quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Paradoxo diabólico: Bolsonaro-Obrador

11/10/2018, Forum Dedefensa.org, Bélgica


Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga



Pepe Escobar, que passa a colaborar diretamente com ConsortiumNews de Robert Parry (falecido no início de 2018), publica artigo trovejante e apocalíptico sobre a situação no Brasil, com o primeiro turno das eleições, a vantagem de Bolsonaro sobre o segundo colocado, e seus 46% dos votos. Para Escobar, Bolsonaro representa perigo enorme de um tipo de hiperfascismo que se supõe pós-moderno a ameaçar a democracia ocidental (o título: Futuro da democracia ocidental está em disputa no Brasil). Pequeno trecho do artigo, deixa ver a percepção apocalíptica:


“A Distopia Central é pouco para qualificá-lo. Os brasileiros progressistas sentem-se aterrorizados com a ideia de enfrentar um deserto intelectual mutante, como no filme Brazil ouMad Max, devastado por fanáticos evangélicos, capitalistas gananciosos do casino neoliberal e militares raivosos inclinados a recriar uma ditadura 2.0.”


Escobar explica também que Bols0naro preparou seu golpe em colaboração com Steve Bannon, eminência parda de Trump, que fez uma “guerra híbrida” para impor essa candidatura. Para descrever ação de Bannon, recorre a técnicas as mais modernas, com avalanche deFakeNews, manipulações em todas as direções e de todos os modos, etc. De modo bem paradoxal, ter-se-ia no Brasil uma reminiscência da campanha EUA-2016. 

Mas não se entende de que lado está a voz que critica. O que se diz aí é que Trump, que tinha Bannon com ele, teria sido eleito com os meios dos quais se serve hoje Bolsonaro – exatamente a tese defendida pela coalizão anti-Trump, dos democratas à moda Hillary Clinton e Soros e seus Black Live Matters

Ou então, ao contrário, fala-se aí das operações diversas e “ híbridas” montadas contra Trump, com o ativismo de Soros e a montagem do talRussiagate

A ambiguidade é completa, porque não se consegue ver onde está o perigo maior e quem é o “inimigo principal”. (Enquanto se espera, Trump, pintado em 2016 como ditador fascista e Hitler pós-moderno, até hoje não mostrou sequer todos os traços e características dessa sinistra previsão.)

Escobar atribui espaço imenso à ação de Bannon na Europa. Para ele, essa ação seria assumir o controle de todas as correntes populares [orig.populistes][1] que se teriam alinhado sob suas luzes, para permitir-lhe cumprir, para progresso exclusivamente de suas próprias concepções e projetos, um plano de Bannon para conquistar a Europa em revolta...


“Na Europa, Bannon está agora investido em intervir, como um anjo da perdição em quadro de Tintoretto, anunciando a criação de uma coligação popular [ing. populist], União Europeia com toda a direita. Bannon recebe publicamente os maiores elogios do ministro do Interior italiano, Salvini; do primeiro-ministro húngaro Viktor Orban; do nacionalista holandês Geert Wilders; e do flagelo do establishment de Paris, Marine Le Pen”.

Mais uma vez, é preciso observar que a realidade é infinitamente mais nuançada, e o quadro muito mais ambíguo e confuso, mais para Jerôme Bosch à maneira de um Picasso. 

É verdade que Bannon instalou-se na Europa com projetos vastíssimos, mas o acolhimento que tem recebido é variado, no mínimo e cheio de contrastes, longe da unanimidade entusiasta e da quase submissão evocadas por Escobar.

Anteontem, Marine Le Pen cuidou de estabelecer distância segura, e há quem diga que a extrema-direita austríaca e o primeiro-ministro húngaro Orban manifestaram reticências a ponto de não o receber. 

A presença de Bannon é interessante para alimentar a ideia de uma “Internacional PopularNada absolutamente nada tem a ver com esta imagem simplista de ditador-manipulador pós-moderno que chega em território conquistado, para arregimentar sua tropa.

Para resumir, digamos que a análise de Escobar, redigida como sempre com estilo de cores fortes e fórmulas inflamadas e sedutoras, pinta situação apocalíptica que responde talvez um pouco demais a uma análise racional feita por parte da esquerda brasileira, da qual o jornalista é próximo, a mesma esquerda que está completamente aturdida ante os resultados de Bolsonaro.

Esse comentário sobre o excessivo entusiasmo de um julgamento racional absolutamente não implica, por alguma estúpida lógica binária, qualquer julgamento favorável, nem ‘autorização’ favorável ao que Bolsonaro diga ou faça ou seja. Aqui simplesmente constatamos o élan

A descrição da posição de Bannon, como manipulador da Europa, além do Brasil, está sendo, a própria descrição, desmentida pelos fatos. Tememos que mais uma vez a razão esteja impondo suas análises pseudo racionais, apoiadas em combinações extremamente tortuosas, em contextos nos quais só há, de um lado, desordem e revolta populares contra o Sistema, as quais, por sua vez, expressam-se pelas vias que encontrem.

Tudo isso tem de ser tão mais atentamente considerado, quanto mais se vê que o julgamento apocalíptico lançado contra Bolsonaro (pseudo popular, mas criatura do demônio Bannon) por analista famoso e famosamente anti-Sistema (Escobar) implica, em contrapartida, visão favorável à única alternativa existente contra Bolsonaro: o populismo[2] [fr. populisme] de esquerda, como Lula o encarnou. 

Ora, temos um exemplo de candidato bem-sucedido, que carrega desde sempre o rótulo de “ populista [fr. populiste] de esquerda” : o mexicano Obrador, eleito à presidência no verão e que tomará posse em dezembro.

Artigo do site DesobedientMedia.com republicado em ZeroHedge.com descreve situação de total apocalipse para as perspectivas do governo de Obrador, demonstrando assim que cenários catastróficos não são apanágio dos populistas de direita, no mundo do anti-Sistema cada vez mais caótico.

O tema central do artigo acima citado, apoia-se nas conexões do partido de Obrador com os cartéis mexicanos da droga, e as capacidades desses cartéis para desenvolverem Armas de Destruição em Massa (ADMs), notadamente de armamentos nucleares. Essa perspectiva é reforçada pelos contatos dos cartéis no exterior, especificamente com terroristas jihadistas (al Qaeda, Daech)... 

Interessante, talvez mesmo educativo e edificante, nesse quesito, quanto ao que se pode deduzir das operações dos diversos serviços de segurança do Bloco BAO (Bloco Americanista Ocidentalista, os EUA), é um relatório do Judicial Watch  de junho de 2016 (“ Fontes da Polícia: Arma Usada nos Ataques Terroristas em Paris foram Fabricadas em Phoenix, Arizona”  [ing. Law Enforcement Sources: Gun Used in Paris Terrorist Attacks Came from Phoenix). Aí se lê que as armas utilizadas nos atentados de 2015 em Paris eram parte do arsenal fornecido pelos serviços de segurança (antidrogas) dos EUA aos cartéis, quando de uma operação secreta para tentar infiltrar-se naqueles cartéis. (A operaçãoFast & Furious teve, como único resultado, entregar carregamentos gratuitos de armas estrangeiras, confiscadas pelos serviços dos EUA de um cartel mexicano, na tentativa de gerar uma ‘guerra por procuração’... entre os cartéis! [Mas... isso já está assumindo proporções de vício! De perversão! (NTs)] A operação, cujos detalhes vazaram, foi denunciada depois por várias autoridades, até no Congresso.)


“As ligações internacionais dão aos cartéis a oportunidade não só para distribuir agentes nucleares e biológicos a outros gruposmas também para adquirir supremacia nesses assuntos. Redes terroristas internacionais como Al-Qaeda e ISIS mantêm há muito tempo laços estreitos com grupos de cartéis do centro e do sul, dada a implicação de todos no tráfico de pessoas e de drogas, o que facilita o transporte de armas, agentes e materiais pelas rotas do Atlântico.”

O relatório [de Judicial Watch, de 
29 de junho de 2016] afirmando que as armas utilizadas nos ataques terroristas a Paris em 2015 foram rastreadas até uma das vendas de armas ilegais que aconteceram durante a operação Fast and Furious, também mostra a capacidade dos grupos criminosos transnacionais mexicanos para transportar não apenas drogas, mas também outros produtos por todo o planeta.”


Adiante, a conclusão do artigo, que se concentra sobre a situação de Obrador e de seu governo que está para começar, no contexto da potência dos cartéis e das ligações diretas ou indiretas de Obrador e de seu partido, com os cartéis:


“Embora o novo presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador (AMLO) seja visto como populista [de esquerda] trazendo mudança radical em relação à elite mexicana no poder, seu partido tem laços com organizações criminosas. AMLO preconizou diretamente um certo número de políticas que melhorarão radicalmente em vez de dificultar posição dos cartéis. O Partido da Revolução Democrática (PRD) de Obrador é descrito pelos observadores como um “cavalo de Troia” já há muitos anos. Em 2011,  gravações revelaram que o candidato do PRD ao posto de governador de Michoacan, Silvano Aureoles, havia recebido 2 milhões de dólares do cartel dos Templários. Em novembro de 2014, o ex-prefeito de Iguala (México), José Luis Abarca, foi preso e depois condenado pelo sequestro e morte de 43 estudantes mexicanos pelo cartel Beltrán Leyva. Abarca, que ordenou que a polícia municipal entregasse os estudantes a membros do cartel, também era membro do PRD.
“AMLO provocou indignação quando, na campanha, propôs a ideia de anistiar os responsáveis pelo tráfico de drogas. É membro do Fórum de São Paulo, do qual fazem parte estados como a Venezuela, onde o governo colabora diretamente com grupos de traficantes como o 1º Comando da Capital, PCC. As reformas econômicas alardeadas por Obrador têm também o útil efeito de ajudar os interesses dos cartéis. Dia 28 de agosto de 2018, Reuters anunciou que um documento redigido pelos conselheiros de Obrador detalhava um plano para suspender os leilões para projetos de petróleo e gás, garantindo à estatal Pemex autoridade para escolher os próprios parceiros de joint-venture, sem leilões para selecionar empresas competitivas. Empresas petroleiras mexicanas, como a Pemex, declaram perder mais de um bilhão por ano, para interesses dos cartéis o que significa que as tentativas do governo para excluir grupos estrangeiros do setor vão permitir ao crime organizado controlar melhor esses importantes interesses comerciais.
Governo assim tão próximo dessas organizações, daria aos cartéis de traficantes mexicanos a influência de que carecem para continuar como fornecedores de 90 a 94% de toda a heroína consumida nos EUA. De posse de armas de destruição em massa, poderiam dominar não só o México, mas também ameaçar os EUA, tanto mais que as relações entre os dois Estados foram gravemente degradadas pelas políticas do presidente Donald Trump em matéria de imigração, de tráfico ilícito e de segurança de fronteiras. Medidas adequadas para degradar as capacidades dos cartéis é essencial para melhorar as operações de luta contra a criminalidade no México e preservar a segurança nacional dos EUA.”

Tira-se de tudo isso a lição hoje mais reiterada que nunca, de o quanto a desordem domina formidavelmente o turbilhão-crísico que atravessamos [fr. tourbillon crisique: o “turbilhão crísico age sobre o tempo, no sentido de que o tempo encurta, o que acelera os eventos, quer dizer, a história entra em definitiva aceleração”], em todos os casos em que vozes anti-Sistema insistem em fazer análises racionais da situação, para julgá-la, ao mesmo tempo em que insistem em defender ‘o próprio lado’ e preservar a própria causa

Isso leva a análises extraordinariamente tortuosas e labirínticas – nem falamos de “complôs” porque estamos bem além disso, e nos dois campos, entre Russiagate e “bannonismo” por exemplo –, como também simulacros de conveniência; essas análises nas quais rapidamente aparecem contradições dificilmente suportáveis, nas quais a proximidade da informação conduz com frequência a deformações factuais que enfraquecem, infelizmente, o que haja de construtivo na análise.

Em resumo, a desordem ataca para começar o meio do qual nasceu (a desordem), quer dizer, a “democracia ocidental”... Uma visão complementar em relação ao que se leu dos diversos populismos, e para apimentar ainda mais o debate, consiste com efeito em terminar a revolução (em sentido espacial) voltando ao ponto de partida, ao fundamental do Sistema, justamente essa “democracia ocidental” que Escobar julga ameaçada.

Dia 10 de outubro, na rede RT France, o novo programa “Interdit d’interdire” [Proibido Proibir] de Frédéric Taddeï abordava o tema do 60º aniversário da 5ª República. Dentre os participantes, Henri Guaino levantou-se contra os que criticam esse quadro institucional da Constituição da 5ª República apontando-a como responsável pela atual crise (na França), – e ao fazê-lo ampliando o objeto do debate... 

Começando pelos próprios atores: que refletem e abraçam tão bem os próprios tempos: “O problema dessa Constituição é conseguir encontrar personagens que estejam à altura dessa função [de presidente da República] que saibam não abusar da função”... e ampliando em seguida e essencialmente, para a “democracia ocidental” quando definiu a crise num sentido universal:


É loucura pretender que a democracia alemã vai hoje muito bem […] A sociedade alemã está sendo dizimada pela precariedade. Tem taxa de miséria maior que outros países e vê-se que sobe aos extremos. Quanto aos EUA, […] é extraordinário avaliar o quanto a fachada de Trump encarna hoje o sucesso absoluto do sistema democrático norte-americano.
A crise da política ou a crise da democracia não estão ligadas diretamente a nossas instituições, porque se fosse assim a democracia iria muito bem em outros lugares, e não cá entre nós. E vai mal em todas as sociedades ocidentais, em todas as democracias ocidentais... [...] É preciso pois interrogar-se sobre as causas, e parar de supor que a resposta seja sempre institucional.
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[1] Essa longa nota foi redigida para outro artigo de Pepe Escobar, da semana anterior ao que é citado nesse artigo – “Ocidente contra o resto, ou ocidente contra ele mesmo?”, orig. emConsortium News, vol. 4, n. 299, 18/9/2018, traduzido ao port. no Blog do Alok –, para cuja tradução já surgira o problema do “populista” vs “popular” em português do Brasil contemporâneo. A nota foi aprovada por Pepe Escobar, em e-mail. Repetimos aqui, para facilitar o acesso.

NOTA DOS TRADUTORES:
 Há um problema de tradução do adjetivo “populist” (ing.) ao português do Brasil contemporâneo, porque o cognato “populista” (port.) tem definição à parte e não corresponde exatamente a “populist”. A direita brasileira só usa “populista” [jamais “popular”] e sempre em sentido pejorativo, para degradar qualquer iniciativa, movimento ou discurso que não seja de defesa e promoção da exploração pela classe exploradora; “populista” no português do Brasil é quase equivalente a “iniciativa, movimento ou discurso manipulado para enganar os miseráveis iletrados” [aquiaquiaqui...], miseráveis que, sem o maléfico ‘populismo’, conseguiriam facilmente ‘ver a verdade liberal’… Uma parte da esquerda burguesa acadêmica também usa o adjetivo “populista” nessa acepção. E também nessa acepção, “populismo russo”, por exemplo, aparece definido na tradução brasileira do Dicionário de Política, de Bobbio, p. 679 [adiante, trecho cortado-colado], em citação de Lênin – super nuançada, precisa, brilhante e utilíssima, mas que a tradução ‘automática’ ao português do Brasil ‘contamina’ de saída:

“O populismo russo caracterizou-se por três elementos; 1) uma devoção mística pelo povo do campo; 2) a rejeição da industrialização por causa do preço que, na forma privatístico-concorrencial do modelo inglês, cobra das classes rurais, com a consequente ideia de se chegar diretamente ao socialismo partindo da estrutura comunitária tradicional própria do campo, alicerçada na comuna rural ou obstina [ru.], pulando a etapa do capitalismo; 3) e, por último, um elemento messiânico-nacionalista, que recebeu da direita eslavófila e a ela o assimila, através do qual a percepção do enorme atraso do país, tão dolorosamente sentida pelos intelectuais russos, transforma-se num sentimento compensatório de superioridade, totalmente irreal, mas nem por isso menos poderoso e eficaz como estímulo para a ação” [itálicos nossos].

Nessa tradução, optamos por traduzir populist por “popular”, pq não nos cabe pressupor e fazer crer que Pepe Escobar esteja usando “populist” por “populista” na acepção depreciativa fortemente ideologizada de ultra direita do Instituto Mises ou de Augusto Nunes na Veja. Há também a possibilidade de usar “popularista” em alguns casos – mas também não nos cabe decidir onde.

Esse problema de terminologia se torna particularmente dramático e crucialmente decisivo, se se considera que Mme. Mouffe está propondo um “populismo de Esquerda”, como se lê adiante, 
no artigo de Pepe Escobar. No Brasil, “populismo de Esquerda” (des)significa alguma espécie de ininteligível e impensável “UDN-do-bem”…

Todos os comentários e correções são bem-vindos. [Fim da NTS] *******.
[2] Aqui, a palavra “populisme” [fr.] tem toda a carga semântica depreciativa que se encontra, também no Brasil, contra todos os “populismos”, de esquerda e de direita. O preconceito ‘antipovo’ dentro da esquerda (universal?!) é tão flagrante, que não se usa o adjetivo “popular” nem o substantivo “popularista” para o militante. O Dicionário Cambridge, registra, para “popular” (ing., preferencial), o significado de “muito conhecido”: ser popular entre os colegas. Implica que já não temos como dizer, sem degradar o semantema “povo”, por exemplo, “popularismo democrático de esquerda”?! Se se escreve “populismo”, em português do Brasil, já não há como resgatar qualquer traço semântico popular que não seja de depreciação. Interessante caso de Pragmática Linguística, a ser estudado [NTs].

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