quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Tianxia: “Todos sob um mesmo céu” (pela paz)*: China desafia o sistema da Vestfália, por Pepe Escobar

10/1/2019, Pepe Escobar, Asia Times

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga


Um leão chinês guarda a entrada da Cidade Proibida, Pequim.
Tradições intelectuais e culturais diferem enormemente entre as duas superpotências mundiais. Foto: iStock

Subnarrativa incorporada na narrativa da “agressão chinesa” hoje dominante nos EUA, cinófobos pretendem que a China seria ameaça não só ao modo de vida norte-americano, mas seria também ameaça existencial à república norte-americana.

Vale registrar, claro, que o modo de vida norte-americano há muito tempo deixou de ser modelo invejado ou a ser copiado em todo o Sul Global, e que os EUA andam e falam cada vez mais como uma oligarquia.

Por baixo dessa diferença há uma fissura gigantesca entre as duas grandes potências, como alguns autores e políticos têm tentado explicar.

O presidente Xi Jinping, no discurso da semana passada deixa claro que Pequim trabalha para modificar as regras do atual sistema de Vestfália, de modo a que passe a refletir o poder geopolítico e econômico que a China reconquistou.

Mas não se trata de “derrubar” o sistema estabelecido pelo Tratado de Vestfália em 1648. Com blocos comerciais ainda governando o novo jogo geoeconômico, estados-nação devem ainda continuar como a espinha dorsal do sistema internacional.

Uma das políticas exteriores chinesas chaves é não interferir em assuntos internos de outras nações. Paralelo a isso, o registro histórico desde o fim da 2ª Guerra Mundial mostra que os EUA jamais deixaram de interferir nos assuntos internos de outras nações.

Pequim realmente visa a algo a que se referiu o Professor Xiang Lanxin, diretor do Centro de Estudos Um Cinturão e Uma Estrada, doInstituto Nacional Chinês para Comércio e Cooperação Judicial Internacional da Organização de Cooperação de Xangai, em junho de 2016, numa intervenção crucialmente importante, durante o Diálogo Xangrilá, em junho de 2016, em Singapura.

Lanxin definiu as Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada, como uma avenida rumo a um ‘mundo pós-vestfaliano’, no sentido de uma verdadeira integração geoeconômica da Eurásia levada a cabo por nações asiáticas. Essa é a razão chave pela qual Washington, que foi agente da implantação, em 1945, das regras internacionais ainda vigentes, tanto teme a Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) e hoje vive a demonizá-la  24/7.

Compreender o conceito de Tianxia

A noção de que a China imperial, ao longo dos séculos, conquistou um Mandato Legítimo para reinar sobre Tianxia (“Tudo Abaixo dos Céus”, ing. “All under Heaven”), e que assim se constituiria um “sistema ditatorial” é perfeito nonsense. Mais uma vez vê-se aí a vastíssima ignorância dos cinófobos profissionais quanto às linhas profundas da cultura chinesa clássica.

Bem fariam se aprendessem sobre Tianxia com alguém como Zhao Tingyang, pesquisador da Academia Chinesa de Ciências Sociais e autor de um livro essencial publicado primeiro pela [editora] CITIC Press chinesa, em 2016, e ano passado traduzido ao francês sob o título Tianxia: Tous sous un meme ciel.

Tingyang ensina que o sistema Tianxia da dinastia Zhou (1046-256 BC) é essencialmente uma teoria – um conceito nascido na China Antiga, mas não específico da China, que ultrapassa em muito o país e alcança também questões internacionais, num “processo de formação dinâmica que faz referência à globalização.”

Assim somos introduzidos a uma fascinante ponte conceitual que liga a China Antiga à globalização do século 21, que explica o fenômeno de conceitos políticos definidos por estados-nação, imperialismos e disputas por hegemonia estarem perdendo significado, quando postos diante da globalização. O futuro é simbolizado pelo novo poder de redes globais inclusivas – que está no centro do conceito da Iniciativa Cinturão e Estrada.

Tingyang mostra que o conceito de Tianxia refere-se a um sistema mundial no qual o verdadeiro sujeito político é o mundo. Na visão imperialista ocidental, o mundo sempre foi objeto a ser conquistado, dominado e explorado, nunca um sujeito político per se.

Precisamos pois de visão de nível superior, mais abrangente e unificadora que a noção de estado-nação – num quadro de Lao Tzu: “Ver o mundo de um ponto de vista mundial”.

Você não é meu inimigo

Mergulhando nas raízes mais profundas da cultura chinesa, Tingyang mostra a ideia de que nada existe ‘para além’ de Tianxia, que se trata de fato de um princípio metafísico, porque Tian (‘o céu’) existe globalmente. Assim, Tianxia (tudo/todos sob o céu), como disse Confúcio, também tem de existir globalmente, para que se mantenha ‘conforme’ o céu.

Assim o sistema Tianxia é inclusivo, não exclusivo; elimina a ideia de inimigo e de estrangeiro; nenhum país ou cultura será declarada inimiga nem, por isso, será definida como não incorporável ao sistema.

O ponto mais agudo da desconstrução que Tingyang opera, do sistema ocidental, é quando mostra que a teoria do progresso, como a conhecemos, depende da lógica narrativa do Cristianismo; assim “essa passa a ser uma superstição moderna. A mistura não é nem científica nem teológica – é uma superstição ideológica.”

Do ponto de vista das tradições intelectuais e culturais chinesas, Tingyang mostra que desde que o Cristianismo impôs-se à civilização grega pagã, o ocidente passou a ser conduzido por uma lógica de combate. O mundo surge como entidade belicosa, com grupos ou tribos que se opõem uns aos outros. A “missão [do ocidente] de conquistar o mundo destruiu a priori a integridade do conceito de ‘mundo’. O mundo perdeu o caráter sagrado que tinha, para se tornar um campo de batalha devotado à realização universal do Cristianismo. O mundo tornou-se objeto.”

Assim chegamos a um ponto no qual um sistema hegemônico de conhecimento, mediante seu próprio modo de se definir e monopolizar as regras da linguagem, propaga uma “narrativa monoteísta para tudo, sociedades, história, vida, valores”.

Esse sistema “interrompeu o conhecimento e o fio histórico de outras culturas.” Dissolveu outros mundos espirituais e converteu-os em dejetos sem significado. Assim eles perderiam a integridade e a sacralidade. Extraiu e descartou “a historicidade de todas as outras histórias, em nome da fé num progressismo (versão secular do monoteísmo).” E dividiu o mundo em centro e periferia; um mundo “evoluído” que teria história, contraposto a um mundo estagnado privado de história.

Pouca diferença há entre isso e outras grandes linhas da crítica contra o colonialismo ocidental que se encontram por todo o Sul Global.

Yin e Yang

Tingyang volta por fim à fórmula de Lao Tzu. “Conforme o Caminho do Céu, o excesso é reduzido, e as insuficiências, compensadas”. E assim se conecta ao Yin e Yang, como referido no Livro das Mutações de Zhou: “Yin e Yang é uma metáfora funcional do equilíbrio, no sentido de que a vitalidade de qualquer existência reside no equilíbrio dinâmico.”

O que tira o sossego dos cinófobos é que Tianxia, como explicada por Tingyang e adotada pelo atual governo e lideranças em Pequim, caminhando na direção de um real “equilíbrio dinâmico” nas relações internacionais, impõe um grave desafio ao governo e lideranças dos EUA, seja no poder hard [militar], seja no poder soft [diplomacia e propaganda].

Nesse contexto e sob esses princípios é que deve ser interpretado o comentário crucialmente importante, profundo e de longo alcance, feito pelo ministro de Relações Exteriores Wang Yi, sobre a estratégia diplomática de Xi Jinping. Wang destacou o modo como Xi “introduziu inovações e transcendeu as teorias ocidentais tradicionais de 300 anos, para as relações internacionais.”

Os chineses trazem desafio jamais visto – e não surpreende que Washington, como outras elites ocidentais, estejam paralisadas. No final, é questão de posicionar a noção de Tianxia como promotora superior de “equilíbrio dinâmico” nas relações internacionais, em substituição ao sistema vestfaliano.

Resultado disso, repercussões políticas e culturais vastíssimas podem acabar perdidas na tradução – e a China precisa de poder soft [diplomacia e propaganda] de primeiríssima qualidade, para se fazer compreender.

Assim sendo, em vez de gerar diatribes reducionistas, esse processo deve galvanizar um debate global sério nos próximos anos.*******



* Orig. ing. All under Heaven [Mandarin: Tianxia, “tudo sob o céu”, no sentido de “absolutamente tudo e qualquer coisa”]. A palavra aparece como subtítulo da versão em inglês do filmeHero (2002, dir. Zhang Yimou). Informação interessante em GARY RAWNSLEY e Ming-yeh T. Rawnsley (eds), Global Chinese Cinema: The Culture and Politics of Hero (London: Routledge), pp.78, excerto aqui traduzido porque É interessante e ajuda a entender:

(“All under Heaven”). A expressão aparece várias vezes ao longo do filme. O conflito entre “O Sem Nome”, “Espada Quebrada” e o “Rei de Quin”, que adiante, quando a China for unificada, será o “Primeiro Imperador” [todos esses, personagens do filme], é reduzido precisamente porque todos partilham a mesma noção de tianxia

A lógica subterrânea de tianxia no filme é a seguinte: De um lado, é preciso abandonar o terrorismo e a violência, se se visa a restaurar a paz dentro de tianxia; por outro lado, é preciso tolerar, inclusive promover e apoiar, a unificação de nações mediante a força, para buscar a paz universal. A lógica parece autocontraditória. Mas é essa a lógica da paz que une os assassinos e o Rei de Qin, na narrativa do filme. Os personagens “O Sem Nome” e “Espada Quebrada” desistem de suas missões secretas e apoiam o conquistador, em nome de estabelecer a paz eterna; e o Rei crê que tem Mandato Legítimo para reinar sobre Tudo Abaixo dos Céus (tian ming) porque tem os necessários poder e desejo de levar a paz a todos. A paz torna-se a mais radical justificativa que resolve, supera e vence toda a violência, no mundo do filme Hero” [fim do excerto] (NTs).

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