segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Debate de vida ou morte: John Mearsheimer[1] & Stephen Cohen,[2] contra o establishment neonconservador neoliberal delirante pirado

10/10/2018, Federico PIERACCINI, Strategic Culture Foundation

“Quanto mais a informação prestável alastra-se e alcança mais e mais pessoas, mais o mundo compreenderá o desastre que são as ações do establishment euro-norte-americano em todo o mundo” [o golpe de 2016 no Brasil é uma dessas ações desastrosas (NTs)].
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Entreouvido na Vila Mandinga:
“Equilibradores externos” É A PUTA QUE OS PARIU.

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Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga





Dia 20 de setembro, em New York City, o website Intelligence Squared organizou um debate vitalmente importante para ajudar a compreender muito do que hoje estamos vendo acontecer na cena global.

O debate travou-se em torno de três questões principais. (1) Sobre o papel da OTAN (“A OTAN já não serve à finalidade para a qual foi criada”); (2) sobre a Rússia (“A ameaça russa está super inflada”); e (3) (“É hora de adotar linha dura contra o Irã”).

Para discutir essas importantes questões, lá estava uma seleção de convidados especiais: Derek Chollet, vice-presidente executivo do German Marshall Fund of the United States e ex-secretário-assistente da Defesa dos EUA; Stephen F. Cohen, professor emérito de História e Estudos Russos da New York University; Reuel Marc Gerecht, pesquisador-sênior da Fundação para Defesa das Democracias e ex-analista da CIA; John J. Mearsheimer, cientista-político e professor na University of Chicago; e Kori Schake, vice-diretora geral do International Institute for Strategic Studies.

Analisando a seleção de convidados, vê-se imediatamente que Cohen e Mearsheimer foram convidados para introduzir um ponto de vista realista e coerente na discussão, em oposição [minoritária] aos outros três que têm posição firmemente intervencionista para a política exterior dos EUA, e veem os EUA como a nação indispensável. 

Cohen e Mearsheimer trabalham há anos, se não há décadas, para explicar a audiências norte-americanos e internacionais o como e o quanto as políticas hegemonistas de Washington aceleraram o fim do momento unipolar dos EUA e disseminaram o caos pelo planeta.

Cohen, e especialmente Mearsheimer, são pensadores realistas não contaminados. Sem discutir aqui os méritos das diferenças entre conceitos como “realismo ofensivo”, “realismo defensivo” e “equilibradores externos” [ing. offshore balancers[3]], ambos têm visão coerente de por que as ações dos EUA provocaram os resultados que se veem em todo o mundo desde o fim do Muro de Berlin.

Para os que acompanham Cohen e Mearsheimer e se veem como realistas na observação das relações internacionais, assistir a esse debate foi experiência dolorosa e frustrante, mas também imensamente útil para compreender as divisões que se veem hoje. De fato, os outros três participantes da mesa devem ser analisados cuidadosamente.

Derek Chollet pertence ao campo neoliberal, e serviu ao governo Obama. Chollet está no campo dos imperialistas, que, depois do fracasso no Iraque em 2003, optaram por mudar de tática para atacar países soberanos, outros métodos, a saber, golpes de estado organizados a partir de ‘eventos’ como ‘revoluções coloridas’ e a chamada ‘primavera árabe’. Em nome de disseminar a democracia, países como Líbia, Ucrânia e Síria sofreram devastação inominável nas garras dos EUA e aliados.

Para completar o pleno espectro da política externa dos EUA, o ex-agente da CIA Reuel Marc Gerecht foi incluído como linha dura, para repetir os argumentos dos neoconservadores sobreviventes da era Bush. 

Kori Schake, ex-conselheira de Bush, completou a seleção letal de neoconservadores neoliberais, representando a posição da OTAN e dos países mais russofóbicos e iranofóbicos da Europa.

Considerando a lista de convidados e as perguntas, era óbvio que emergiriam posições diametralmente opostas. Cohen e Mearsheimer argumentaram praticamente em simbiose, com mínimas diferenças de perspectiva, rumo à mesma conclusão. Os EUA, depois do colapso da União Soviética e do fim da Guerra Fria viram-se como única [última?] superpotência, sem desafiante à vista. A missão de Washington passou a ser a de remontar o mundo à sua imagem e semelhança, exportando democracias pra os quatro cantos do mundo, nem que fosse a porrete, atacando adversários geopolíticos com mísseissoft ou hard. Linha de ação a qual, ironicamente, só fez acelerar o fim do momento unipolar dos EUA.

Mearsheimer and Cohen tentaram reiterar em todas as respostas o modo como Washington só conseguiu causar danos e sofrimentos, para começar, a si mesma e aos norte-americanos, sem parar de pensar e agir do modo mais alucinado. 

Sobre a primeira pergunta, sobre a OTAN, ambos, Mearsheimer e Cohen enfatizaram que a expansão da OTAN para o oriente, depois do fim da Guerra Fria, foi e continua a ser a principal causa de instabilidade na Europa. Os três neoliberais neoconservadores – que não estou chamando de “os imperialistas” nem sei por quê – responderam que, de fato, os estados europeus haviam solicitado a presença dos EUA na Europa para protegê-los contra a Rússia. 

Os três imperialistas fingiram que não ouviram a resposta clara e direta de Mearsheimer, tomada das campanhas eleitorais de Obama e Trump, de que os aliados europeus só queriam os EUA na Europa para economizar dinheiro e não aumentar os próprios gastos militares. Aparentemente sem ter ouvido o que Mearsheimer disse, os três continuaram a repetir que, dado que a Polônia e países do Báltico solicitaram a presença dos EUA, Washington foi obrigada a responder.

Também foi frustrante para Cohen explicar, pela milésima vez, o quanto os avanços da OTAN rumo às fronteiras da Rússia danificaram gravemente as relações entre Rússia e os EUA, dois países que ele entende que tenham de ser aliados globais em vários fronts.

Mearsheimer chegou a convidar os três imperialistas a pensarem na Doutrina Monroe e em o quanto seria intolerável para os EUA terem uma potência estrangeira plantada militarmente no hemisfério ocidental. Também lembrou a crise dos mísseis em Cuba, gerada pela aproximação, de militares da URSS, de território dos EUA.

Os três imperialistas, encurralados e paralisados pelos argumentos de Cohen e Mearsheimer simplesmente fingiam que não os ouviam ou distorciam tudo, até inverter os argumentos. O imperialista mais violento, não surpreendentemente o ex-agente da CIA, manteve-se agarrado ao argumento arrogante de que a presença dos EUA na Europa seria necessária não só para manter longe os russos, mas também para impedir que a Europa mergulhasse em estado de natureza Hobbesiana, todos se esquartejando uns os outros, como aconteceu em duas guerras mundiais.

Não surpreendentemente, os argumentos usados pelo ex-agente da CIA sobre a OTAN na Europa receberam aplauso entusiástico de Kori Schake e Derek Chollet. A intervenção de Cohen, no sentido de recordar aos presentes que o golpe na Ucrânia foi organizado e pago pelo ocidente foi descartada como mentirosa e ridícula. Derek Chollet garante: “A manifestação da praça Maidan foi espontânea, exigindo mais proximidade da Europa, contra a ameaça de uma ditadura nas mãos de Moscou.” 

A segunda pergunta tinha a ver com a primeira, sobre a Rússia e seu papel no mundo. Mais uma vez, Cohen e Mearsheimer tiveram de exercitar toda a paciência que neles houvesse, para explicar ao público em geral o modo como Putin sempre reagiu às provocações do ocidente. A expansão da OTAN para o leste (apesar de Bush ter prometido – verbalmente – a Gorbachev que a OTAN não avançaria além da Alemanha) foi a causa da guerra na Geórgia em 2008 e na Ucrânia em 2014. 

Claro que os três imperialistas negaram todos esses argumentos e acusaram Putin de agressão não provocada, confirmando, dentro da cabeça de cada um deles, que, sim, a presença dos EUA na Europa é necessária para resistir contra a Rússia, ator negativo no cenário mundial. Nem Mearsheimer repetir palavras de Kissinger, em sua estratégia para dividir Rússia e China, conseguiu convencer os imperialistas de que a atitude agressiva contra Moscou e Pequim só prejudica os EUA, acelerando o fim do momento unipolar, e criando as condições perfeitas para o nascimento de uma realidade multipolar, que deixará Washington para trás e isolada das demais grandes potências.

Os três imperialistas afirmaram que a cooperação entre Rússia, China e Irã não deve surpreender ninguém, porque ditadores sempre se unem; e, além disso, essa situação não assusta os EUA, que têm capacidade para lutar em vários fronts simultaneamente. 

Por sorte, a fala de Cohen, que relembrou os fracassos dos EUA no Afeganistão, Iraque, Síria e Líbia, jogou água fria naquele surto de delírio otimista, e provocou gargalhadas do público presente. Esses momentos serviram para mostra o quanto são ridículos os ‘argumentos’ dos imperialistas. Duas ou três dessas discussões bastaram para abrir os olhos de quem, dentre os presentes, talvez não conhecesse os argumentos com que se podem desmontar as falas sempre repetidas dos imperialistas.

Dois desses momentos de alto valor didático merecem destaque. 

O primeiro, foi em resposta ao ex-agente da CIA, que ‘exigia’ um golpe de estado no Irã, e garantia que, sim, os EUA sabem muito bem como fazer golpes bem-sucedidos. A fala de Mearsheimer, que lembrou os fracassos dos EUA no Iraque, Líbia, Síria e Afeganistão arrancou aplausos demorados do público. Mearsheimer lembrou os presentes que exatamente os mesmos argumentos que ele acabava de expor foram usados por Obama e também por Trump, nas respectivas campanhas eleitorais, quando falavam em paz, antes de – e para – chegar à Casa Branca.

O segundo momento, ainda mais efetivo, teve a ver com o Irã. Em resposta a Kori Schake, que ‘exigia’ mais e mais pressão sobre o Irã, por causa de uma suposta interferência do país na região, para, dizia ela, expandir sua influência também para outros países (Síria, Iraque, Líbano e Iêmen), Mearsheimer destacou o espantoso, inacreditável nível de hipocrisia envolvido nessa conversa, quando todos sabem que os EUA são campeões mundiais de mudança de regimes e de interferência em assuntos internos de outros países. Aplauso fortes e demorados deram testemunho da incontestável verdade daquela observação.

Infelizmente, o debate chegou ao fim sem que a maioria do público tivesse realmente recebido informação prestável, e tenha continuado a crer que a OTAN teria qualquer importância fundamental; que a Rússia é a vilã; e que os EUA devem pressionar mais o Irã. De qualquer modo, o número de pessoas que mudaram de opinião depois do debate foi significativo (Mearsheimer e Cohen alteraram as atitudes de cerca de 10% dos presentes, quanto ao tema das duas primeiras perguntas, mas ainda pequeno, comparado ao total.

Como espectador online experimentei sentimentos diferentes. Minha maior frustração foi quanto ao traço “Davi contra Golias” do debate, com os argumentos de Cohen e Mearsheimer em luta contra um paredão de mentiras acumuladas, incansavelmente repetidas pelos veículos da mídia-empresa e amplificadas e rementidas pelos três imperialistas presentes. Sem dúvida o público estava muito mais habituado a ouvir os argumentos dos imperialistas; Cohen e Mearsheimer não tiveram nem tempo suficiente para ultrapassar a barreira do pensamento e do raciocínio petrificados, do lado do público. Ainda assim, uma parte dos presentes mudou completamente seu modo de pensar, depois do debate. Alguns haviam chegado convictos de que a OTAN seria indispensável, e a Rússia seria potência agressora. Saíram sabendo que a OTAN é hoje obsoleta e que a Rússia dessa vez não é a potência agressora.

Emerge de toda essa discussão a conclusão de que Mearsheimer e Cohen são dois intelectuais formidáveis, sem medo de enfrentar, desmontar e destruir grande quantidade de pensamento construído e implantado pela propaganda e jamais criticado. 

Hoje, parte fundamental de nossa vida é achar informação prestável. Se não temos informação prestável, não temos os recursos mínimos indispensáveis para votar e eleger representantes que realmente visem a promover nossos interesses. Sem informação prestável, não temos os instrumentos mínimos necessários para modelar e determinar o curso dos eventos nas supostas democracias nas quais vivemos.

Esse debate mostrou o quanto o mundo dos EUA imperialistas é desconectado do mundo real, e especialmente o dano descomunal que esse modo de pensar neoliberal neoconservador causou, conseguindo, ironicamente, produzir resultados opostos aos seus objetivos declarados, e acelerando, exclusivamente, o fim da dominação que os EUA já exerceram sobre o mundo. Quanto mais a informação prestável alastra-se e alcança mais e mais pessoas, mais o mundo compreenderá o desastre que são as ações do establishment euro-norte-americano em todo o mundo [o golpe de 2016 no Brasil é uma dessas ações desastrosas (NTs)]. 

Cohen e Mearsheimer trabalham, esses sim, a favor de seu país, chamando atenção para o rumo que os EUA estão tomando – decisão e rumo que só trarão, como consequência, mais desastres para os EUA, com efeitos deletérios sobre o papel dos EUA no mundo.



NOTAS 

[2] “Tive recentemente o prazer de assistir a uma breve palestra do Professor Stephen F. Cohen intitulada "Putin Repensado" [ing. Rethinking Putin] (no cruzeiro anual de estudos de Nation dia 2/12/2017 (aqui o artigo de Nation e aqui o vídeo). Embora em fala rápida, o Professor Cohen faz trabalho soberbo, explicando o que Putin *não é*. Adiante uma parte da lista do que Putin *não é* (mas, por favor, assistam ao vídeo antes de continuar).” [8/2/2018, The Saker, The Vineyard of the Saker (traduzido em Blok do Alok)] (NTs).
[3] “O conceito de estratégico de “equilibradores externos” [ing. offshore balancers] envolve os EUA não tentarem fazer tudo sozinhos, mas, em vez disso, explorarem rivalidades entre outros estados, para impedir que qualquer deles alcancem força hegemônica e dominação regional” (27/1/2016, Paul Pillar, “The Forgotten Benefits of Offshore Balancing”, National Interest) [NTs].

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