EUA&Brasil vergonha do mundo (enquanto o mundo se reorganiza sem EUA&Brasil)
13/3/2019, Al-Monitor (do correspondente) [dica de Pepe Escobar, pelo Facebook]
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga
A visita de estado de Hassan Rouhani ao Iraque foi um sucesso para o presidente iraniano. Em termos de cooperação política e econômica, foram assinados vários memorandos de entendimento para facilitar o comércio, os investimentos, as conexões logísticas e as viagens entre os dois vizinhos. Além disso, foi divulgada importante declaração conjunta sobre o compromisso dos dois países para implementar os Acordos de Argel 1975 e anexos relacionados, que enfrentam questões sensíveis e gravemente deterioradas como a demarcação de fronteiras.
São passos da maior importância para Rouhani. Mas o coroamento dessas démarches foi a audiência do dia 13 de março – evento sem precedentes – com o Grande Aiatolá Ali al-Sistani em Najaf — primeira vez que presidente iraniano em exercício é recebido pelo clérigo de mais alta hierarquia no Iraque. Sistani “acolheu com satisfação todos os movimentos para fortalecer as relações entre o Iraque e seus vizinhos para promover interesses mútuos e a partir do respeito à soberania dos estados e da não intervenção em assuntos internos". Também "expressou a necessidade de políticas regionais e internacionais moderadas nessa região, para evitar mais tragédia e danos." Para compreender a significação desse encontro, é preciso considerar a influência de Sistani no Irã.
Ano passado, houve 110 mil alunos seminaristas no Irã, concentrados principalmente na cidade sagrada de Qom. Segundo dados do gabinete de Sistani, 49 mil alunos em 300 seminários no Irã receberam bolsas de estudos do Grande Aiatolá em 2013: 35 mil em Qom, 10 mil em Mashhad e 4.000 em Isfahan (muitos seminaristas recebem bolsas-auxílios de várias autoridades clericais. Além desses, também há estudantes no Irã que não recebem nenhum tipo de bolsa. Assim sendo, pode-se assumir que proporção significativa de seminaristas iranianos são mantidos diretamente por Sistani, o qual, embora viva há muitos anos no Iraque é cidadão iraniano. Essas redes têm grande influência no Irã, onde o sistema prevalecente, dos Jurisconsultos Guardiões da Lei Islâmica [ver também Guardianship of the Jurist (ing.)] — embora só imponha disciplina política, não religiosa – repousa sobre a legitimidade religiosa.
Muçulmanos xiitas tendem a seguir autoridades religiosas no que tenha a ver com como conduzir a própria vida pessoal pelo que determine a religião. Esses altos jurisconsultos são chamados maraji al-taqlid ("fontes a serem imitadas"). Para manter serviços de caridade e estudos, recolhem um 'imposto', khums — imposto de 20% sobre a riqueza — além de doações dos fiéis. Embora não haja estatísticas de quanto seguidores tem cada marja, um estudo pioneiro lançou alguma luz sobre o tema.
Uma equipe do MIT [Massachusetts Institute of Technology] analisou milhares de peregrinos iranianos e iraquianos que fizeram a peregrinação do Arbaeen em 2015. O evento anual atrai milhões de peregrinos. Os iranianos que fazem a viagem ao Iraque não podem ser tomados como representantes do iraniano médico. Mesmo assim é interessante considerar que a distribuição dos Reformistas, em relação aos conservadores entre os iranianos pesquisados, foi quase sempre igual. Além disso, 19% dos respondentes iranianos eram de Teerã; 12,2% de Isfahan e 11,28% de Qom; na população iraniana as porcentagens respectivas foram 16,2%; 6,5% e 1,53%.
Porcentagem ligeiramente superior a 60% dos pesquisados disseram que seguem Khamenei; 20% que seguem o Grande Aiatolá Nasser Makarem Shirazi; e 15% seguem Sistani; 80% dos iraquianos declararam-se seguidores de Sistani.
Mas quanto a pagar o khums — considerando-se que cerca de metade dos entrevistados não quiseram responder – só 22% dos iranianos disseram pagá-lo a Khamenei, e 9% a Makarem Shirazi. Por sua vez, 11% dos iranianos disseram que pagam seu khums a Sistani, além de 46% dos iraquianos pesquisados, que também pagam a taxa sobre a riqueza a Sistani.
O que nos dizem esses dados? Claro que há várias dimensões a considerar – incluindo a consideração de que peregrinos religiosos não são amostra da maioria da população, especialmente no Irã. Mesmo assim, é possível extrair algumas inferências razoáveis:
- Sistani conta com número considerável de seguidores empenhados no Irã.
- Quem queira ser bem-sucedido no governo iraquiano precisa das bênçãos de Sistani.
- Quem queira operar com sucesso no Iraque também precisa das bênçãos de Sistani.
- Considerando-se que Sistani rejeita a teocracia, suas bênçãos podem também servir como guia em ocasiões em que seja relevante ganhar a classe média iraniana e outros estratos da sociedade menos ligados ao pensamento dos Jurisconsultos Guardiões da Lei Islâmica.
Na verdade, muitos dados empíricos garantem evidências para tudo que acima se resumiu. Seja o governo em Bagdá, ou mesmo as autoridades de EUA e Irã, todos já aprenderam e aceitaram que é necessário evitar a oposição da suprema autoridade religiosa em Najaf, Iraque.
A grande influência que Sistani tem na política iraquiana (também extra-constitucional) ficou evidente seja quando conclamou o país a participar no processo eleitoral depois da invasão comandada pelos EUA, suas opiniões sobre primeiros-ministros ou até na luta contra o 'Estado Islâmico'. Essa influência ampliou-se para a política iraniana, onde várias facções buscaram o apoio dele para promover as respectivas posições e respectivos capitais políticos – especialmente em tempos de crise.
Por exemplo, Sistani recusou-se a receber o conservador Mahmoud Ahmadinejad (2005-13) quando visitou o Iraque — inclusive em 2008, na primeira viagem de presidente iraniano ao Iraque. Mas o ex-presidente Akbar Hashemi Rafsanjani, político moderado veterano, que por muito tempo apoiou Rouhani, sim, foi recebido por Sistani quando Rafsanjani visitou o Iraque em março de 2009. No verão daquele ano, vários grupos em Teerã tentaram convencer o Grande Aiatolá a apoiá-los, num momento em que a República Islâmica enfrentou o momento mais grave de agitações internas desde a Revolução de 1979, logo depois da disputada reeleição de Ahmadinejad.
Em telegrama que vazou do Departamento de Estado dos EUA, alguém bem próximo de Sistani dizia que o alto clérigo dissera que recebera cartas de todos os principais grupos envolvidos no conflito de facções no Irã, que "queriam que eu dissesse o que mais interessava a cada um". Sistani manteve-se neutro, em parte movido pelo desejo de não se deixar respingar por desdobramentos.
A cautelosa preferência de Sistani por forças pró-reforma no Irã transparece também no relacionamento muito próximo que mantém com o ministro de Relações Exteriores Mohammad Javad Zarif, que, desde que assumiu o ministério em in 2013, já foi várias vezes recebido pela suprema autoridade religiosa do Iraque. Na primeira visita de Zarif como ministro de Relações Exteriores, Sistani, segundo uma fonte, disse a Zarif que “Li quase todo o seu livro, Mr. Ambassador,[1] e valorizo sua experiência e entendo que o senhor merece a posição que tem, de ministro de Relações Exteriores." E o Iraque foi o primeiro país que Zarif visitou, depois de assumir o ministério.
Em mais um sinal da influência de Najaf na política iraniana, não se deve ignorar que uma das figuras mais poderosas e bem relacionadas no Irã é o representante pessoal de Sistani, o Aiatolá Jawad Shahristani. Fosse nas negociações sobre quem comandaria o governo em Bagdá, ou na mobilização para a luta contra o 'Estado Islâmico', Shahristani sempre teve papel de destaque, com acesso à mais alta liderança no Irã, o que, provavelmente, está além do alcance da maioria dos membros do Gabinete iraniano.
A influência que facilita esses poderosos canais de atuação surge, em parte, das complexidades de laços de família (e políticos): Shahristani é genro de Sistani; Shahristani também é sogro de Ali Khomeini, neto do Aiatolá Ruhollah Khomeini — fundador da República Islâmica.
Sobre esse pano de fundo, a decisão da suprema autoridade religiosa de conceder uma audiência a Rouhani e Zarif informa aos líderes iraquianos que se devem engajar no governo Rouhani, mesmo que contem com o apoio de centros rivais de poder em Teerã, como o Corpo de Guardas da Revolução Islâmica [ing. Islamic Revolutionary Guards Corps (IRGC). Mais que isso, os feitos de Rouhani essa semana devem ter deixado bem claro para o governo Trump e seus aliados árabes, que o Irã nem abandonará nem será abandonado pelo Iraque, embora não se deva interpretar essa posição, de Bagdá ao lado de Teerã, como Bagdá ter posto Teerã acima de Washington.
Por fim, e talvez o mais importante de tudo, o encontro de Rouhani e Sistani foi uma injeção muito necessária de capital político, em momento de crise doméstica. De fato, Rouhani vem enfrentando fogo incessante de seus inimigos de linha-dura, revitalizados pela saída do governo Trump do Plano Amplo de Ação Conjunta [o chamado 'acordo nuclear do Irã].
Apesar de a viagem de Rouhani ao Iraque já estar planejada há mais tempo, a agenda foi, parece, impactada pela dinâmica de poder em Teerã – e pela a visível preferência de Sistani por moderação e reforma no Irã. Esse detalhe não escapou aos rivais do presidente do Irã, como já se viu na cobertura doméstica polarizada de sua audiência com Sistani. Assim, com Rouhani e Zarif manobrando para reafirmar sua autoridade sobre a política exterior da República Islâmica, há vários indicadores a serem observados em busca de sinais sobre o comando que tenham nas questões das agendas regionais. Dentre esses, a possibilidade de uma visita à Síria em futuro próximo, que também seria a primeira de Rouhani como presidente. *******
[1] Āqā-ye Safir: Goftogu bā Mohammad-Javād Zarif, Safir-e Pishin-e Irān dar Sāzemān-e Mellal-e Mottahed [Mr. Ambassador: A Dialogue with Mohammad Javād Zarif, the Former Ambassador of Iran to the United Nations], MohammadMehdi Rāji (ed.), Tehran: Nashr-e Ney, 2013, ISBN 978-964-185-298-8 (paperback), 368 pp. Aqui, resenha em inglês [NTs].
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