23/9/2018, Patrick Cockburn, Unz Review, republicado de The Independent
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Cessar-fogo frequentemente consegue boa mídia. Se dá certo e põe fim à violência, ou dilui uma crise, a mídia rapidamente se entedia e muda de assunto. Mas se a luta continua, os que trabalharam a favor de algum cessar-fogo são condenados como hipócritas sem coração, que ou nunca quiseram pôr fim à matança, ou têm culpa por a matança continuar.
Os especialistas mantêm-se previsivelmente céticos sobre o acordo a que chegaram o presidente Vladimir Putin da Rússia, e o presidente Recep Tayyip Erdogan em Sochi, na 2ª-feira [17/9/2018], para evitar uma iminente ofensiva pelas forças do presidente Bashar al-Assad dirigida contra rebeldes na província em Idlib. É o último enclave da oposição armada na Síria ocidental, oposição que, ao longo dos dois últimos anos, perdeu suas bases em Aleppo, Damasco e Daraa.
É compreensível que haja dúvidas quanto ao acordo, porque, se for implementado, os grupos anti-Assad em Idlib acabarão desdentados, em termos militares. Verão uma zona desmilitarizada policiada pela Rússia e Turquia devorar o território deles; verão “grupos terroristas radicais” arrancados de lá, e todas as armas pesadas, de tanques a morteiros, retiradas de lá. Os rebeldes perderão o controle sobre as duas principais rodovias que cruzam Idlib, e que ligam as cidades de Aleppo, Latakia e Hama controladas pelo governo.
Há acentuado tom de autoconfiança imperial no documento, pelo qual todos os lados da guerra na Síria são instruídos a fazer as pazes. Pode não acontecer exatamente como o previsto, porque é difícil encontrar algum motivo pelo qual grupos de tipo al-Qaeda, como Hayat Tahrir al-Sham, abririam mão voluntariamente da alavancagem que ainda têm. O governo sírio disse que cumprirá o acordo, mas pode calcular que, em prazo médio, conseguirá recuperar Idlib, pedaço a pedaço, como fez com outros enclaves rebeldes.
O mais interessante sobre o acordo não são os detalhes, mas, sim, o que o acordo diz sobre o equilíbrio de forças na Síria, a região e, mesmo, sobre todo o mundo. Até pode ser frágil, mas todos os acordos, afinal, são frágeis, disse o general Charles de Gaulle: “acordos são como mulheres jovens e rosas: brilham enquanto brilham”. A implementação do acordo Putin-Erdogan pode ser difícil, mas os benefícios atenderão ao objetivo do acordo, se menos sírios forem mortos em Idlib.
A guerra na Síria há muito tempo deixou de ser guerra lutada por participantes locais. A Síria tornou-se uma arena onde outros estados confrontam-se entre eles, guerreando guerras ‘por procuração’, como agentes locais de interesses externos, e põem sob teste a própria força e a própria influência. O resultado internacional mais importante da guerra até agora é que a Rússia capacitou-se para se re-estabelecer como grande potência.
Moscou ajudou Assad a afirmar o próprio governo, depois do levante popular em 2011, e depois, pela intervenção militar direta legal – a convite do governo Assad, em 2015 –, garantiu ao presidente a vitória sobre os golpistas. Veterano diplomata de um pais árabe lembra que, no início da guerra na Síria, perguntou a um general dos EUA com comando na região, qual era a diferença entre a crise na Síria e a crise que acabou com a deposição de Muammar Gaddafi na Líbia. O general norte-americano respondeu com uma só palavra: “Rússia.”
Hoje, quando a Rússia é pintada no ocidente como potência agressiva predatória que ameaça(ria) todo o planeta, é difícil lembrar o quanto o país foi marginalizado, há sete anos, quando a OTAN providenciava a ‘mudança de regime’ na Líbia.
Na verdade, a Rússia sempre foi mais forte do que parecia, porque continuou a ser superpotência nuclear capaz de destruir o mundo, mesmo depois da implosão da União Soviética em 1991, como já era antes. Esse fato gigante, extraordinariamente importante, deveria ser difícil de esquecer. Mas políticos e ‘analistas’ continuam, jubilosos, a recomendar que se ‘isole’ a Rússia; a fingir que seria possível e seguro ‘isolar’ bombas atômicas.
A volta da Rússia à posição de grande potência sempre foi inevitável, mas foi acelerada por oportunismo bem-sucedido e erros crassos dos estados rivais dos russos. Assad na Síria sempre foi mais forte do que parecia. Mesmo no ponto mais baixo da popularidade do presidente da Síria, em julho de 2011, a embaixada britânica em Damasco tinha o apoio de 30-40% dos sírios, como se lê em The Battle for Síria: International Rivalry in the New Middle East de Christopher Phillips – leitura que se deve recomendar como essencial para todos que se interessem pela Síria. Os especialistas não conseguiram abalar a convicção, entre estadistas mundiais, de que Assad estaria a um passo de ser derrubado facilmente. Quando o embaixador francês Eric Chevallier manifestou dívidas semelhantes sobre a mudança de regime, que não lhe parecia assim tão iminente, recebeu um tranco de funcionários em Paris, que lhe disseram: “Sua informação não nos interessa. Bashar al-Assad tem de cair e cairá.”
O mesmo pensamento desejante e distante da realidade mantém-se até hoje. Erros e mais erros cometidos por Washington, Paris e Londres deram a Putin o terreno político ideal sobre o qual pôde reassentar o poder do estado russo.
O acordo assinado por Rússia e Turquia 2ª-feira passada decidindo o futuro da província de Idlib é signo de o quanto a posição da Rússia na Síria é superior e forte. Putin pôde assinar um acordo bilateral com a Turquia, segunda maior potência militar na OTAN, sem precisar de qualquer referência aos EUA ou a qualquer outro membro da OTAN.
O acordo significa que a Turquia aumentará seu efetivo no norte da Síria, mas só pode fazer tal movimento sob licença de Moscou. A prioridade, do ponto de vista da Turquia, é impedir que se crie na Síria um statelet curdo sob proteção dos EUA – e para isso precisa da cooperação da Rússia. Foi a retirada do guarda-chuva russo que protegia o enclave curdo de Afrin, no início desse ano, que permitiu ao exército turco invadir e tomar o poder.
Como aconteceu com a Coreia do Norte, há alta probabilidade de que os instintos do presidente Trump acertem muito mais que a tão louvada experiência do establishment da política exterior de Washington e seus clones em todo o mundo. Não aprenderam a lição mais importante das guerras de intervenção lideradas pelos EUA no Iraque e na Síria: ter agitado o caldeirão nesses dois países não fez avançar nenhum dos interesses do ocidente. Apesar disso, o establishment continua a defender a presença militar continuada dos EUA no nordeste da Síria, sob o pretexto de que os militares norte-americanos enfraqueceriam Assad e garantiriam que qualquer vitória dele seria pírrica.
Tudo que aconteceu desde 2011 sugere o oposto disso: ao tentarem enfraquecer Assad, as potências ocidentais o forçarão a depender sempre mais – não menos – de Moscou e Teerã. O ocidente condenará mais sírios à morte, à mutilação, a se tornarem refugiados e está dando mais espaço para que brotem clones da al-Qaeda.
A dominação russa no norte do Oriente Médio tem possivelmente algo de oportunista, mas está sendo reforçada por outro processo. O presidente Trump pode ainda não ter iniciado qualquer guerra, mas a vacilação e a incerteza da política dos EUA significa que muitos países no mundo estão hoje à procura de uma política de resseguro com a Rússia, porque já não confiam nos EUA. Putin talvez não consiga acertar todos os malabarismos de diferentes oportunidades que se lhe apresentem. Mas até aqui tem conseguido surpreendente sucesso.*******
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