sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A confusa 'estratégia' dos EUA na Síria

13/8/2015, Pepe Escobar, RT

O ministro das Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov, o secretário de Estado dos EUA John Kerry e o ministro de Relações Exteriores da Arábia Saudita Adel al-Jubeir reuniram-se semana passada em Doha para encontrar meio para – em teoria – resolver o quebra-cabeças sírio.

O que resultou da reunião – como se deveria prever – foi confusão horrorosa.





Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu


        © Ints Kalnins / Reuters                                                                                                                                 

Al-Jubeir já falara com Lavrov em Moscou. Uma delegação da oposição síria – não jihadistas – também esteve em Moscou. O ministro de Relações Exteriores do Irã Javad Zarif deveria ter ido a Ancara para explicar Síria aos turcos, mas cancelou a viagem. Em vez de ir à Turquia, está no Paquistão e é esperado em Moscou semana que vem.

Todas as estradas para algum tipo de paz em Damasco parecem levar a Moscou. Entrementes, fatos em campo sugerem coisa diferente; o Exército Sírio Árabe continua a combater contra o que o ocidente chama de 'rebeldes moderados' mais legião de jihadistas dos mais completamente doidos.

Mas, do tête-à-tête Kerry/Lavrov, o que resultou mesmo foi um OEBNI (Objeto Estrangeiro de Bombardeamento Não Identificado) [orig. Unidentified Foreign Bombing Object (UFBO)]. Qual a história desse OEBNI?

Em teoria, o OEBNI revela que os EUA afinal resolveram bombardear o Estado Islâmico (EI, antes ISIS), com o objetivo de limpar o terreno na direção de uma solução política. Também a favor dessa interpretação há os seis EUA F-16s, dois aviões militares de apoio e 300 militares norte-americanos que desembarcaram na base da OTAN em Incirlik, Turquia.

Mas o ramo turco dos OEBNIs é muito difícil de compreender – para dizer o mínimo. A Turquia está, essencialmente, bombardeando curdos, não o EI, ao mesmo tempo em que fornece à 'insurgência' síria em campo – teoricamente, não jihadistas –, grande quantidade de armas, para um processo de 'restruturação'.

Tradução (ainda a ser revisada): os rapazes de Erdogan já receberam luz verde para fazer o que quiserem no norte da Síria. E optaram por não perturbar os rapazes do falso Califato, mas redobrar o bombardeio contra os curdos, e empurrar a 'mudança de regime' em Damasco, tudo no mesmo pacote.

A desculpa de Erdogan é que o PKK [Partido Trabalhista Curdo] e as YPG [Unidades de Proteção do Povo] curdas sírias – devem ser 'impedidos' de controlar áreas no norte da Síria que não controlavam 'historicamente'.

Mas aí está o busílis. O governo Obama parece que agora deu mais uma guinada de 180 graus, e pôs-se a bombardear os agora muito mais ricos ($500 milhões), empoderados, treinados e armados 'rebeldes moderados'... na esperança de posicionar-se ao lado dos sírios curdos das YPG.

Assim sendo, é óbvio que a estratégia de Washington nada tem a ver com Ancara, que privilegia bombardear curdos, sob o pretexto de que assim estaria 'combatendo contra Assad'. 

Dado que se trata do governo Obama estrategicamente sem tento nem rumo, Washington não está muito segura de que deva mesmo abraçar as YPG curdas sírias. Como se o Pentágono morresse de medo da ira de Ancara. Ou da ira dos vassalos árabes, dos EUA. Mas até o Pentágono – sempre impermeável a qualquer ironia – admite que se trata de "estratégia frágil".

Não é fan-tás-ti-co que os chamados "movimentos pró-soberania curda" estejam fazendo toda essa gente se borrar de medo?

          © Abdalrhman Ismail / Reuters                                                                                                                     


Quem pegou minha mudança-de-regime, que deixei aqui? 

Pode-se argumentar que o verdadeiro plano do governo Obama para a Síria seja aquele vale-tudo pró-'mudança de regime', da Brookings Institution.[1] Até certo ponto, é já o que está acontecendo em campo, uma subtrama de 'mudança de regime', sem a própria coisa, com Damasco incapaz de controlar grandes porções do território sírio.

E como é que as gangues jihadistas encaixam-se em tudo isso?

Ahrar al-Sham – de islamistas sírios – já lançou manifesto "apoiando" a estratégia de EUA/Turquia para criar um zona-sem-EI no norte da Síria. Embora a Turquia não esteja querendo tal coisa.

E a Frente Al-Nusra– que é Al-Qaeda na Síria, agora já completamente normalizada nos EUA como "rebeldes moderados" – decidiu por uma retirada tática do norte de Aleppo. Tradução: receberam ordem dos norte-americanos e dos turcos para marchar dali.

E isso leva a uma espetacular nuvem de pensamento desejante que se espalha hoje, disseminada pela imprensa-empresa controlada pelos sauditas, por todo o Oriente Médio: a noção de que Ancara teria mostrado excepcional 'habilidade' ao lidar com as diferentes griffes de 'rebeldes' (ex-jihadistas), de tal modo que os 'rebeldes moderados' preferidos dos EUA estão chegando à vitória.

Em campo, contudo, o desenvolvimento implica fenômeno muito mais ameaçador: o surgimento da tal chamada buffer zone, uma área 'preservada de combates', no norte da Síria. Mas aí está o busílis extra: ninguém sabe que tipo de 'rebeldes moderados' e/ou mix de terroristas degoladores será encarregado de 'preservar' esse vasto território.

Nesse caso, perdem, com toda a certeza, os sírios curdos do YPG. E não é exatamente o que Washington deseja. Ou talvez seja. Afinal, o governo Obama não tem a mínima ideia de se quer ou não quer.

O que turcos – e os vassalos árabes dos EUA – querem, sim, é que 'rebeldes moderados' sírios, jihadistas e tudo, unam-se e façam um assalto decisivo para tomar Aleppo. A maior cidade da Síria também é o alvo estratégico de Erdogan. E isso, nos sonhos molhados de Ancara e da Casa de Saud, seria o começo da estrada rumo à 'mudança de regime'.

'Mudança de regime' foi exatamente o assunto de Jubeir na conversa com Lavrov mais uma vez em Moscou. Lavrov foi suficientemente polido para fazê-lo lembrar que "as diferenças" entre os dois, sobre a Síria, permanecem – e que Moscou está fazendo todo o possível para facilitar alguma espécie de diálogo inter-sírios.

        © Abdalrhman Ismail / Reuters                                                                                                                       

Agora, sobre o mapa do caminho 

A vida é dura, para a Rússia, no front diplomático, tendo de lidar com tantos cabeças fracas. Um deles, Khaled al-Khoja, presidente de uma Coalizão Nacional de Forças Sírias Revolucionárias e de Oposição (da qual praticamente ninguém jamais ouvira falar) esteve recentemente em Moscou, e Lavrov o recebeu. Disse que a proposta russo-iraniana para pôr fim à tragédia síria e impraticável; insiste que a única via é "Assad tem de sair".

Assad talvez até saia – mas é movimento que exigirá muito trabalho diplomático.

Seja como for, parece que Doha tomou uma decisão especialmente importante: a Síria não será dividida. Nada de balcanização imperial. Se Kerry realmente aceitara isso, pode-se dizer que o jogo realmente virou.

Assim sendo, um mapa do caminho, agora, implica uma 'transição' organizada pelas linhas da proposta russa, com apoio e impulso do Irã. Pode talvez levar a uma saída 'negociada' de Bashar Assad; a uma coalizão real para dar combate ao EI, que incluirá árabes e o Irã; e nenhuma discriminação conta xiitas ou alawitas, qualquer que seja o cenário futuro na Síria.

Os vassalos árabes dos EUA ainda relutam a admitir que as partes mais desenvolvidas da Síria – que apoiam Assad, e/ou são defendidas pelo Hezbollah e pelo Irã – não cederão, nem por armas nem por outro meio, a qualquer possível maioria sunita. Isso, enquanto Damasco permanece calma, no que tenha a ver com toda a situação militar e de segurança na capital e arredores até a fronteira com o Líbano.

Ao mesmo tempo, a Casa de Saud já começou a ouvir – em teoria – o que diz Moscou. Inclusive a sugestão de Putin de criar uma coalizão real contra o EI – não esse OEBNI (Objeto Estrangeiro de Bombardeamento Não Identificado) EUA/Turquia –, que reunirá Damasco, Riad e Teerã, e também Ancara e Amã.

A proposta de Moscou também inclui grande conferência regional para derrubar as últimas barreiras – da qual participariam Arábia Saudita, Irã, Turquia, ONU, EUA e Rússia.

O mérito diplomático dessa iniciativa é óbvio. Mesmo assim, Erdogan já se pôs a espalhar boatos, à sua própria maneira reducionista: "A atual atitude de Putin em relação à Síria é mais estimulante que antes. Já não insiste em que a Rússia apoiará Assad até o fim. Acho possível que entregue Assad."

          © Omar Sanadiki / Reuters                                                                                                                            

Vai haver revide 

Podem-se atribuir ao 'Califa' Erdogan todas as variantes do mais demente neo-otomanismo – com ou sem mérito. Mas os fatos no campo do OEBNI (Objeto Estrangeiro de Bombardeamento Não Identificado) já o dizem eloquentemente: Ancara só caçará curdos e ignorará totalmente o Estado Islâmico. O ministro das Relações Exteriores da Turquia Mevlut Cavusoglu já o disse sem meias palavras: "Não há diferença alguma entre PKK e Daesh [sigla, em árabe de "Estado Islâmico"]". E isso, por si só, já detona a 'estratégia' do governo Obama.

O Pentágono está furioso. Não surpreende que as proverbiais sempre invisíveis 'fontes militares' já tenham vazado 'informações' para Fox News, segundo as quais generais do Pentágono ficaram 'ofendidíssimos' quando Ancara começou seu próprio ataque-de-OEBNI (Objeto Estrangeiro de Bombardeamento Não Identificado) contra os curdos, 'apenas umas poucas horas' depois de firmar acordo para bombardear o falso Califato, ao lado dos EUA.

Nem Hollywood teria urdido essa subtrama de fogo-amigo: forças especiais dos EUA no norte do Iraque treinando e dando instrução aos Peshmergas curdos enquanto deslizam para seus bunkers subterrâneos, ao mesmo tempo em que os turcos lançam seus OEBNI (Objeto Estrangeiro de Bombardeamento Não Identificado) nas montanhas, contra o quartel-general dos curdos do PKK. Erdogan é doido o suficiente, no ódio que tem dos curdos, para gerar o risco de pulverizar forças especiais dos EUA.

Não que esse pandemônio seja amplamente noticiado no Departamento de Estado. Tudo é atribuído à 'tensão' com 'aliado relutante' que antes 'fingiu que não via' a 'atividade ilícita' do EI. E assim se normalizou o crime de degola: não passa de mera 'atividade ilícita'.

Pensem um pouco nas noites insones do 'Califa' Erdogan: olha para sua fronteira sul, com a Síria, e só vê o fantasma de um estado curdo autônomo. Então, manda bombardear e bombardear. E quando afinal está começando a cair no sono, explodem as bombas do revide.*******

[1] Sobre o mesmo documento, ver também "Brookings Institution quer liquidar a Síria", 7/8/2015, Mike Whitney (ing. Counterpunch; trad. em Blog do Alok) [NTs].

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