quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Quem se beneficia do fim do Tratado Nuclear ‘Médio’? Por Pepe Escobar

26/10/2018, Pepe Escobar, de Asia Times, em The Vineyard of The Saker


Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu



O Bulletin of the Atomic Scientists moveu o ponteiro do Relógio do Juízo Final para apenas dois minutos antes da meia-noite. Seria tentador converter tudo em bate-boca sobre flechas e ramos de oliveira, se o cenário não fosse tão aterrador.

O presidente Ronald Reagan dos EUA e Mikhail Gorbachev, secretário-geral da URSS, assinaram o Tratado de Forças Nucleares de Médio Alcance [ing. Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty (INF)] em 1987.

Arms Control Association apreciou muito. “O tratado marcou a primeira vez em que as superpotências concordaram com reduzir os respectivos arsenais nucleares, eliminar uma categoria completa de armas nucleares e utilizar inspeções abrangentes in situ para verificação.”

Três décadas depois, o governo Trump quer retirar-se unilateralmente do Tratado Nuclear ‘Médio’.

No início da semana, o presidente Trump enviou a Moscou o seu conselheiro para segurança nacional John Bolton, para dar a notícia oficialmente ao presidente Vladimir Putin da Rússia.

Na discussão de questões extremamente graves, como as implicações de se dissolver o Tratado Nuclear ‘Médio”, a perpetuação de sanções anti-Rússia, o risco de não se prorrogar um novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas [ing. START Treaty] e da instalação, nas palavras de Putin de “alguns elementos do escudo de mísseis no espaço sideral”, o presidente russo partiu, digamos assim, para flechas e azeitonas:


“Que me lembre, há uma águia careca no brasão dos EUA: numa garra segura 13 flechas, na outra, um ramo de oliveira, com 13 azeitonas, símbolo de política de paz.[1] Pergunto eu: a águia de vocês comeu as azeitonas e ficou só com as flechas?”

Resposta de Bolton: “Não lhe trouxe nenhuma azeitona.”

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, à esquerda, aperta a mão do assessor de segurança nacional dos EUA, John Bolton, antes do encontro deles no Kremlin, em Moscou, em 23 de outubro de 2018. Foto: Agência de Imprensa Estrangeira da Rússia / Agência Anadolu / AFP

‘Nova realidade estratégica’?

Agora já se sabe que o raciocínio do governo Trump para se retirar do Tratado Nuclear ‘Médio’ explica-se, nas palavras de Bolton, por “uma nova realidade estratégica”. O Tratado Nuclear ‘Médio” está sendo descartado como “tratado bilateral, em mundo multipolar de mísseis balísticos”, que não leva em conta as capacidades dos mísseis de China, Irã e Coreia do Norte.

Mas tem um probleminha. O Tratado Nuclear ‘Médio’ limita mísseis com alcance entre 500 km e 5 mil km. China, Irã e Coreia do Norte não são ‘ameaça’ aos EUA por causa desses mísseis. O Tratado Nuclear ‘Médio’ só tem a ver com o teatro de guerra europeu.

Assim sendo, não surpreende que a reação em Bruxelas e nas grandes capitais europeias tenha sido de mal disfarçado horror.

Diplomatas da União Europeia (UE) disseram a Asia Times que a decisão dos EUA foi “um choque” e “a última palha no lombo da UE, dado que põe em risco nossa própria existência, expondo-nos à destruição nuclear por mísseis de curto alcance” – que jamais chegariam ao território continental dos EUA.


A causa “China” – que a Rússia está vendendo a Pequim tecnologia avançada de mísseis – simplesmente não cola na Europa, cuja absoluta prioridade é a segurança europeia. Diplomatas da UE estão comparando à possibilidade – que era mais do que real no ano passado – de que Washington poderia atômico-bombardear a Coreia do Norte unilateralmente. Coreia do Sul e Japão, nesse caso, seriam “dano colateral” nuclear. O mesmo pode acontecer à Europa, no caso de tiroteio nuclear entre EUA e Rússia.

Nem é preciso dizer que descartar o Tratado Nuclear ‘Médio’ pode até acelerar o fim de toda a aliança ocidental pós-2ª Guerra Mundial, abrindo caminho para 1930s remix infernalmente potencializado.

E o relógio continua lá, tiquetaqueando

Relatos que devem ser examinados criticamente, nos mínimos detalhes, garantem que a superioridade dos EUA sobre as capacidades militares da China encolhem rapidamente. Mesmo assim a China não é usina de produção de tecnologia militar de ponta, comparada à China e seus mísseis hipersônicos estado-da-arte.

A OTAN pode ser relativamente forte no front dos mísseis – mas ainda não daria conta da Rússia, numa potencial batalha na Europa.

O perigo supremo, em termos do Relógio do Juízo Final, é a obsessão, entre algumas facções de neoconservadores nos EUA, de que Washington venceria, em guerra nuclear localizada tática “limitada” contra a Rússia.

É o ‘raciocínio’ que jaz por trás de expandir o mais possível a capacidade de primeiro ataque dos EUA, para o mais perto que consigam chegar das fronteiras ocidentais da Rússia.

Analistas russos destacam que Moscou já está – “não oficialmente” – aperfeiçoando o que seria sua própria capacidade para primeiro ataque naquelas regiões fronteiriças. Qualquer simples desconfiança de que a OTAN tente iniciar uma contagem regressiva na Polônia, nos Bálticos ou no Mar Negro pode ser suficiente para empurrar a Rússia a atacar.

Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin refutou imediatamente a conversa de Trump e Bolton, de que a Rússia estaria violando o Tratado Nuclear ‘Médio’: “Tanto quanto compreendemos, os EUA tomaram uma decisão, e iniciarão os procedimentos formais para se retirarem desse tratado em futuro próximo.”


Quanto à decisão dos russo, tudo que é preciso saber é parte da intervenção detalhada de Putin no Valdai Economic Forum. Essencialmente, Putin não trouxe qualquer notícia extraordinária –, mas claro lembrete de que Moscou atacará em resposta a qualquer provocação que se configure como ameaça ao futuro da Rússia.

Os russos, nesse caso, “morreriam como mártires” e a resposta a qualquer ataque seria tão rápida e tão brutal que os atacantes “morreriam como cachorros”.

A linguagem dura pode não ser precisamente diplomática. Mas reflete a total exasperação contra os conservadores norte-americanos capazes de se fazerem de vendedores ambulantes da absurda noção de uma guerra nuclear “limitada”.

A linguagem muito dura também reflete a certeza de que, seja qual for o grau de escalada em que trabalhem o governo Trump e o Pentágono, não neutralizará os mísseis hipersônicos russos.

Tudo isso considerado, não surpreende que os diplomatas da União Europeia, tentando aliviar o próprio desconforto, reconheçam que tudo aí, no fim, tem a ver com a doutrina da Dominação de Pleno Espectro e a necessidade de manter em operação o massivo complexo militar-industrial-de vigilância dos EUA.

Mesmo que o relógio continue a tiquetaquear cada vez mais perto da meia-noite.*******


[1] O brasão faz referência aos 13 estados originais na formação dos EUA, não ao Partido dos Trabalhadores, nem às namoradas do candidato Dória-SP. Significa paz lá dentro e pau no lombo dos de fora. No verso do brasão lê-se  Novus ordo seclorum [Nova ordem para todos os séculos], dentre outros dísticos & figurinhas cabalísticas maçônicas opus-dêusicas e por-aí-vai (NTs)].

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente texto. Esses norte americanos vão comer o pão que o diabo amassou.