23/1/2017, Jean-Luc Mélenchon, L'Ère du Peuple
As declarações de Donald Trump antes de tomar posse e depois, no discurso de posse, põem abaixo toda uma estratégia mundial e, principalmente, planos de todos esses países aliados ou incluídos no velho dispositivo. Doravante, China e Europa entram na alça de mira do presidente dos EUA. Ao provocar os europeus com sua aprovação do Brexit e o anúncio de que espera que outros países também deixem para trás a União Europeia, Trump disparou abençoado tiro de canhão contra a bonita fachada do tal "diálogo transatlântico". E ao denunciar a chanceler Merkel e o papel dela, de domínio sobre toda a UE, mostrou que o rei está nu e apanhando bem ali onde mais dói. Violência jamais vista nos anais da diplomacia internacional.
Mas já havia em cena a enormidade de outro rompimento também espetacular. Falo do resultado daquela conversa com a presidenta de Taiwan. Trump mostrou a que ponto está disposto a virar a página da doutrina ainda universal segundo a qual só há uma China [aqui se trata de Trump estar dizendo que não aceita a soberania da China sobre todo o Mar do Sul da China: só existiria a China continental, 'só uma China' (NTs)], como é evidente. Os europeus estão totalmente desorientados, zonzos, perdidos. Nocaute. Tudo isso os pega sem pé de apoio. Tanto mais que acabavam de engajar-se numa operação montada 'na mão grande'.
Já há vários meses reina nos meios institucionais europeus um ambiente de beligerância contra a Rússia, que não se percebe ainda com clareza cá de dentro da França. Mas é verdade que na França ouve-se também um martelar frenético, em todos os registros, para que todos entremos no mesmo sentimento primário e pueril anti-Rússia, sobre o qual repousa o massivo deslocamento militar dos EUA, sem precedentes, com o qual o governo dos Democratas nos EUA amadureceu o próprio plano. Na Europa a ideia caiu muito bem.
Depois do Brexit, os dirigentes da UE aproveitaram a ocasião para introduzir o 'perigo' russo e o correspondente medo e a militarização, como um novo projeto comum, que daria à União Europeia uma razão de ser. A Europa da Defesa tornou-se então tema de todas as declamações oficiais dos eurocratas. Esse discurso, o projeto e os meios afetados por essa orientação têm claras consequências políticas.
Com efeito, a lógica dos funcionários europeus situa-se no campo dos falcões norte-americanos atlanticistas. Vale dizer, eles se põem ao lado dos que, nos EUA, nos estados-maiores militares e nas agências de segurança, instalaram-se firmemente dentro da estratégia de confrontação com a Rússia. São ultra-atlanticistas muito poderosos.
O trabalho de sapa que esses ultra-atlanticistas fizeram, para pôr em ação um suposto papel dos russos da eleição presidencial nos EUA não tem outra origem que a vontade e o interesse deles, de torcer o braço do presidente eleito nos EUA. E com certeza não ficarão só nisso. Enquanto isso, os "realistas" em torno de Trump voltaram suas baterias contra seus verdadeiros rivais: os que ameaçam a produção e a moeda dos EUA, vale dizer: China e Europa. A novidade boquiabertos, sem achar o que dizer, catatônicos, esses eternos aliados dos EUA – os europeus. Realmente: ninguém jamais previu tal coisa.
Não há dúvidas de que a situação é perigosa. Uma provocação pode reiniciar o incêndio na Europa. Será analisada com benevolência por todos que contam com que a linha Trump rapidamente volte ao habitual "tête à tête" com a Europa, numa oposição comum à Rússia. A situação é ainda mais tensa, porque os EUA acabam de desembarcar equipamentos e soldados em número considerável no leste da Europa, que se somam aos que já estão ativos na Ucrânia. No leste da Ucrânia já reina uma histeria anti-russos completamente fora de controle, se se veem os ultranacionalistas e, mesmo, os neonazistas que desfilam pelas avenidas do poder.
Na verdade, os europeus foram colhidos por Trump, em pleno voo. No contexto de aprofundamento planejado das tensões com a Rússia, já haviam começado por reimplantar as sanções contra aquele país. Reenviaram ao povo holandês a cópia do acordo com a Ucrânia que os holandeses rejeitaram. Para completar o quadro, decidiram dispensar de vistos os cidadãos da Geórgia e da Bielorrússia. E – como os EUA lhes ordenaram que fizessem – os europeus começaram a reorganizar suas forças militares. Foi uma virada realmente significativa. O argumento subjacente aí é que a reorganização militar serviria para dar um projeto comum forte, a uma identidade europeia totalmente em pane depois do Brexit. Fato é que a Europa havia realmente começado a apontar seriamente as suas baterias na direção da "defesa europeia" supranacional.
Já em setembro de 2016, o presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker resumira claramente esse projeto. Anunciou a mobilização de "recursos militares comuns" que, em determinadas circunstâncias, pertenceriam à União Europeia. Nessa decisão, os estados nacionais ficariam em posição subalterna. E isso, dito em termos bem claros: "bem entendido, em total complementaridade com a OTAN". Praticamente ao mesmo tempo, a reunião dos ministros da Defesa da União Europeia, dia 14/11/2016, tomava decisões para concretizar o negócio.
Primeiro, foi, simbolicamente, o aumento do orçamento da Agência Europeia de Defesa (AED): mais 1,6%. A AED passou a contar com mais de 33 milhões de euros. É soma modesta. Mas foi o primeiro aumento em seis anos. É um modo de anunciar a mudança de tendência.
Depois, a decisão de criar um "centro comum de programação de missões civis e militares. Em resumo, um quartel-general." Há quem diga que é pouca coisa. Não acho que seja.
Seja como for, depois disso veio uma decisão concreta e eloquente: os ministros da Defesa da Europa decidiram reforçar as capacidades da União Europeia para intervenção militar. Para tanto, decidiram facilitar as regras para a utilização de "grupos de batalha". São esses corpos armados que os estados-membros põem à disposição da União Europeia. OK, até hoje nunca foram empregados.
Verdade é que os europeus só muito raramente concordam em questões de política internacional. Portanto, o uso daquela força, mesmo para missões humanitárias, sempre tropeça na total incapacidade para decidir qualquer coisa. Agora, está acertado que desaparecem os obstáculos à utilização dos "grupos de batalha".
Até hoje, era necessário que os Estados concordassem expressamente com a operação projetada, para que fosse possível exigir deles a contribuição financeira. Não mais. Esteja de acordo, esteja contra, todos os estados estão obrigados a pagar para mobilizar soldados para defender a União Europeia... A isso chamaram de "revisão do mecanismo Athena".
Depois, a própria Comissão Europeia tomou medidas. Já em 30 de novembro, presteza que cheira a coisa combinada antes, a CE já apresentou seu plano de ação para 2017. Trata-se de formar um fundo europeu destinado a financiar pesquisas e desenvolvimento em questões de Defesa europeia. Nele está prevista uma dotação de 500 milhões anuais para pesquisa, e outra dotação estimada em 5 bilhões anuais. Essa segunda dotação é destinada a aumentar a homogeneização dos processos militares dos 28 estados da União Europeia, com a finalidade de formar uma força comum realmente operacional.
Tomadas em conjunto, pode-se avaliar o ritmo e a importância das decisões tomadas. E pode-se facilmente adivinhar a razão que se oculta por baixo delas. Essa gente estava tentando garantir alguns pontos irreversíveis, antes de Trump assumir o governo.
Para tanto, prepararam ativamente uma integração militar supranacional, cuja razão de ser estaria na necessidade de se resguardar contra uma suposta ameaça... da Rússia! Em matéria de resistir contra a Rússia, não há dúvidas de que o Parlamento Europeu se dedicou a um importante processo de preparação psicológica e política.
Desde novembro de 2016, o relatório Paet abria a trilha, com sua proposta de um "Semestre europeu da Defesa". Tratava-se de criar nada menos que um controle europeu sobre os orçamentos nacionais de Defesa. Os estados seriam convocados a "dedicar 20% dos respectivos orçamentos de defesa aos equipamentos identificados como necessários pela Agência Europeia de Defesa". Acabou a independência militar dos Estados.
Por sua vez, o relatório Brok, presidente da Comissão de Relações Exteriores, em dezembro de 2016, apertava ainda mais o laço. Brok propôs que se crie "uma estrutura militar permanente e operacional". E para tanto trata-se de organizar um "Conselho Europeu da Defesa". E daí, claro, porque não há Conselho sem Castelo, retornou a ideia de se criar um quartel-general europeu.
Esse relatório Brok avançava realmente até bem fundo, na direção dessa Europa da Defesa supranacional. Propunha reunir toda a reflexão e as propostas nesse campo, num livro branco: "Um livro branco no qual se precisarão o nível de expectativa, as tarefas, as exigências e as prioridades em matéria de capacidades para a Defesa Europeia". Não pode haver qualquer dúvida sobre a direção na qual tudo isso quer andar.
O relatório Pascu, de novembro de 2016, que já mencionei, expõe completamente o objetivo sem meias palavras: passar de missões inicialmente humanitárias, para missões de guerra.
Todas essas disposições foram fixadas num ambiente de subordinação à OTAN que se pode definir como incondicional. Os termos utilizados para se referir à relação, frequentemente se confundem com alinhamento. O relatório convocava, desde junho de 2015, "para reforçar a cooperação entre a União e a OTAN", e para uma "divisão do trabalho entre OTAN e UE".
Por sua vez, em plena crise de identidade europeia, o relatório Paet sobre a União Europeia da Defesa proclamava em novembro de 2016: "a OTAN e a UE partilham idênticos interesses estratégicos e estão diante dos mesmos desafios no leste e no sul".
Um mês depois, o relatório Brok acrescentava mais uma camada, ao manifestar o seu "apoio sem reserva à cooperação reforçada entre a OTAN e a UE ". Esse documento põe lado a lado – quase inacreditavelmente – as ações dos terroristas do Daech e a ação da Rússia. O relatório Brok "destaca que a situação agravou-se progressivamente e consideravelmente ao longo do ano de 2014, com o surgimento e desenvolvimento do autoproclamado Estado Islâmico e o uso da força pela Rússia".
Nenhum dos meus leitores se surpreenderá por eu não ter votado a favor de nenhum desses relatórios [JLM é Deputado pela França, ao Parlamento Europeu (NTs)]. Mas acho importante chamar a atenção para a evidência de que todos os demais partidos franceses aprovaram todos esses relatórios – o Partido Verde e os Socialistas inclusive –, além de todas as variedades da direita.
Desnecessário dizer que é preciso interromper todos esses arranjos – que configura escalada perigosíssima.
Para a França, a situação é especialmente grave. Com efeito, nossa doutrina de Defesa pressupõe que nenhuma batalha, nem "intermediária" nem "limitada" é ou será algum dia aceitável em solo europeu. O sistema da dissuasão significa que contra qualquer golpe que tombe sobre nós receberá réplica imediata, máxima. Evidentemente que se trata de aposta que se faz, de 'fé' na razão do agressor, que se espera que renuncie, intimidado por nossa réplica. As armas nucleares, nesse sentido, existem para jamais serem usadas.
Mas para que a dissuasão seja efetiva, a decisão não pode ser partilhada com outros, nem negociada. E não conhece exceção. Tudo, ou nada. Ponto é letra. Aceitar dispositivos "de batalha" e prever uso de forças destinadas a combater em solo europeu é aceitar a ideia de conflitos armados de diferentes identidades, à nossa porta ou dentro de nossa casa. Nesse caso, já não se trata de Defesa. Defesa é defesa de um território e de um povo, submetidos a uma lei igual para todos que todo povo decide aceitar livremente. A União Europeia não é nem uma coisa nem a outra.*****
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