais. Não são imutáveis: são tão fabricadas, tão feitas pelo homem e substituíveis, quanto as estruturas que, antes, davam ares de incontestabilidade ao poder de uma aristocracia da terra sobre os servos feudais. A atual aristocracia, diz esse segundo campo, são as empresas multinacionais e transnacionais globalizadas, tão absolutamente opacas e impenetráveis que nem o maior dentre os estados-nação consegue hoje contê-las ou limitá-las.
Ilusões de pluralismo
Para esse segundo campo, os políticos não são a nata da sociedade. Conseguiram chegar à superfície de um sistema corrompido e corrompedor, e a vasta maioria deles fez tudo o que fez e faz, depois de adotar entusiasticamente os valores podres do sistema idem. Esses políticos não servem em primeiro lugar aos seus eleitores: servem às empresas que realmente dominam nossas sociedades.
Para o segundo campo em que nos dividimos, os 99%, esse fato apareceu claramente ilustrado em 2008, quando a classe política não puniu – nem poderia ter punido – os bancos responsáveis pelo quase colapso das economias ocidentais, depois de décadas de especulação enlouquecida que engordou uma elite financeira. Aqueles bancos, nas palavras dos próprios políticos, seriam "grandes demais para quebrar"; e por isso foram 'resgatados' com dinheiro dos mesmos públicos que, em primeiro lugar, foram saqueados pelos bancos. Em vez de usar a bancarrota dos bancos como oportunidade para reformar o falido sistema dos bancos, ou nacionalizar partes daqueles bancos, os políticos deixaram que o Banking Cassino continuasse e, até, que crescesse.
Assim também a mídia – empresas e veículos e profissionais supostos fiscais do poder – são vistos por esse campo como principais propagandistas da elite governante. A mídia não fiscaliza poder algum. A mídia ativamente constroi um consenso social para perpetuar o abuso – e, quando o projeto de perpetuação do abuso falha, a mídia imediatamente passa a cuidar de distrair os olhos e os ouvidos, enchê-los com material totalmente desimportante, mas espetaculoso, para assim apagar, temporária ou para toda a eternidade, o abuso.
Isso é inevitável, diz o segundo campo, dado que a mídia está incorporada dentro das mesmas estruturas corporativas que dominam nossas sociedades. As empresas de mídia de fato são o braço de 'relações públicas' das grandes corporações. Dissenso? Só se admite dissenso muito limitado, sempre à margens do mundo criado pela mídia, e só o mínimo necessário de dissenso para dar a impressão de que haveria algum pluralismo, pluralismo ilusório.
Inimigos fabricados
Essas estruturas domésticas são subservientes e servem a uma agenda ainda maior: a acumulação de riqueza por uma elite global mediante o saque dos recursos do planeta e a racionalização da guerra sem fim. Isso, conclui esse campo, exige inimigos, que têm de ser fabricados – como Rússia, Irã, Síria, Venezuela e Coreia do Norte –, para justificar a expansão de uma máquina industrial-militar.
Esses "inimigos" são inimigo reais, no sentido em que, pelos seus diferentes meios, todos se recusam a se submeter ao braço neoliberalizante das corporações que têm base no ocidente. Mas, mais significativamente, são elementos necessários na função de inimigos, ainda que desejem a paz. Esses inimigos fabricados, diz o segundo campo, justificam o redirecionamento do dinheiro público para os cofres privados das indústrias militares e de segurança interna. E, também muito importante, são um conjunto de espantalhos sempre a postos, a serem explorados para distrair os públicos ocidentais e impedi-los de ver os problemas realmente próximos de cada um.
O segundo campo é acusado pelo primeiro de ser anti-Ocidente, anti-EUA e anti-Israel (ou, ainda mais perversamente, de ser antissemita), porque o segundo campo opõe-se às "intervenções humanitárias" do ocidente nos mais diferentes países em todo o mundo. Os membros ativos do segundo campo, diz o primeiro, agem como defensores propagandistas de criminosos de guerra como Vladimir Putin da Rússia, ou Bashar Assad da Síria. E pintam esses líderes como boas pessoas mal compreendidas; e culpam o ocidente por todos os males do mundo.
O segundo grupo responde que não se trata disso: que são é anti-imperialistas. Não é que desculpem crimes que haja de Putin ou Assad, mas os veem como questões secundárias, em grande parte uma reação contra o poder muito maior que uma elite ocidental com alcance global consegue projetar. O segundo grupo entende que a obsessão da mídia-empresa ocidental com montar narrativas sobre inimigos maléficos – homens maus e homens loucos – visa a desviar a atenção para bem longe das estruturas de violência muito maior que o ocidente espalha pelo mundo, sob a forma de uma rede de bases militares dos EUA e da OTAN.
Putin tem poder, mas tem poder imensamente menor que o poder combinado das indústrias militares ocidentais fazedoras de guerras porque guerras são sua fonte de lucros. Ante essa equação de poder, conforme diz o segundo campo, Putin age defensivamente ou reativamente no cenário global, usando a força limitada que a Rússia tem, para defender seus interesses estratégicos essenciais. Ninguém pode julgar racionalmente crimes da Rússia, sem antes admitir os crimes, muito maiores, do ocidente – os nossos crimes.
Enquanto toda a classe política dos EUA vive obcecada com uma "interferência russa" nas eleições nos EUA, esse campo observa, os públicos nos EUA são induzidos a ignorar a interferência maior, mais ativa e há muito mais tempo, dos EUA, não só em eleições, mas em muitas outras esferas que a Rússia considera seus interesses estratégicos vitais. Dentre essas interferências dos EUA destacam-se as bases militares e silos de mísseis dos EUA bem próximos das fronteiras da Rússia [...].
Para sair da escuridão
Nossa linguagem política está à beira da ruptura, porque hoje os 99% já estamos completamente divididos. Não há meio-de-campo, não há conversa social, não há consenso.
O segundo campo dos 99% entende que o sistema atual está quebrado e que necessitamos de mudança radical. E o primeiro campo dos 99% agarra-se desesperadamente à esperança de que o sistema continuará a ser aproveitável, apenas com pequenas modificações e mínimas reformas.
A batalha de Corbyn
Corbyn acabou entrando nesse campo minado, infelizmente pouco preparado, parece, para a pesada carga histórica que lhe coube carregar nos ombros.
Estamos chegando a um momento chamado "de mudança de paradigma". Acontece quando as rachaduras num sistema tornam-se tão óbvias que passa a ser impossível negá-las, sem parecer doido. Os defensores do sistema velho gritam e berram, tentam ganhar qualquer mínimo tempo possível, com medidas de repressão, mas a casa está a minutos de desmoronar. As questões críticas são: quem é ferido quando a casa vem abaixo, e quem decide como a casa será reconstruída.
Mas o novo paradigma vem, gostem ou não gostem. Não o escolhemos. O planeta decide por nós. Pode ser melhor, pode ser pior, pode ser a extinção, dependendo de se estamos preparados e de o quanto estamos preparados para ele. E da violência com que os investidos no velho sistema resistirão contra perder o seu velho poder. Se quantidade suficiente de nós compreendermos a necessidade de descartar o sistema falhado, maior a esperança de que se possa construir, das ruínas, algo melhor.
Estamos agora no ponto onde a velha elite corporativa vê que as rachaduras aumentam a cada dia, mas permanece agarrada à negação e vive quase como se não houvesse rachaduras e não fossem mais visíveis a cada dia. Estão entrando na fase do berreiro, gritando e urrando contra os inimigos, e preparando-se para aplicar medidas cada vez mais repressivas para manter o poder.
Já identificaram as mídias sociais – corretamente – como chave de todas as suas preocupações. Foi aí onde nós – todos os 99% – começamos a nos acordar uns os outros. É onde partilhamos e aprendemos, emergindo da escuridão, desajeitados e trôpegos. Estamos cometendo erros, mas aprendendo. Nos aproximamos de trilhas escuras, mas aprendendo. Temos feito escolhas ruins, mas aprendendo. Temos feito alianças que nos prejudicam mais do que ajudam, mas aprendendo.
Ninguém – e a elite corporativa menos que todos – sabe precisamente para onde esse processo nos levará, quais competências temos para crescer politicamente, socialmente e espiritualmente. E a elite corporativa teme tudo que não seja propriedade dela ou que ela não controle.
Meter o gênio de volta na garrafa
A elite tem duas armas que pode usar para tentar forçar o segundo campo dos 99% de volta para dentro da garrafa. (1) Pode apresentar aquele segundo grupo como o mais vil dos grupos, empurrando-o para a marginalidade; e fez exatamente isso até o advento das mídias pelas quais a sociedade consegue (ainda) falar/escrever/mostrar-se, a própria sociedade, para si mesma. Ou (2) a elite pode apropriar-se deles e cercar todos os novos canais de comunicação de massa que a própria ânsia insaciável da elite por monetizar tudo e todos abriu e deixou abertos por curto espaço de tempo.
As duas estratégias têm riscos, motivo pelo qual até agora as duas têm sido tentadas alternadamente. Mas a segunda é a que traz mais riscos. Fechar as mídias chamadas sociais [são empresas privadas (NTs)] muito obviamente pode gerar reação forte, despertando ainda mais gente do primeiro campo dos 99% para as ilusões contra as quais o primeiro grupo tanto trabalhou e as quais tanto tentou desmascarar.
A importância – e o perigo – de Corbyn é que ele traz para a frente do palco e põe sob os holofotes grande parte da linguagem e das preocupações do segundo campo dentro dos 99%. Corbyn oferece via rápida para que o segundo campo dos 99% alcance o primeiro campo. Graças a isso, ele acelera o processo de despertar. Esse despertar, por sua vez, aumenta as chances de a mudança de paradigma acontecer de modo orgânico e transicional, em vez de ser disruptiva e violenta.
Por isso Corbyn virou essa espécie de ímã a atrair todas as mais complexas maquinações da elite governante. Querem vê-lo destruído, assim como se explode a ponte para impedir que o exército avance.
É sinal ao mesmo tempo do desespero e da fraqueza daquelas elites ainda governantes, que tenham tido de recorrer à opção nuclear – bombardear Corbyn com acusações de antissemitismo, a mais destrutiva das armas de destruição com que contam as elites.
Antes de jogarem a 'carta do antissemitismo', tentaram outras, menos ofensivas: que não seria suficientemente 'elegante' e 'presidencial' para liderar a Grã-Bretanha; que seria anti-establishment; que não seria patriota; que talvez fosse traidor... Nada funcionou. Cada ataque tornou Corbyn mais popular.
Por isso inventaram acusação mais incendiária, apesar de décadas de atividade pública de Corbyn mostrarem e demonstrarem que sempre foi ativista contra todos os racismos.
A elite empresarial abraçou a acusação de antissemitismo, não porque tenham qualquer preocupação com a segurança de algum judeu, nem porque acreditem que Corbyn seja antissemita. Escolheram essa calúnia porque é a arma mais destrutiva, a mais destrutiva das calúnias – ainda mais destrutiva que calúnias sobre crimes sexuais e assassinato – dentre as muitas calúnias/armas que a elite empresarial mantém guardadas no cofre.
A verdade é que a elite governante na Grã-Bretanha está explorando os judeus britânicos e alimentando seus medos, como parte de um jogo de poder muito mais amplo, no qual todos nós – todos os 99%, inclusive muitos judeus – somos descartáveis. Aquela gente continua a pôr fogo nessa campanha para estigmatizar Corbyn, mesmo sabendo que há o risco de a campanha gerar reação que leve a aumento muito real no antissemitismo.
As elites empresariais não têm intenção alguma de se calarem e conformarem-se com a derrota.
A menos que nos organizemos rapidamente e defendamos com confiança o nosso campo, a violência deles só conseguirá que a mudança de paradigma seja violenta, em vez de gradual e em paz. Mais para terremoto, do que para chuva forte.*******
No fundo um artigo otimista.
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