segunda-feira, 10 de setembro de 2018

'Resistência' desatina, na neoguerra Garganta-Profunda nos EUA, por Pepe Escobar

9/9/2018, Pepe Escobar, Asia Times


Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu



"11 anos depois, os proverbiais estenógrafos do império vivem de ansiosamente promover... a al-Qaeda (e que grande novidade!). O governo Obama – que arquivou a terminologia da “guerra ao terror” e está agora orwellizando seus métodos – trabalhou lado a lado com o Grupo de Combate Islâmico Líbio, braço da al-Qaeda, para derrubar Muammar Gaddafi na Líbia; e, lado a lado com a Casa de Saud, apoia um rosário de jihadistas salafistas da al-Qaeda para derrubar o governo de Bashar al-Assad na Síria" (11/9/2012, Pepe Escobar: "Marco Zero redux", em redecastorphoto, de Asia Times Online).
____________________________



Primeira página do The New York Times,do dia 9/8/1974, sobre a renúncia do presidente Richard Nixon. (Foto: iStock)

Vivemos hoje num mundo de guerra psicológica e operações 'psi'. A mais recente Guerra Garganta Profunda em Washington tem todos os elementos de um épico do gênero. 
Fear: Trump in the White House, [Medo: Trump na Casa Branca] de Bob Woodward, que permanece como editor associado no Washington Post, será lançado semana que vem, no 17º aniversário do 11/9.

O lançamento, por sua vez, distrairá a opinião pública, desviando as atenções para longe do fato de que a velha Guerra Global ao Terror, cunhada na era Bush, já sofreu metástase e é hoje formato especial de Todos os Rebeldes Sem Causa Norte-americanos, que apoiam abertamente os "rebeldes moderados" da al-Qaeda na Síria, ex- Jabhat al-Nusra, atualmente Hayat Tahrir al-Sham.

Na esteira de Fear, uma/um Garganta Profunda apareceu sem mais nem menos, do nada, sob a forma de coluna anônima publicada no New York Times,[1] vomitando todos os feijões sobre o caos Trumpeano na Casa Branca.

Cínicos pós-modernos lá ficaram, boquiabertos, conjecturando que se esses um, dois, andam e falam como jogo combinado, provavelmente o jogo é combinado. The Washington Post é propriedade do multibilionário Jeff "Amazon" Bezos e esteve até agora em permanente rota de colisão contra o presidente Donald Trump.

E o Post deve estar em ebulição, porque Garganta Profunda dessa vez na verdade ajudou a concorrência. Acrescentando insulto à injúria, oTimes cronometrou a publicação da coluna-bomba para um dia depois do vazamento estratégico, no Post, do livro de Woodward.

O coração da matéria é que a possível armação contribui para a premissa mais simples – exaltando o papel de uma pequena "resistência", ou dos 'bons rapazes'. Todos mobilizados para proteger "nossos valores" e "nossas instituições" contra o perigosamente caótico Trump.

Os cínicos pós-verdade não deixarão de lembrar-se do precedente histórico, de uma "resistência" nos anos 1970s – na Casa Branca de Nixon – que vazou para a imprensa que "Tricky Dick" estaria fora de controle e encurralado por verdadeiros patriotas norte-americanos.

A Guerra Garganta Profunda atual é mais semelhante a um Estado Profundo rachado, que parte para se vingar de Trump via seu braço midiático. A 'armação' – aparecem ao mesmo tempo o livro de Woodward e a coluna "resistência" – mostra ares, cada vez mais claros, de sofisticada operação psi – e prelúdio de golpe branco a ser desferido pelo Estado Profundo.

Todas essas criaturas na pantanolândia 

No coração da "resistência" está a Rússia. Trump, que foi instigado pelo conselho pessoal sobre dividir e governar que lhe deu Henry Kissinger antes da posse, quer, na essência, melhores relações com a Rússia para tentar desconectar Moscou da parceria estratégica com Pequim.

Virtualmente todos que cercam o presidente, para nem falar de grande parte das facções do Estado Profundo, opõem-se a isso.

E isso me traz de volta à coluna "covarde", segundo o governo Trump, da lavra de um "alto funcionário", segundo o Times. Lá se lê que Trump sempre se opôs a qualquer movimento para revidar contra a proverbial agressão russa, antes de, afinal, concordar.

Agora, comparem isso e os Republicanos na colina do Capitólio, que forçaram a Casa Branca a impor sanções cada vez mais ferozes contra a Rússia. E nem por isso se autoapresentam como "resistência".

O guerreiro anônimo da "resistência" tem de ser contextualizado ao lado do instinto básico de Trump de tentar, pelo menos, construir um diálogo à moda da Arte da Negociação com Coreia do Norte e Rússia.

Para as mídia-empresas dominantes não passaria de "preferência por autocratas e ditadores", como o presidente Vladimir Putin da Rússia e o governante da Coreia do Norte Kim Jong Un, trocados por "nações aliadas dos EUA que pensam como os EUA" e em detrimento delas. Mais uma vez, soa como expressão tirada diretamente das páginas de editoriais do Washington Post e do New York Times.

As mais arcanas regras vigentes em Washington determinam que sentinelas sociais, ditos "whistleblowers"só podem agir sob duas formas autorizadas. Ou 'vazam' como no caso de Mark Felt, o Garganta Profunda original, diretamente para o Post; ou 'vazam' documentos oficiais [em papel], como Daniel Ellsberg e os Pentagon Papers.

Contrabando digital, como no caso de Edward Snowden, ou receber arquivos digitais de gente 'de dentro', como Julian Assange e WikiLeaks, é absolutamente fora desses limites, e inadmissível.

A "resistência" não inclui documentos. O combatente da "resistência" argumenta para 'demonstrar' que Trump não comanda o show, e que os reais protagonistas seriam funcionários anônimos que podem também ser elogiados como "patriotas", segundo o Times, ou acusados, como traidores (ou  "TREASON?" [TRAIÇÃO?"] como Trump tuitou).

Muito estranhamente, o site de apostas MyBookie calcula a em 1-2 a probabilidade de o presidente dos EUA acusar de traição o combatente da "resistência", probabilidade maior do que a de Trump ser derrubado por impeachment em 2020 (3-1).

Entrementes, não há debate algum em torno das graves consequências de remover presidente eleito e em exercício – remoção à qual alude o combatente da "resistência" –, porque não planeja deixar que o confronto EUA-Rússia degenere em alerta vermelho de ataque nuclear iminente.

É difícil ignorar o presidente, quando diz: "Estou drenando o pântano, e o pântano esperneia e resiste".

Responsabilidade da era de ouro do jornalismo 

Agora, comparem essas criaturas pós-verdade, do mundo das operações psi nessa neopantanolândia, com uma pantanolândia de anos passados, magistralmente exposta por Seymour "Sy" Hersh em seu livro mais recente, Reporter.

Sy, lenda viva, se autodescreve como "um sobrevivente da era de ouro do jornalismo". Parece gostar de ser, ele mesmo, apenas um rapaz do meio-oeste que "começou a carreira como copyboy de uma pequena agência de notícias que cobria crime, incêndios e os tribunais por lá".

Quase 11 anos adiante, era "repórter freelance em Washington, trabalhando para uma pequena agência de notícias antiguerra", "enfiando dois dedos nos olhos do presidente em exercício", ao revelar "um horrendo massacre cometido por norte-americanos, e ser premiado por isso."

Ora, aquele serviço, sim, teve o mérito de recuperar o verdadeiro significado de "resistência", porque documentou a história de uma guerra que dera errado.

Sy talvez não seja escritor épico à maneira de Norman Mailer, nem nade de braçada na orgia onomatopeica de um inovador Tom Wolfe. Está mais para especialista em briga de rua de Chicago, acertando citações como quem acerta murros, muitas das quais recolhidas de atores anônimos cultivados por décadas à base da confiança mútua. E sempre, todas as vezes, ele as acomodava numa história viva – não em alguma hagiografia nebulosa.

Nessa jornada "I did it, my way" de Sy, encontra-se um passeio falado pela idade de ouro do jornalismo, completado com o magnífico thriller, narrado passo a passo, de como Sy revelou ao mundo o massacre de My Lai.

Mesmo depois dos prêmios e elogios para um dos maiores jornalistas do século 20, emociona saber que Sy "ainda queria emprego em jornal". Conseguiu – primeiro numa revista, The New Yorker, depois, finalmente, no The New York Times, "onde eu queria estar" e "onde minhas matérias teriam impacto imediato."

Sy transmite a excitação de sua primeira viagem como correspondente estrangeiro intermitente, então forçado a converter suas habilidades de farejador de estrada, em capacidade para escrever com prazo curto. Partiu para o Vietnã do Norte, "longínquo cinturão de dinheiro enterrado, via Bangkok e Vientiane, onde um funcionário norte-vietnamita deveria me encontrar e meter-me num dos voos irregulares do Laos para Hanói."

Quando finalmente foi contratado para a equipe de jornalistas do Times, sua carreira "começou com um rugido – nas conversações de paz de Paris."

Adiante, Sy escreveu uma série de matérias de primeira página sobre a linha de rato do tráfico de heroína comandado pela CIA, parte essencial das operações clandestinas da agência no Sudeste da Ásia. A linha-de-rato aparecera pela primeira vez num livro de McCoy, então aluno de graduação em Yale e hoje professor de história na Universidade de Wisconsin.

Sy logo recebeu aquela proverbial "visita" da CIA, alguém do "chamado gabinete dos truques sujos da Agência". Não fez qualquer diferença que ele citasse "um ex-funcionário da CIA com anos de experiência no Vietnã", que dissera que o trabalho de McCoy era "10% tendencioso e 90% a mais valiosa contribuição que eu jamais poderia esperar encontrar."

Mas para a CIA, Sy só criava confusão.

Kissinger: mais relevante que Watergate

É esclarecedor saber como "manteve o inferno bem longe da história de Watergate" – ainda que jogasse tênis com Woodward "ao tempo em que Watergate caminhava, de grande escândalo, para impeachment."

Uma das razões tinha a ver com o fato de que, no fim, o Post dependia integralmente de uma única fonte, Garganta Profunda; e Sy era o Muhammad Ali do jornalismo, mestre dos diretos verbais.

Outra, mais preocupante, é que os pesos pesados dos editoriais do Times "haviam sido convencidos, por Kissinger, de que o Post estava cometendo erro monstro". Kissinger dissera: "O Post vai passar vergonha."

Sy estava mais interessado num "mundo secreto em Washington" – código para maquinações do Estado Profundo. Mas então, numa de suas pesquisas, ele finalmente captou a mensagem, quando um dos editores-chefes aconselhou-o a "sondar Henry [Kissinger] sobre o assunto". Sy não acreditou: "Ouvir Henry e Dick [Helms]? Eram os arquitetos da loucura e da criminalidade sobre as quais eu mais desesperadamente queria escrever".

A criminalidade tinha raízes profundas. Incluía o bombardeamento secreto do Cambodia e a operação clandestina da CIA para destruir o governo de Salvador Allende no Chile (na sabatina antes de ser nomeado, na Comissão de Relações Exteriores do Senado, Kissinger, no mínimo, mentiu: "A CIA nada teve a ver com o golpe, tanto quanto sei e conforme acredito.")

Sy também expôs as conversas secretas de Kissinger no início de 1971 em Islamabad com o presidente Yahya Khan do Paquistão, então principal e único intermediário para conseguir a visita de Nixon à China, no início de 1972. O exército de Khan havia massacrado cerca de três milhões de pessoas para suprimir a secessão no Paquistão Oriental (hoje Bangladesh). Mas Kissinger teve de guardar segredo, para proteger seu muito prezado mensageiro para o contato com Mao.

O Capítulo 14 de Reporter, intitulado "Eu e Henry", também detalha Kissinger "gravando amigos e inimigos – especialmente inimigos – na burocracia". Sy atacou as vísceras do que define como "imoralidades e fraudes" de Kissinger – num momento em que Kissinger mantinha controle absoluto sobre a política exterior dos EUA. Kissinger "safou-se de qualquer possível punição" pelas gravações ilegais, porque ameaçou renunciar, se a Comissão de Relações Exteriores do Senado não apagasse o que chamou de mancha em sua "honra pública".

O livro Price of Power [O Preço do Poder], livro de Sy sobre Kissinger, publicado em 1983, reconstruiu até os detalhes mais penosos quatro anos de política exterior dos EUA. Ainda hoje é leitura obrigatória. Reação de Kissinger: "Não li o livro". E acrescentou: "O que vocês leram é mentira repugnante".

O livro sobre Cheney; que venha 

Enquanto Woodward ao longo dos anos consagrava-se como principal hagiógrafo e estenógrafo da corte (no momento reformatado como criticador-mór da corte), Sy continuou a escrever grandes matérias, das quais uma das mais devastadora pode ter sido a que escreveu sobre os programas de tortura na prisão de Abu Ghraib no Iraque em 2004. Sy penosamente reconheceu que a matéria sobre Abu Ghraib não mudou o curso da guerra no Iraque, "assim como a matéria sobre My Lai não pôs fim à guerra no Vietnã, nem àquela brutalidade."

E o mesmo se aplica ao que aconteceu ao assassinato de Osama bin Laden, pelo governo Obama, em 2011. O Estado Profundo venceu; Sy não conseguiu publicar a matéria nos EUA. Só foi publicada em 2015 na London Review of Books.

O que mudaria o jogo seria a magna opus de Sy sobre Dick "Darth Vader" Cheney, work-in-progress. Diferente de Woodward contra Trump, Sy compreende perfeitamente o problema das "muitas centenas de entrevistas (...) todas anônimas": um "livro cheio de segredos", com atores "ainda envolvidos dentro das comunidades militar e de inteligência implicava alto risco de processos judiciais."

Então voltou à história de bin Laden, onde mostra que o governo Obama traiu a inteligência paquistanesa: "A possibilidade de duas dúzias deSEALS da Marinha passarem sem serem vistos e chegarem até bin Laden, sem ajuda das comunidades militar e de inteligência do Paquistão era zero. Mas a imprensa da Casa Branca engoliu a história."

Será preciso o último dos grandes da "era de ouro do jornalismo" para escrever o relato definitivo do regime Cheney – que reduziu todo o corpo de imprensa da Casa Branca a meros fantoches. E só com grande jornalismo se saberá do que Medo realmente deveria tratar, mas não trata. 

Não basta qualquer ataque vicioso, doentio, que assume um lado 'vitorioso' ainda inexistente. A guerra civil dentro do establishment nos EUA continua, não acabou, e ainda não há vencedor.

No universo paralelo, no mundo neo-Matrix-onde-verdade-é-ficção, presidentes "inconvenientes" são eliminados a machadadas. Em House of Cards, Frank Underwood morreu – como decretou o Deus Netflix.

Vê-se que o cenário logo estará pronto para House of Trump. Para grande lástima da "resistência." Kevin Spacey talvez até consiga de volta o velho emprego.*******



[1] A coluna anônima, intitulada "I Am Part of the Resistance Inside the Trump Administration" [Sou parte da Resistência dentro do governo Trump"] pode ser lida, em inglês, emhttps://www.nytimes.com/2018/09/05/opinion/trump-white-house-anonymous-resistance.html (NTs)

Nenhum comentário:

Postar um comentário