segunda-feira, 5 de novembro de 2018

À sombra do vulcão paquistanês, por Pepe Escobar

3/11/2018, Pepe Escobar, Asia Times

À Sombra do Vulcão
3/11/1938, Dia de los muertos, Cuernavaca, México
Malcolm Lowry (1947) (NTs)

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga



Enquanto Khan move suas pedras num complexo tabuleiro de xadrez geopolítico, a ajuda dos chineses pode ser uma tábua de salvação financeira, com Islamabad em luta contra um extremismo religioso mortífero.


Foi semana de quase nem respirar, colhido à sombra do vulcão político-religioso fumegante, borbulhante, que é o Paquistão de Imran Khan.[1]
E os desenvolvimentos multifacetados dessa semana podem estar sinalizando mudanças sísmicas nas relações internas e externas do Paquistão, para o futuro previsível.



Antes de entrar nos assuntos mais sangrentos, comecemos com o episódio “Mr. Khan Vai à China” – essencial para revisar todos os aspectos do que os dois lados descreveram entusiasticamente como a “parceria estratégica cooperativa para tudo, faça chuva, faça sol”.



Xi estende a Khan uma tábua de salvação financeira?



O primeiro-ministro Khan, que lidera governo que se inicia, eleito em julho e diante de desafios colossais, deu o tom, desde o primeiro momento. Foi claro e direto.



“Países andam por ciclos, têm pontos altos, têm pontos baixos” – disse. – “Infelizmente nosso país atravessa hoje ponto baixo, com dois déficits muito grandes, um déficit fiscal e um déficit em conta corrente. E assim, como já disse, viemos para aprender.”



Pode-se dizer que poucos professores são tidos como melhores que o presidente Xi Jinping, que Khan elogiou como modelar. “Vale a pena copiar as fenomenais realizações da China” – disse Khan. – “Nenhum outro país foi tão bem-sucedido quanto a China, ao enfrentar a pobreza e a corrupção.”



O pivô em torno do qual gira a parceria estratégica é inevitavelmente o Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), projeto que é como o porta-estandarte da Nova Rota da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE). Antes de assumir o lugar de convidado de honra da 5ª Feira Internacional Import-Export da China, em Xangai, Khan reuniu-se com um ator crucial em Pequim para o financiamento do CECP: Jin Liquan, presidente do Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura (BAII).



Desde o início, Makhdoom Bukhtiar, novo Ministro do Planejamento do Paquistão, acreditava que Islamabad não teria de reprogramar cerca de $2,7 bilhões em empréstimos chineses, que tinham de ter sido pagos em 2018. Em vez disso espera-se um novo pacote econômico com melhores condições, com vistas a levar o CECP ao patamar seguinte.



Um Paquistão financeiramente estável é absolutamente crucial para o sucesso da ICE. Auditoria paquistanesa dos projetos aprovados pelo governo anterior, de Nawaz Sharif, recomendou racionalizar o CECP, não que fosse reduzido. Agora, a equipe de Khan abandona a noção de que o CECP seja uma dívida-armadilha.



Com Arábia Saudita e China chegando com o dinheiro, Islamabad pode evitar endividar-se ainda mais com o FMI e os seus malfadados “ajustes estratégicos” – que todo o Sul-Global teme, porque produzem mistura tóxica de austeridade e inflação.



O Paquistão trabalha com China, Irã, Arábia Saudita, Turquia, como malabarista com seus malabares



Tudo, no Paquistão, tem a ver com a excepcional localização geopolítica, no ponto em que se encontram o Sul da Ásia, a Ásia Central e a Ásia Ocidental.
Para Pequim, Paquistão, como nodo chave da ICE, é reflexo especular de seu novo papel como membro pleno da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Como Khan identificou claramente, essa interconexão pode turbinar a posição geopolítica do Paquistão – no marco institucional da OCX. A parceria Xi-Khan pode realmente operar como ganha-ganha econômico para o Paquistão e a OCX.



Claro, há incontáveis desafios pela frente.



Considere-se por exemplo o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China Lu Kang, que teve de esclarecer que “toda a cooperação entre China e Paquistão nada tem a ver com disputas territoriais.”



Kang referia-se às conversas em torno do fato de que uma empresa paquistanesa implantou um serviço de ônibus de Lahore a Kashgar via Islamabad; essencialmente, a rota norte do CECP pela Rodovia Karakoram, que contorna a Caxemira. A China não quer qualquer interferência no ultra volátil dossiê Caxemira.



Arábia Saudita também está fazendo alguns movimentos não muito sutis. A posição oficial de Islamabad é que a recente oferta financeira recebida de Riad, não chegou atada a condicionalidades. Pouco provável; tradicionalmente a Arábia Saudita lança sombra longa sobre todos os assuntos do Paquistão. “Sem condicionalidades” significa que Islamabad deve manter-se mais próxima de Riad, não de Teerã.



A Casa de Saud – paralisada pelos respingos do sangrento fiasco em Istanbul – fará o que for preciso para impedir que Islamabad aproxime-se mais de Teerã. (Ou de Ancara, por falar nisso). Uma aliança que pode estar emergindo, de longo prazo, que mudará o quadro, de Turquia-Irã-Paquistão, era o assunto na cidade – pelo menos durante essa semana histórica.



O que nos leva para o visitante crucialmente importante que Khan recebeu em Islamabad antes de partir para a China: o ministro de Relações Estrangeiras do Irã Javad Zarif. Mês passado, 14 guardas de fronteira iranianos foram sequestrados pelos jihadistas fanáticos Jaish al-Adl Salafi, com base do Paquistão. Até aqui, as forças de segurança do Paquistão não receberam qualquer ajuda.



Khan e Zarif conversaram sobre isso – mas também sobre o oferecimento de Khan, para operar como mediador entre Irã e Arábia Saudita, na busca para uma solução para a tragédia no Iêmen. Fato é que, sim, uma reaproximação Teerã-Islamabad já é trabalho em progresso.



Esse o sofisticado jogo geopolítico que Khan tem de jogar. Enquanto isso, em casa, tem de meter a mão na lama, para enfrentar violentos tumultos de origem religiosa.



‘Tudo na legalidade, se não...’



Estou em Islamabad desde a 2ª-feira – na boca do vulcão, curtindo o privilégio de participar de uma das mais extraordinárias conferências geopolíticas em tempos recentes, dessas que, na atual dinâmica de polarização, só pode acontecer na Ásia, não no Ocidente. Mas essa é outra história.



Justo quando eu navegava entre elaboradas análises desse tabuleiro de xadrez geopolítico, a realidade interveio.



Ou – talvez – foi sinal claro de que o Paquistão pode, sim, estar mudando para melhor.


Bloqueios nas ruas paralisaram pontos chaves do país, porque Aasia Bibi, trabalhadora cristã, que estava presa há nove anos, foi afinal absolvida pela Suprema Corte, de acusações espúrias de blasfêmia. Há menos de 4 milhões de cristãos no Paquistão, numa população de 197 milhões.


Eu estava num pequeno grupo, na rodovia para Peshawar, antes de fazer um desvio até Taxila – terra de Alexandre O Grande, onde planejara continuar algumas pesquisas sobre as antigas Rotas da Seda – quando repentinamente tivemos de parar.



Um mulá vomitava ódio por um alto-falante. Uns poucos asseclas bloqueavam a circulação.



A razão pela qual a Polícia não afastou o pequeno grupo, é o xis da questão no suposto novo Paquistão de Khan. O bloqueio na rodovia é uma encarnação das disputas de apostas altíssimas em curso, entre Estado e religião.



De volta a Islamabad, onde me levou a visitar o campus da Universidade Nacional da Defesa, Timoor Shah, um jovem membro brilhante doCentro de Estudos Políticos, deu-me um curso compacto sobre algumas nuances.



Para um público global, o essencial a compreender é o seguinte: de um lado estão o Estado, os militares e o Judiciário. (Continuam a circular acusações de que Khan teria sido privilegiado, nas eleições de julho, pelos militares – a principal instituição no Paquistão – e por um Judiciário politicamente ativo.) Do outro lado estão os maníacos religiosos limítrofes, e uma oposição oportunista e desacreditada.



Os Tehreek-e-Labbaik (TLP), partido político religioso extremista minoritário, cuja única plataforma é castigar blasfêmias, fez ameaças de morte contra os três juízes da Suprema Corte. O Paquistão poderia fazer pior que importar da Arábia Saudita um esquadrão da morte especializado em estrangulamento, desmembramento com serrote e dissolução dos pedaços em ácido, para resolver o problema desses grupos.



Mas é muito instrutivo ouvir o que disse sobre o caso o diretor-geral do setor de Relações Públicas do poderoso serviço de inteligência do Paquistão, ISI, Major-general Asif Ghafoor: é assunto legal, e o Exército do Paquistão não deve deixar-se arrastar para esse tipo de problema. Ghafoor disse também que “Estamos perto de vencer a guerra contra o terrorismo, e nada justifica desviar nossa atenção para outro tipo de questão.”



Ghafoor disse aos partidos políticos-religiosos que protestam contra sentença da Suprema Corte – alguns dos quais são lunáticos limítrofes convictos – que tratem de se manter nos limites da legalidade, ou preparem-se para o pior. Nesse ínterim, o chefe dos TLP, Khadim Hussain Rizvi, jura que o Exército ameaçou “destruir” o partido dele.



Os militares enviaram uma delegação, que incluía oficiais do ISI para falar com os religiosos envolvidos nos protestos. Ghafoor fez lembrar, atentamente, que o ISI é serviço de inteligência que se reporta ao primeiro-ministro.



No fim, o governo cedeu. Apesar de saber que Aasia Bibi corre risco grave e que a única via segura para ela é passagem só de ida para fora do país, o governo aceitou incluí-la numa “Lista de Saída Controlada”. O que não impediu que os fanáticos do TLP ameaçassem “guerra se o Exército permitir que Aasia Bibi deixe o país.”



Assassinado o ‘Padrinho dos Talibã’ 



Como se tudo isso não fosse suficientemente tóxico, na 6ª-feira à noite Maulana Samiul Haq – o legendário ‘Padrinho dos Talibã’ – foi morto a facadas em casa, em Rawalpindi, cidade gêmea de Islamabad.



Haq dirigia a madrassa [escola religiosa] Darul Uloom Haqqania, em expansão, em Akhora Khattak, perto de Peshawar, fundada em 1988. Nessa madrassa estudou ninguém menos que o Mulá Omar, e outros notáveis dos Talibã.



Haq encarna uma torrente de turbulência na história moderna do Paquistão – incluído os mandatos como senador durante os governos Zia ul Haq e Nawaz Sharif. Também é autor de uma famosa sentença nos termos da Xaria, durante o último mandato de Sharif.



Mas para mim, o assassinato de Haq é questão pessoal. Por vias tortuosas, Samiul Haq salvou minha vida – efeito de uma carta de apresentação assinada por ele quando visitei sua madrassa, para acompanhar uma sessão de doutrinação talibanesca em curso.



Quando, depois, meu fotógrafo Jason Florio e eu fomos presos pelos Talibã, numa base militar em Ghazni, no verão de 2000, só fomos libertados e dispensados de esperar seis meses, até sermos julgados como “espiões”, graças àquela carta de Samiul Haq.



Nada que se compare ao movimento inspirado em princípios, da respeitável Suprema Corte do Paquistão, para salvar Aasia Bibi de uma sentença de morte. Mas pode ter sido a salva inaugural numa guerra paquistanesa na era Khan, contra o fundamentalismo religioso.*******



[1] Sobre Imran Khan, ver também 20/6/2012, Assange entrevista Imran Khan Niazi, Russia Today (vídeo ing., transcrito e traduzido, em Redecastorphoto) [NTs].

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