11/5/2016, John Helmer, Dance with Bears, Moscou
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
"Tudo tem limite. E com a Ucrânia, nossos parceiros ocidentais cruzaram a linha." Foi o que disse o presidente Vladimir Putin em declaração do dia 18/3/2014, dirigindo-se a uma assembleia especial do Parlamento Russo, antes de ser consumada a incorporação da Crimeia à Federação Russa.
Essa frase tem tudo para ser a linha de mais profundas e amplas consequências da história da Rússia nesse século – e também para o resto do mundo –, porque marcou o fim de meio século de coexistência pacífica entre Moscou, Berlin, Londres e Washington; um quarto de século depois do fim da Guerra Fria. Significa dizer: o limite ultrapassado, a linha que foi cruzada ali, marcam o início de um estado de guerra real.
Agora, quando transcorre a celebração de 2016 da vitória sobre a Alemanha e o fim da guerra na Europa, é hora de recordar como aquela vitória foi alcançada. O galope do cavalo branco conduzido pelo Marechal Georgy Zhukov é um símbolo a celebrar, mas nada explica. Zhukov era tão chegado ao culto da personalidade quanto Stálin. Assistam outra vez.
A guerra que começara dois anos antes, foi dirigida em campo com a tenacidade de Zhukov e algumas de suas táticas, mas o comando real já passara, não a Zhukov, nem a Stálin, mas à Stavka. Se você não sabe o que foi e é aStavka, agora é boa hora para perguntar. Mas a resposta é secreta. Guerra que a Stavka faça, sempre será surpresa.
A primeira surpresa é que nunca haverá anúncio de estratégias russas, direção de operações, alvos ou conceitos de batalha. O conceito mais frequentemente associado no pensamento militar ocidental a Zhukov, e também a Stálin, é que a melhor defesa é sempre o ataque. O próprio Stálin o declarou no discurso de formatura, frente ao staff da Academia Militar do Exército Vermelho, dia 5/5/1941: "A política de paz é boa. Até agora (...) temos feito uma linha [baseada em] defesa. Agora, quando já nos tornamos mais fortes, é preciso ir, da defesa, ao ataque. Na defesa de nosso país, temos de agir ofensivamente. A partir da defesa, ir a uma doutrina de ações ofensivas (...) O Exército Vermelho é exército moderno, e exército moderno é exército ofensivo."
Para que o ataque seja bem-sucedido, é preciso que haja boa inteligência sobre a prontidão e vulnerabilidades do inimigo. É preciso contar com contrainteligência, simulação dos preparativos, ocultação, sigilo, maskirovka.
O fato óbvio e catastrófico é que, no mesmo momento em que Stálin dizia que seus ataques surpreenderiam, já estava contradizendo a própria doutrina: rejeitava conclusões de seu serviço de segurança, inclusive da inteligência militar (GRU), segundo as quais a Alemanha estava muito próxima de atacar a Rússia; e recusava-se a pôr em andamento os planos propostos por seus generais para abortar o ataque alemão, atacando antes, preventivamente. Seis semanas depois desse discurso sobre os méritos do ataque, na manhã de 22/6/1941, Stálin foi tirado da cama pela Operação Barbarossa – a invasão comandada por Hitler.
Quando Putin anunciou que "tudo tem limite" e "nossos parceiros ocidentais cruzaram a linha", estava anunciando publicamente que já extraíra todas as boas lições do seu próprio despertar à Barbarossa. Tanto quanto se sabe publicamente, ninguém na GRU, no Serviço de Inteligência Estrangeira (SVR), no Ministério da Defesa ou no comando do estado-maior foi acusado, condenado, punido, feito de bode expiatório ou fuzilado, por os russos terem fracassado no serviço de antecipar, deter, impedir, abortar ou neutralizar o putsch do governo dos EUA em Kiev, dias 21-22/2/2014. O movimento crimeano que se seguiu foi movimento clássico de defesa mediante ataque – e foi surpresa estratégica, que ele tenha gerado resultado tão eficientemente certo.
Três anos antes, em março de 2011, o então presidente Dmitry Medvedev também tivera seu momento Barbarossa. Aconteceu depois que ordenou ao representante russo no Conselho de Segurança da ONU que aceitasse a zona aérea de exclusão sobre a Líbia, o que iniciou a guerra EUA-OTAN contra aquele país; levou ao assassinato de Muammar al-Qaddafi; e ao movimento de forças armadas, com a fuga de grandes populações para oriente, ocidente, sul e note, inclusive Malta e Itália.
MAPA de National Geographic – Mapa interativo de rotas e fluxos de migração irregular na África, Oriente Médio e região mediterrânea, em http://news. nationalgeographic.com
Comparem-se a declaração de "cruzaram a linha" de Putin e a observação de Medvedev: "Infelizmente, vemos, pelos desenvolvimentos que agora se desdobram, que já começou ação militar real. É algo que não se pode permitir que aconteça (...) A Rússia não exerceu seu poder de veto pela simples razão de que eu considerei errada a resolução em questão. Além do mais, acho que essa resolução reflete, sim, o entendimento que nós também temos dos eventos na Líbia, embora não completamente. Por isso decidimos não exercer nosso poder de veto. Essa, como vocês entendem, foi decisão qualificada de não vetar a Resolução; e as consequências daquela decisão ficaram óbvias. Seria errado nós, agora, nos pormos a dar voltas no assunto e dizer que não sabíamos o que estávamos fazendo. Foi decisão consciente, de nossa parte. Foram as instruções que dei ao Ministério de Relações Exteriores, e que eles cumpriram."
Medvedev poderia ter dito que a Líbia praticamente não tinha valor algum para a defesa da Rússia. Não disse. Poderia ter dito que a Rússia opõe-se a intervenção externa em assuntos internos dos estados. Em vez disso, Medvedev declarou uma sua Operação Kibbitzer [literalmente, Operação voyeur (NTs)]: a Rússia se deixaria ficar, só espiando por cima dos ombros das outras potências, enquanto elas aplicassem a força para mudar regimes, sem deixar de aconselhar: "nada de força desproporcional; deve-se usar a força em proporção aos eventos."
Estude os papéis de Zhukov, as biografias, os arquivos soviéticos já abertos e os debates de historiadores hoje, e você verá que em toda essa documentação sempre falta uma coisa. Há pilhas de registros do que Zhukov disse, fez, conseguiu, baseados em reconstruções de mapas de batalha, diários pessoais e documentos oficiais. Há também o testemunho das filhas dele, de seu motorista, de generais rivais, de políticos invejosos. E sempre, em tudo isso, sempre falta qualquer referência ao modo como Zhukov reuniu e articulou suas avaliações, suas impressões da situação, o que fez com a inteligência e relatórios de operações que chegavam até ele, como construiu seu próprio entendimento, como o alterou e como o avaliou, olhado em retrospectiva. Em resumo, não se sabe como Zhukov costumava pensar; só se sabe o que ele quis que nós pensássemos que ele pensou.
A mais recente biografia, por exemplo, e a melhor em língua inglesa, de Geoffrey Roberts, Stalin’s General: The Life of Georgy Zhukov [O general de Stálin: vida e obra de Georgy Zhukov], não menciona sequer uma fonte de inteligência ou oficial dos quais Zhukov tivesse admitido que precisara para receber informação operacional. Na compilação anterior, de Harold Shukman, Stalin's Generals [Generais de Stálin], só um, de 26 generais listados, só um é oficial da inteligência militar, o general Filipp Golikov, chefe da GRU em 1940-42. Zhukov caluniou-o e o atacou impiedosamente, retrospectivamente.
Inteligência permite antecipar e põe a surpresa a nosso favor; falta de inteligência, ou a incapacidade de compreendê-la, põe a surpresa contra nós. Roberts abriu os arquivos militares russos, para escrever o perfil de Zhukov. Estranhamente, não examinou as avaliações do outro lado – nos arquivos militares alemães.
Segundo esse oficial militar da OTAN, escrever anonimamente para proteger o que escrevesse não era novidade nos procedimentos de Shukov. "A essência do 'modo russo de guerrear' chama-se Surpresa. Conheça e compreenda o inimigo, e surpreenda-o. Acabamos de ver acontecer outra vez na Síria. E, no mesmo campo, incontáveis vezes na crise da Ucrânia, onde absolutamente nada saiu como Nuland & Co. queriam. E em Ossetia em 2008." (Para mais exemplos do mesmo assessor militar, de por que as táticas russas venceram praticamente sempre, contra os jogos de guerra da OTAN, veja aqui.)
Significa que Zhukov teve predecessores. E que também teve aspirantes a sucessores.
Pelo que se sabe do comando dos quartéis-generais, o coletivo conhecido como Stavka, começou no século 19, quando, na tenda no campo de batalha, como o termo russo referido, incluía o general de campanha; seus principais comandantes de unidade; e conselheiros especiais. Durante a 2ª Guerra Mundial, a Stavka era o grupo de de 10 a 20 homens em quem Stálin mais confiava. Era o quartel-general final que estudava as informações de inteligência, avaliava as situações, decidia a estratégia, ordenava operações, coordenava forças, fronts, exércitos. Os oficiais enviados pela Stavka para supervisionar a execução de cada decisão de guerra eram marechais, para que não houvesse questões de hierarquia na relação com os comandantes da linha de frente. Aqui se vê o mapa organizacional daqueles dias (de Geoffrey Roberts, Stalin’s General: the Life of Georgy Zhukov, 2013, p.109:
Hoje, oficialmente, a Stavka já não existe. O Conselho de Segurança, que se reúne quase todas as semanas com o Ministro da Defesa, mas sem oficiais militares, não é a Stavka.
Reunião do dia 26/4/2016 do Conselho de Segurança. À direita de Putin, o primeiro-ministro Medvedev; à esquerda, a presidente do Conselho da Federação, Valentina Matviyenko.
Se a estratégia é comandar pela surpresa, mobilizar e empregar as forças efetivamente necessárias pode ser muito caro. Um modo de preservar a surpresa, mas cortar custos é fazer o inimigo saber (i) onde estão as linhas vermelhas; e (ii) que se cruzar linhas vermelhas será atacado – sem segundo aviso.
Poucos dias depois do discurso de Putin sobre Crimeia-é-a-linha-vermelha, foi publicada na Rússia uma elegante análise das linhas vermelhas russas, por Yevgeny Krutikov, chefe de pesquisa da empresa Versiya, colunista deVzglyad, e ex-militar da ativa. Sobre o mapa, Krutikov marcou com traços vermelhos contínuos as abordagem pelos EUA e OTAN na Geórgia, Ucrânia, Finlândia e Suécia. E com traços vermelhas pontilhados, marcou "ações não amistosas de Lituânia e Polônia, concernentes à região de Kaliningrado, e navegação pelo Báltico, que serão também circunstâncias absolutamente inaceitáveis."
No Ártico, Krutikov registrou que "a ativação recente de disputas em torno do acesso a território Ártico está conectada de modo geral com o desenvolvimento de estoques de energia na calota continental, e também com os prospectos comerciais da Rota da Seda do Norte, nessa era do aquecimento global. A partir de então, há as ilegalidades cometidas pelo Greenpeace, e declarações inesperadamente duras do sempre sonolento Canadá; reanimação de organizações do tipo Bellona [ONGs de 'proteção ambiental', que se organizam em várias cidades russas, algumas das quais foram expulsas em 2015, enquadradas na Lei de Agentes Estrangeiros]; e viagens para participar de convenções ecológicas em Murmansk, de funcionários de alto escalão da Embaixada dos EUA em Moscou e de soldados que combateram no Afeganistão (...). O espaço do Oceano Ártico, especialmente a parte subglacial, é item considerado nos planos militares de EUA e OTAN como a mais adequada de todas as bases disponíveis para lançar um primeiro ataque, seja ataque com armas nucleares sejam armas não nucleares, de alta precisão."
Imagem: Mapa militar canadense de 1987 mostrando "possíveis rotas de submarinos soviéticos" para ataque contra os EUA. Fonte: http://www.journal.forces.gc. ca/vo8/no4/lajeunes-eng.asp
Krutikov redigiu sua análise em março de 2014. Nos dois anos seguintes, a Síria – que naquele momento ele avaliava como evento secundário –, converteu-se em front de guerra que se estende ao longo da fronteira com a Turquia, para incluir as operações turcas camufladas como se fossem da OTAN, em bases como Incirlik. Com o tempo, veremos com mais clareza se os esforços de EUA e Turquia para instalar uma base da OTAN no norte de Chipre também se converteu em extensão do front.
As linhas vermelhas mudaram? Como mudaram?
"As linhas demarcadas em 2014 não desapareceram" – Krutikov responde. – "Há, sim, reforço não autorizado, feito pela OTAN nos Bálticos. Há algum avanço real – a entrega de mísseis de longo alcance e sistemas de defesa antiaérea. Mas é óbvio que essa situação nada tem a ver com a Síria.
Qualquer tentativa de estabelecer novas armas que alcancem território russo sinalizará mudança importante no equilíbrio de poder na Europa. As linhas não mudam, dependendo de se haverá ou não algum acordo para a Síria. Tudo isso está definido. Mas até agora não surgiram novas linhas vermelhas na Síria, graças a Deus."
Há alguns avisos que se deve dar a quem aspire à condição de comandante militar russo estrategista. Um deles tem a ver com a vaidade e autoindulgência que abundavam em Zhukov, como abundavam também nos comandantes pós-soviéticos que o sucederam. Não conte com manter reputação imaculada entre seus pares ou perante a opinião pública, se você tem planos de recolher o botim que Zhukov recolheu da Alemanha – 70 itens de joias de ouro; 740 itens de objetos de prata; 50 tapetes; 60 pinturas; 3,70 quilômetros de seda; 320 peles, antiguidades de outros países; e 20 armas britânicas e alemãs, de caça. Investigado por comissão do Partido, Zhukov declarou que, o que não comprara com seu próprio dinheiro, lhe havia sido dado como presentes-troféus de guerra. Ninguém acreditou.
O segundo aviso é que a Stavka é um coletivo, cujos membros são necessariamente anônimos e não devem de modo algum exibir-se em eventos público montados em cavalos brancos. Stálin, segundo contou Vasily, o filho que ele renegou, tinha planos de montar o mítico garanhão branco no desfile de 1945, mas caiu do cavalo num ensaio, no Campo Khodinka. Indiscutivelmente, Putin é ginete de mais talentos e estabilidade consideravelmente maior na sela (foto do Kremlin, 26/7/2002).
Krutikov propõe a seguinte conclusão: "As linhas vermelhas estão-se reproduzindo em grande número. Mas ninguém as está formulando com clareza, tanto mais porque ninguém jamais se atreverá a cruzá-las. Claro, há a Síria. Mas em campo na Síria, ao longo do ano passado, quando havia lá uma operação militar russa, as linhas vermelhas mudavam todos os dias. De fato, não há sistema muito fixado. Determinar onde estão as linhas vermelhas pode depender de um estado de espírito, da emoção. Houve também o tempo quando a figura de Bashar al-Assad era, ele mesmo, uma espécie de linha vermelha ("Assad tem de sair"). Era posição obrigatória, da qual o ocidente e os EUA não se afastavam. Agora, como qualquer um vê, já podem perfeitamente tolerar Assad."
"O mesmo se aplica ao usa de força militar. Como a destruição do Su-24 russo, pela Turquia. É linha vermelha indiscutível, evento extraordinário, pelo qual alguns indivíduos têm de ser responsabilizados. Mas nem por isso, até agora, aconteceu a guerra mundial. Vidas de militares russos podem ser também consideradas linhas vermelhas absolutas.
Mas todos esses processos estão em mudança perene, com as várias partes constantemente mudando suas posições. Sabe-se lá, talvez nada esteja resolvido no campo da 3ª guerra mundial, e ninguém sinta ganas de riscar linhas vermelhas num canto ou noutro desse assunto, e proibir que outros pisem nelas. Talvez seja, mesmo, o melhor a fazer."
Mas, seja o que for, é segredo militar russo: ninguém nunca saberá.*****
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