terça-feira, 4 de agosto de 2015

Mas... E qual é o verdadeiro negócio com o Irã?

31/7/2015, The Saker, The Vineyard of the Saker




Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu





Tenho de começar a coluna com um mea culpa: desde pelo menos 2007, vivo a prever que os EUA atacarão o Irã; e até agora, sempre errei completamente. O ataque nunca aconteceu. Mas acertei, ou pelo menos espero ter acertado, nas razões pelas quais esse ataque não conseguiu se materializar, pelo menos até agora. Em termos puramente militares, um ataque contra o Irã não poderia ser bem-sucedido, porque o Irã tinha opções demais, para contra-ataque assimétrico. Mas as verdadeiras razões por trás do fracasso certo de qualquer ataque dos EUA contra o Irã estão enterradas sob uma montanha de mitos que cercam a questão nuclear iraniana. Hoje, proponho examinar, embora não muito profundamente, o maior desses mitos.

O mito: Irã trabalha num programa militar nuclear 

Esse, claro, é o principal mito, a pedra basilar de todas as demais tolices que se escreveram sobre o Irã. A resiliência desse mito baseia-se num fator simples: é impossível provar uma premissa que comece com "não". Assim como o Iraque jamais pôde provar que não tinha armas de destruição em massa, o Irã não pode provar que não tem programa militar nuclear. A comunidade de inteligência dos EUA mostrou nível de coragem realmente surpreendente quando, apesar da pressão imensa de neoconservadores que endossavam esse mito, a comunidade concluiu, no 2007 NIE, que o Irã tivera um programa nuclear no passado, mas parou de trabalhar nele. Mesmo assim, o bom-senso nos confirma o que se pode descrever como "prova circunstancial eloquente" de que o Irã não tem qualquer intenção de desenvolver alguma arma nuclear.

Para começar, desenvolver realmente uma arma nuclear não significaria que o Irã conseguiria usá-la, muito menos contra Israel. À parte a bomba propriamente dita, capacidade nuclear implica ter todos os seguintes itens:


– Possibilidade de testar a bomba nuclear (se não é testada, não tem qualquer serventia).

– Sistema de transporte e disparo (míssil, avião). 

– Habilidades para proteger a bomba nuclear e o sistema de transporte/disparo contra ataque preventivo para desarmá-los. 

– E o mais importante de tudo: uma estratégia de guerra, uma doutrina militar sobre como usar a capacidade nuclear.

Fato é que o Irã não tem como testar bomba alguma, sem que o planeta tome conhecimento. O Irã não tem sistema confiável e que sobreviva, para transportar e disparar a bomba; e, mais importante ainda, o Irã não pode nem cogitar de usar bomba atômica contra EUA ou Israel, sem sofrer ataque devastador de retaliação. Tenham em mente que, embora, com certeza total, os militares israelenses não tenham meios pelos quais ferir significativamente o Irã com armas convencionais, o estado judeu com certeza também total tem meios pelos quais ferir gravemente o Irã, com o vasto e sofisticado arsenal nuclear israelense. Em outras palavras, usar nukes seria suicídio para o Irã.

Pregadores e defensores do mito das armas nucleares iranianas vivem a citar a República Popular Democrática da Coreia, a "Coreia do Norte", como "prova de que bombas atômicas são proteção eficaz contra ataques do Tio Sam". O problema é que essa gente não presta atenção a uma diferença crucial: a capital da Coreia do Sul, Seul, está dentro da área de alcance dos tiros, e a RPDC tem vastíssima capacidade militar convencional, a qual, embora envelhecida e pouco sofisticada, mesmo assim pode causar dano terrível à Coreia do Sul e às forças dos EUA ali alocadas. Segundo a Wikipedia, a RPDC tem 9,495 milhões de pessoal ativo, da reserva e paramilitares (inclusive 180 mil soldados de forças especiais), o que faz da 'Coreia do Norte' a maior organização militar da face do planeta. E tudo isso, literalmente, a apenas uns poucos passos de caminhada de distância de Seul! Bem diferente disso, o Irã absolutamente não tem poder para projetar capacidades que tornariam possível atacar Israel.

Quando encurralados por argumentos lógicos irrespondíveis, os apoiadores/pregadores do mito do programa militar nuclear do Irã voltam sempre ao clichê super desgastado de "muçulmanos são fanáticos", todos querendo "morrer por Alá" e toda a correspondente restante imbecilidade 'ensinada' ao público pelos veículos da imprensa-empresa. O problema aí é que há exatamente nenhuma prova, provas zero, que demonstre a dita "insanidade" dos líderes iranianos (e, não, não, Ahmadinejad jamais disse que o Irã varreria Israel do mapa). De fato, considerando que desde 1979 os EUA vêm fazendo tudo que seja imaginável para derrubar a República Islâmica ou, no mínimo, para criar um pretexto para poder atacá-la, eu diria que os iranianos são gente extremamente sofisticada e altamente inteligente. O modo como o Irã usou os neoconservadores norte-americanos para fazer os EUA atacarem o Iraque (o pior inimigo dos iranianos), em vez de o Irã ter de atacar, me parece movimento simplesmente brilhantíssimo. Não, os iranianos não são, absolutamente não, doidos; eles sabem que ter uma arma nuclear não ajudará a proteger o Irã; e eles sabem que jamais poderiam usá-la, sem determinar o fim da República Islâmica. Além disso, os que tanto acreditam que os muçulmanos sejam doidos com tendência ao suicídio nuclear, jamais tiveram a ideia de bombardear o Paquistão. Quero dizer: por que o Irã, sim, mas o Paquistão, não? 

A realidade: o Irã é ameaça civilizacional à hegemonia dos EUA, a Israel e ao Reino da Arábia Saudita 

Essa é a real razão de todas as tensões, agitar de sabres e histeria: o Irã representa enorme ameaça política, social, econômica, religiosa e até civilizacional aos EUA, a Israel e aos sauditas. Diferente do regime saudita obscurantista e totalitário, a República Islâmica é democrática, democracia islâmica, socialmente progressista, capaz de alcançar sucessos realmente espantosos, no plano econômico, científico e social, sob condições extremamente duras, que incluíram, desde sanções econômicas e políticas impostas pelos EUA, até uma devastadora guerra, que durou sete anos, contra o Iraque (integralmente apoiado e armado até os dentes por EUA, União Soviética e França). Oh, claro, o Irã não é sociedade perfeita e sem mácula, mas, comparado ao resto do Oriente Médio, é realmente um paraíso sobre a Terra. 

Que o Irã tenha alcançado tudo que alcançou, em aberto e total desafio contra ambos, EUA e Israel, é absolutamente inaceitável para o Império Anglo-sionista. Só isso já basta, como razão para desejarem fazer ao Irã o que recentemente fizeram à Líbia e à Síria. Quanto aos sauditas, não só o reino medieval wahhabista deles aparece como ainda mais flagrantemente bárbaro, se comparado ao Irã, mas, também, há uma considerável minoria xiita que vive quase exatamente sobre os maiores campos de petróleo do reino. Na verdade, por alguma ironia do destino, se se examina um mapa da Arábia Saudita ou do Iraque, logo se vê que os xiitas vivem quase exatamente sobre os mais ricos campos de petróleo dos dois países. Por fim, o Irã é aliado natural do regime alawita na Síria e, especialmente, do Hezbollah no Líbano.

Um aspecto dos sucessos da República Islâmica é que o Irã esteve, como ainda está, trabalhando num programa nuclear para finalidades civis. Primeiro, o Irã sempre precisou de fonte alternativa de energia e por isso, já nos aos 1950s, os EUA forneceram ao Irã inúmeras tecnologias nucleares civis, sob programa Atoms for Peace. Segundo, o Irã também está engajado em pesquisa nuclear, também para finalidades médicas; e ter programa de pesquisa nuclear civil é fonte de grande prestígio. 

Mas ainda mais importante que isso, o programa nuclear iraniano converteu-se em um símbolo de soberania. Tio Sam diz "não, você não pode", e o Irã replica "ah, podemos sim, podemos e faremos." Esse é o verdadeiro 'crime' cuja 'culpa' pesa sobre o Irã: ter desafiado a hegemonia anglo-sionista sobre o Oriente Médio.

Pode haver muitas razões pelas quais os EUA assinaram afinal esse acordo 'P5+1' com o Irã. Vão de simples "fadiga imperial" até um desejo, em Obama, de mostrar o 'acordo' como feito de sua presidência (absolutamente catastrófica, sem nem o acordo para exibir). Pode também ter acontecido de o establishment de segurança dos EUA ter feito contas (certas) e concluído que os EUA simplesmente não teriam fôlego para fazer guerra ao Irã. Seja qual for a causa, fato é que o acordo foi afinal firmado, e esse é resultado, mesmo que provisório, extremamente bom.

Potencialmente, o Irã pode desempenhar papel crucial e altamente benéfico no Oriente Médio, primeiro e sobretudo, como único país realmente capaz de dar conta do Daesh (também chamado "Estado Islâmico", ISIL e ISIS) e de estabilizar o Iraque. Sim, é verdade: enquanto os EUA continuarem a apoiar a al-Qaeda na Síria, os horrores só continuarão. De fato, algum analista da CIA particularmente mais pervertido poderia argumentar que dar poder ao Irã pode tornar menos arriscada a derrubada do regime sírio, porque, mesmo no caso de Damasco cair frente à al-Qaeda, o Irã ainda teria meios para conter os terroristas. 

Seja qual for o caso, a verdade é que, hoje, só o Irã e o Hezbollah estão impedindo o Daesh de assumir o controle de toda a região. Assim sendo, eu não descartaria totalmente a possibilidade de a CIA & Co. ter aliviado a pressão sobre o Irã, mesmo temporariamente, para dar 'um aperto' no Daesh (empurrando os dois lados na direção do conflito, como ensina a velha anglo-tradição).

Aqui tenho de voltar ao mea culpa inicial. Passei anos prevendo que os EUA atacariam o Irã e, em vez de ataque, o que se tem hoje é um Plano Amplo Conjunto de Ação (PACA) [ing. Joint Comprehensive Action Plan, JCAP] entre o Irã e o P5+1

Confesso que estou tão feliz com o acordo, quanto descrente de que venha a ser implementado. Estou feliz, porque, se o acordo for levado a sério, pode realmente fazer sentido e diluir uma situação desnecessariamente perigosa. Mas também estou muito cético. Quando observo a reação histérica do lobby israelense nos EUA, custo a acreditar que o acordo, algum dia, venha a ser cumprido pelos EUA. Afinal de contas, se os neocons não controlam completamente a Casa Branca, com certeza controlam todo o Congresso e a imprensa-empresa nos EUA. E nem o fato de que a maioria dos judeus norte-americanos apoiam o acordo com o Irã os deterá. Como já disse incontáveis vezes, o sionismo não é questão étnica nem religiosa, é uma ideologia; e os judeus norte-americanos não têm mais influência sobre o regime dos 1% no poder, que os norte-americanos não judeus. Quanto aos 1%, eles só são leais a eles mesmos. Significa que os siodoidos [orig. Ziocrazies] conseguirão destruir o acordo com o Irã? Honestamente não sei, mas confesso que, por natureza, não tendo ao otimismo. *****

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