segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Troca da guarda: uma análise marxista de Donald Trump

29/8/2017, Haneul Na'avi,* The Duran












Qualquer caminhada à toa pelo asilo de doidos mostra que pela fé nada se prova.
 — Friedrich Nietzsche






posse na presidência do presidente dos EUA Donald J. Trump, dia 20 de janeiro, que acontece no ano do centenário da Revolução de Outubro, acontece depois de um século de crises socioeconômicas que se acrescentaram umas às outras.

O presidente Barack Obama que sai e seu governo de ignomínia abriram caminho para que sua antítese polar complementar chegasse à Casa Branca, o que separou os EUA em dois campos distintos.

Esses dois campos podem ser designados como social-chauvinismo [Lênin, Estado e Revolução (ER)] e social-democracia respectivamente, e são dois lados da mesma moeda na política burguesa, usados agora para encobrir a realidade do sistema norte-americano altamente disfuncional. Veículos da mídia ocidental, e também Russia Today, manobram os respectivos lados dessa dicotomia polarizada, que joga a classe trabalhadora debaixo do trem.

Um dos campos abriga e defende o Santo Graal do Oportunismo, dos autoproclamados 'liberals' sicofantas que apoiam Hillary Clinton, cuidadora troca-fraldão do excepcionalismo norte-americano, indiferentes à escandalosa visível criminalidade das ações da candidata por todo o planeta e à total ausência de qualquer plataforma política.

O outro campo abriga e defende o Espírito Santo do Chauvinismo, dos nacionalistas que saúdam Trump como se fosse candidato contra o establishment, indiferentes à anarquia do próprio establishment e também do anti-establishment, fenômeno que quem tenha algum dia passado feriados em Corleone logo compreenderá.

Essa anarquia contudo emergiu logo em menos de uma semana, com Trump impondo medidas draconianas e se autoproclamando Il Duce della Dolce Vita, o que deixou muitos norte-americanos boquiabertos.

Imediatamente, Trump assinou várias ordens executivas: primeiro, para construir a divisão de fronteira entre EUA e México, o que disparou revide imediato do presidente Peña Nieto; e em seguida para a construção do oleoduto Keystone XL para horror dos que se manifestavam em Standing Rock.

Na política exterior, as relações entre Israel e Palestina azedaram ainda mais depois que Trump congelou $221 milhões de fundos de ajuda aos palestinos e assim mostrou apoio incondicional ao primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Em movimento rápido, desconsiderou perversamente osesforços dos russos para construir a paz na Síria e pôs-se a anunciar seu apoio a 'zonas seguras', sem qualquer entendimento com o Kremlin, com o que puxou o tapete dos acólitos que antes o viam como isolacionista.

Não por destino nem por acaso, mas por escolha própria, os EUA estão condenados a repetir os erros de outras Grandes Potências (França, Grã-Bretanha, Alemanha, Espanha, etc.) depois de alguma grave crise do capital.

Vladimir Lênin explica claramente esse fenômeno em Estado e Revolução [ER]:
Em 1891, Engels já falava da "rivalidade na conquista" [ER, p. 6] como um dos traços mais importantes que marcam a política externa das Grandes Potências. Os canalhas social-chauvinistas sempre, desde 1914, quando essa rivalidade muitas vezes intensificada deu lugar a uma guerra imperialista, vêm acobertando a defesa dos interesses predatórios da "própria burguesia deles" com frases sobre "a defesa da pátria" , "defesa da república e da revolução" , etc.! [ER, p. 6]
Como é possível isso, nessas 'luminosas democracias'? Lênin também explica:
"[…] a onipotência da "riqueza" é mais garantida numa república democrática [porque] não depende de defeitos na maquinaria política ou da proteção política falha do capitalismo. Uma república democrática é a melhor proteção imaginável para o capitalismo e, assim, tão logo o capital se tenha apossado […], ele estabelece o próprio poder tão bem protegidamente, tão firmemente, que nem a troca de pessoas, instituições ou partidos na república democrática burguesa pode abalá-lo" [ER, p. 14].
É claro que as 'democracias' ocidentais são democracias burguesas, parlamentares, nas quais as facções da classe dominante continuam dedicadas a extorquir mais valia (riqueza apropriada) da classe trabalhadora, o que seria impossível sem o faccionalismo – ferramenta indispensável para gerir, redirecionar e mitigar as energias de cada crise capitalista enquanto se desenvolve naturalmente.

Apoiadores de Trump e Clinton, além de muitas outras subdivisões das estruturas de classe ocidentais, refletem esse traço perfeitamente, dada a suafundamental codependência em relação à burguesia, em base material e ideológica. Ambas as ideologias, a social-chauvinista e a social-democrática são construções da burguesia, de suas instituições, agendas econômicas, valores etc., etc., para poder dirigir cada crise.

Contudo, todos os instrumentos da exploração burguesa são fantasias, efemeridades, que rapidamente colapsam à luz do dia. No Manifesto Comunista, Karl Marx ensina que:
A moderna sociedade burguesa […] é como o feiticeiro que já não consegue controlar as forças que ele próprio conjurou com seus feitiços.
A máfia anárquica da classe governante e seus "pistoleiros adestrados" que controlam as instituições ocidentais ainda são a base dominante, ou a realidade material. Uma vez que as massas nada fizeram para derrubar as relações de produção prevalecentes, ou as relações com o capital (os meios de produção), o proletariado e a pequena burguesia recorrem à espontaneidade revolucionária como uma reação a cada crise; precisamente o que está acontecendo em todos os EUA e em toda a Europa.

Assim sendo, não importa quantas vezes os estados transatlânticos "troquem a guarda" mediante eleições, protestos, ou 'escrevendo abaixo-assinados ao Congresso', sempre haverá mais um Trump, Hillary, Cameron, Hollande ou Merkel para assumir o lugar do anterior, com duas vezes mais manias de grandeza. Os fundamentos materiais desses sistemas permanecem, e o que permanece é a nunca mitigada anarquia do capitalismo.

Tampouco desaparecerão os sintomas do imperialismo, ou do capitalismo em declínio. São os seguintes:
1.concentração da produção e do capital […] em tão alto grau que já criou monopólios que têm papel decisivo na vida econômica; 
2. fusão do capital bancário com o capital industrial, e a criação, com isso, desse "capital financeiro", de uma oligarquia das finanças; 
3. exportação do capital, como processo diferente da exportação de mercadorias, e que adquire importância excepcional; 
4. formação de associações capitalistas monopolistas internacionais, que partilham o mundo entre elas mesmas; e 
5. [Completa-se a] divisão territorial de todo o mundo entre as maiores potências capitalistas.
É importante compreender no plano teórico, como essas forças materializam-se na sociedade ocidental, e encontrar exemplos claros de como operam. Sem essa compreensão por teoria, todas as classes continuarão a mercê daquelas forças, que operam de modo observável, científico, e estão além do controle por ideologias nacionalistas ou identitárias.

Tome-se o componente mais central da política econômica de Trump, que é criar infraestrutura e empregos para inflar o número de parcerias público-privadas (PPPs). 

A London School of Economics define essas PPPs como "instituição pela qual se delegam […] poderes de Estado a organizações privadas [ou] delegam-se poderes que, numa dada sociedade, são considerados poderes de Estado, a organizações privadas".

A Foundation for Economic Education (FEE) atribui essa definição ao programa de Benito Mussolini para o fascismo econômico, o qual, ecoando ainda no entusiasmo do ex-secretário do Trabalho dos EUA Robert Reich e do conselheiro da Fundação Clinton Foundation Ira Magaziner, "sempre exigirá coordenação cuidadosa entre os setores público e privado [os quais] devem trabalhar de comum acordo." 

Mas a London School observa que:
Uma questão fundamental [nas PPPs] é a partilha dos riscos na presença de assimetrias de informação [e que] os riscos para investidores privados são particularmente altos durante a fase de desenvolvimento e construção. Isso tem a ver não só com os custos envolvidos, e o pricingsubsequente que pode ser contido pelo Estado, mas também com fluxos futuros de retornos em relação ao uso e a demanda ainda não testados.
A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico [ing. Economic Cooperation and Development (OECD)] concorda e menciona as desvantagens das PPPs, como:
[…] "tira o gasto de dentro do orçamento, [para] evitar controles de gastos [e] cria para o governo riscos contingentes e diretos sem qualquer transparência", além de ameaçar "a integridade do processo de orçamento" e minar "esforços para salvaguardar a sustentabilidade macroeconômica [que] são "obstáculo para alcançar disciplina fiscal e boa governança."
Isso implica que Trump entregará a gestão dos negócios do governo dos EUA à riqueza privada. Saltando por cima também da abordagem "fumaça e espelhos" de fundações como a Fundação Clinton e outras, o próprio governo empoderará as empresas, que terão controle direto dos negócios do Estado.

Adicionalmente, em vez de racionalizar a máquina do Estado, ele efetivamente porá a economia dos EUA numa posição de incerteza, com muitos investidores privados cuidando ativamente de proteger lucros de seus projetos de desenvolvimento da infraestrutura.

Por mais que o Estado possa vir a gerir os parâmetros da cooperação em PPPs, Trump se verá ele mesmo na posição de pastor de rebanhos de gatos (gordos) quando várias empresas se "engalfinharem na disputa pelos EUA" de modo moralmente não recomendável.

Essa já é a realidade para a maior PPP dos EUA: o Federal Reserve. Instituto Mises explica:
Por mais que parcerias público-privadas sejam promovidas como método de excelência para modernizar o Estado, propinas contra o dinheiro do contribuinte têm longa história, de pelo menos um século. Talvez a maior, mais poderosa parceria-público-privada que há próxima de nós seja o Sistema Federal Reserve. O ramo de New York do Fed, que recebeu o monopólio da oferta do que se tornou em moeda mundial de reserva, é ainda tecnicamente uma entidade privada, à qual 'aconteceu' de ter os meios do Estado para defender suas operações no mercado aberto.
O Fed de Minneapolis demonstra os perigos de entregar o controle sobre infraestrutura pública à riqueza privada, recriando o feudalismo a partir do capitalismo, com os servos norte-americanos pagando tributo para usar as estradas do senhor das terras:
Críticos acreditam que tais parcerias são heresia contra a própria noção de infraestrutura pública. Esses opositores das PPPs não se sentem confortáveis com a flagrante venda de patrimônio público a interesses privados […] Empresas privadas então se posicionam para extrair lucros por cobrarem dos usuários (contribuintes) pelo acesso a algo que antes os mesmos usuários podiam usar gratuitamente, e acesso pelo qual eles acreditavam já ter pago.
Também é duvidoso o foco na construção de infraestrutura de transportes. O Banco Mundial mostra que os maiores concorrentes dos EUA pormassa terrestre [orig. land mass] – Rússia e China – serviram-se tipicamente de PPPs para projetos de infraestrutura que têm alta composição orgânica de capital e, subsequentemente, maior taxa de lucro, predominantemente em países em desenvolvimento onde predominam os projetos em campos virgens [ing. greenfield projects].

De 1990 a 2016, os maiores investimentos da Rússia em PPP foram feitos em Tecnologias da Informação e da Comunicação (TCI), com 186 projetos totalizando investimento de mais de $90 bilhões; e os da China foram em eletricidade, com 397 projetos e $50,6 bilhões.

Infelizmente, a política econômica de Trump explora combustíveis fósseis sem pregar que se usem tecnologias verdes, e é pesadamente dependente de projetos marrons [orig. brownfield projects], que revitalizam infraestrutura pré-existente. Ao indicar o ex-presidente da ExxonMobil, Rex Tillerson, ao cargo de seu secretário de Estado, os EUA se autocondenam a projetos obsoletos de transportes, que não geram fluxos confiáveis de retorno, enquanto projetos de TCI e energias renováveis – tecnologias que estão em constante desenvolvimento – são mais lucrativos no longo prazo.

O deputado Peter DeFazio, da Comissão de Transporte e Infraestrutura da Câmara de Representantes já deixou bem evidente essa fragilidade, ao declarar que Trump deveria "só trabalhar em projetos que gerem retornos".

"A maior parte do nosso sistema nacional de rodovias, e nossos problemas com as pontes e todos nossos problemas de trânsito, nada disso gera retornos. Trump não cuidará deles" – disse DeFazio.

O Instituto de Política Econômica da América também já chamou a atenção para o fato de que é impossível prever em que dará o mantra de Trump, "empregos e crescimento", em termos de lucratividade de longo prazo:
Porque o impacto dos investimentos em infraestrutura sobre o nível geral de atividade econômica depende do grau de folga produtiva na economia, da política monetária e de como os investimentos são financiados, e é impossível prever com alguma confiabilidade os efeitos de longo prazo (além de cinco anos) desses investimentos sobre o nível geral da atividade econômica.
Em resumo, a superficialidade das políticas burguesas ocidentais não passam de finas teias de aranha para encobrir suas forças materiais, subjacentes. E sem compreender adequadamente essas forças, as duas classes, a burguesia e também a classe trabalhadora permanecem sempre à mercê delas. 

Para o proletariado, a emancipação sempre parecerá estar a quatro ou a oito anos de distância; mas o estado capitalista jamais permitirá que os trabalhadores 'cheguem lá'. Nenhuma Clinton, nenhum Obama, Trump ou Sanders jamais empoderará a classe trabalhadora, enquanto a classe proprietária estiver ativa por trás das cortinas.

Como o cachorro que volta ao próprio vômito, assim o tolo volta à própria tolice [Provérbios, 26:11, Bíblia Sagrada]. Não adianta trocar 'a equipe' de Obama pela equipe de Trump. Façam o que fizerem, sempre será a própria mesma burguesia "deles".*****



* Haneul Na’avi é membro do Partido Comunista da Grã-Bretanha – Marxista Leninista (ing. CPGB-ML).

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