sábado, 22 de abril de 2017

EUA esqueceram o que fizeram à Coreia do Norte?

3/8/2015, VoxMax Fisherman 










Bombardeiro EUA B-26 ataca a cidade norte-coreana de Wonsan in 1951.
(Interim Archives/Getty Images)

Talvez nenhum outro país na Terra seja mais mal compreendido pelos cidadãos norte-americanos que a República Popular Democrática da Coreia, RPDC (não por acaso rebatizada "Coreia do Norte" pelos EUA). Por mais que os líderes do país sejam invariavelmente pintados como bufões, mesmo como débeis mentais, na verdade são, sim, extremamente duros na tarefa de agarrar-se ao poder. Mas, por mais que o país seja pintado como comunista ao estilo soviético, verdade é que é muito mais corretamente descrito como depositário do fascismo japonês.


E há outra concepção errada, que os norte-americanos provavelmente não querem conhecer, mas que é importante para compreender o "reino ermitão" [orig. hermit kingdom]. Sim, grande parte do antiamericanismo dos coreanos do norte é fabricado cinicamente como arma de propaganda; e, sim, a maior parte dele é baseado em mentiras. Mas há muita verdade histórica por trás daquele ressentimento. 



Os EUA realmente fizeram coisas terríveis, pode-se dizer criminosas, maléficas, contra a RPDC, "Coreia do Norte". E se o que os coreanos sofreram, aqueles incontáveis abusos, não explica tudo, nem perdoa, tampouco pode ser declarado irrelevante.



Os fatos são os seguintes: No início dos anos 1950s, durante a Guerra da Coreia, os EUA lançaram mais bombas sobre a Coreia do Norte do que em todo o teatro do Pacífico durante toda a 2ª Guerra Mundial. Esse ataque descomunal, planejado para não deixar em pé sequer uma parede, e que incluiu 32 mil toneladas de napalm, em quase todos os casos fez mira deliberada contra alvos civis, além dos alvos militares, e devastou o país muito além do que fosse exigido pelos eventos da própria guerra. Destruíram-se cidades inteiras, morreram muitos milhares de civis inocentes e ainda muitos mais milhares foram abandonados sem teto e sem comida.




Para os norte-americanos, como escreveu o jornalista Blaine Harden, esse ataque à Coreia do Norte e os bombardeios é "talvez a parte mais apagada de uma guerra apagada" –, embora não pareça haver qualquer dúvida de que ali se cometeu "gravíssimo crime de guerra". Assim se pode demonstrar que o ódio que a RPDC cultiva contra os EUA "não é integralmente inventado" – escreveu Harden. – "Há nele uma raiz fincada em narrativa comprovada, a mesma que os dirigentes da RPDC fazem relembrar obsessivamente e que os dirigentes nos EUA obcecadamente querem ver apagada."



E os EUA, como Harden recontou em coluna publicada no início do ano [2015], sabiam exatamente o que faziam:



"Ao longo de um período de três anos aproximadamente, os norte-americanos dizimamos, digamos... 20% da população" – disse o general da Força Aérea dos EUA Curtis LeMay, comandante do Comando Aéreo Estratégico durante a Guerra da Coreia, ao Gabinete da História da Força Aérea em 1984. Dean Rusk, que apoiava os ataques à Coreia e depois seria secretário de Estado, disse que os EUA bombardearam "qualquer coisa que pudesse ser arrancada de onde estava, cada tijolo empilhado". Depois que se acabaram os alvos urbanos, os bombardeiros norte-americanos destruíram barragens hidroelétricas e de irrigação, nas fases finais da guerra, para inundar áreas agrícolas e destruir colheitas."


Hoje, historiadores discutem a importância real que aqueles ataques podem ter tido na geração da "Coreia do Norte" que há hoje; para alguns, são o fator que realmente modelou a história recente daquele jovem país; para outros, a "Coreia do Norte" já estaria a caminho de se converter no "império ermitão", e seus líderes apenas exploraram os ataques norte-americanos, para chegar aonde desejavam.


Como destaca B. R. Myers, autor de The Cleanest Race, talvez o estudo definitivo sobre a visão de mundo da "Coreia do Norte, a propaganda antiamericana já estava em operação mesmo antes de o bombardeio começar. Depois, a propaganda não permaneceu focada no bombardeio pelos norte-americanos (os quais Myers, como muitos outros especialistas, consideram crime de guerra) como se poderia supor:



"Como se poderia esperar, a Guerra da Coreia ocupa lugar central na propaganda antiamericana, mas [a propaganda] se aplica menos contra a extensiva campanha de bombardeio pela Força Aérea dos EUA (o que parece difícil de conciliar com o mito do 'líder protetor') e, muito mais se aplica contra os massacres em vilas e cidades e outras ofensas específicas."


Mas ainda que o bombardeio não tenha gerado todo o ódio obsessivo que a "Coreia do Norte" nutre contra os EUA e os norte-americanos, ajudou, é claro, a dirigir aquele ódio contra alvo definido. Os efeitos do bombardeio foram sentido praticamente em todo o planeta, e o sofrimento que causou converteu-se na primeira experiência partilhada entre todos os próprios norte-coreanos. Diferente da propaganda, que só podia contar e repetir eventos apresentados como crimes cometidos pelos norte-americanos (o que efetivamente muitos deles eram), o sofrimento terrível, partilhado entre tantos era efeito de crime cometido pelos EUA que todos podiam ver com os próprios olhos e sentir na própria pele, que realmente afetara cada um, pessoalmente. Como um evento histórico dessa magnitude e com essas características são seria evento formativo?


Pode-se dizer que o bombardeio pelos norte-americanos não converteu a "Coreia do Norte", de país 'do bem', em 'país do mal'; as sementes dos governos fascistas lá ativos durante gerações já estavam bem plantadas no início dos anos 1950s. E é importante não esquecer que o norte do país iniciou a guerra. Mas o bombardeio pelos norte-americanos inflou, talvez, sim, não intencionalmente, o projeto da família Kim de criar um estado-bunker, volátil, opressivo.



Vê-se isso, por exemplo, em Pyongyang, capital da "Coreia do Norte", que foi literalmente reduzida a pó, pelas bombas dos EUA. Como Myers escreve, "A destruição da cidade original pelas bombas norte-americanas permitiu que o regime reprojetasse tudo, do zero, desde a planta urbana, como grande e duradouro equipamento de propaganda – e de pleno direito."


Pyongyang, capital da Coreia do Norte. Abaixo, em 1953, depois que estimados 75% da cidade foi destruída pelas bombas norte-americanas. Acima, a cidade em 1964, depois de reconstruída. (Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty)

O simbolismo aí é muito claro: os EUA, com aquele projeto de destruição total, facilitou a reconstrução: os líderes da "Coreia do Norte" puderam, então, reconstruir sua capital tão duramente ferida, como distopia Orwelliana erguida em concreto. Que muita por esse projeto pode ser atribuída aos dirigentes norte-coreanos que sabiam perfeitamente o que faziam. Mas os EUA muito contribuíram para que os mesmos líderes convertessem metade da Coreia em cidadela fascista.


Nas raras ocasiões em que os norte-americanos realmente falam sobre os ataques contra a Coreia do Norte nos anos 1950s, é sempre muito fácil desviar a discussão para as duradouras consequências políticas. Mas a parte realmente importante do ponto de vista histórico é que aqueles ataques foram decisivos, no momento em que aconteceram – como continuam decisivos até hoje – não só porque foram politicamente contraproducentes, mas, ainda mais, porque foram horrorosamente injustos.



Podem-se ver as consequências humanitárias e políticas num alarmado telegrama diplomático que o ministro de Relações Exteriores da "Coreia do Norte" enviou à ONU, a qual, pelo menos nominalmente, liderava o esforço de guerra, em janeiro de 1951. O professor Adam Cathcart desenterrou o telegrama há poucos dias, o que me fez pensar novamente sobre aquelas bombas das quais os norte-americanos praticamente não falam. Eis alguns excertos daquele telegrama, impressionantes ainda hoje:


DIA 3 DE JANEIRO, ÀS 10H30 [DA MANHÃ] UMA ARMADA DE 82 FORTALEZAS VOADORAS DESPEJARAM TODA SUA CARGA MORTAL SOBRE A CIDADE DE PYONGYANG. (...)


CENTENAS DE TONELADAS DE BOMBAS E SUBSTÂNCIAS QUÍMICAS INCENDIÁRIAS FORAM DESPEJADAS SIMULTANEAMENTE POR TODA A CIDADE, QUE PROVOCARAM INCÊNDIOS DEVASTADORES. PARA IMPEDIR QUE OS INCÊNDIOS FOSSEM APAGADOS, OS BÁRBAROS TRANSATLÂNTICOS BOMBARDEARAM A CIDADE COM BOMBAS DE ALTO PODER EXPLOSIVO E DE AÇÃO RETARDADA, QUE CONTINUARAM A EXPLODIR AO LONGO DE TODO O DIA, O QUE IMPEDIA QUE AS PESSOAS FUGISSEM DE CASA PARA AS RUAS. TODA A CIDADE PERMANECEU EM CHAMAS POR DOIS DIAS. AO FINAL DO SEGUNDO DIA, HAVIAM SIDO QUEIMADAS 7.812 CASAS DE CIVIS, REDUZIDAS A CINZAS. OS NORTE-AMERICANOS SABIAM PERFEITAMENTE QUE NÃO RESTAVA QUALQUER ALVO MILITAR EM PYONGYANG. (...)



O NÚMERO DE HABITANTES DE PYONGYANG ASSASSINADOS POR EXPLOSÕES, QUEIMADOS VIVOS E SUFOCADOS PELA FUMAÇA É INCALCULÁVEL, E NÃO HÁ MEIO POSSÍVEL DE CONTÁ-LOS. RESTAM NA CIDADE CERCA DE 50 MIL HABITANTES, DOS 500 MIL QUE ALI VIVIAM ANTES DA GUERRA. [Fim do excerto]


Mesma na tradução em inglês, do original russo, já se veem nesse telegrama sementes da retórica conspiracional que se tornaria marca registrada da "Coreia do Norte" (há uma estranha referência a "patrões em Wall Street", que estariam dirigindo a guerra).


Mas, se hoje a retórica antiamericana dos norte-coreanos é não raras vezes carregada de distorções óbvias e mentiras, que a tornam tão fácil de descartar e esquecer, esse fragmento da mesma retórica antiamericana é assustadora real. É o que faz desse telegrama o documento que é, de alto valor histórico, com todo o indescritível sofrimento que revela. Aí se tem um momento em que a caracterização oficial que a "Coreia do Norte" faz dos EUA e dos norte-americanos – que hoje tão facilmente se pode descartar como pura propaganda exagerada e falsa –, carregava indescartável grande dose de verdade.




Vídeo: 



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