Ellen Meiksins Wood,* New Left Review vol. I, n. 127, Maio-Junho 1981 (aqui traduzido por Vila Vudu)
"O objetivo desse reexame não será re-explicar a 'fragmentação' da vida social no capitalismo, mas compreender precisamente o que, na natureza histórica do capitalismo, aparece como 'esferas' que se diferenciam, que se separam –, especificamente no processo que separou 'o econômico' de 'o político'. (...)
(...) a contradição crítica no capitalismo não é entre forças técnicas e relações sociais definidas estreitamente, mas entre dois princípios sociais potencialmente antagônicos: (i) a forma individualista, até antissocial, da propriedade capitalista e (ii) as formas altamente socializadas da produção capitalista.
______________________________ _____
A intenção do marxismo é prover alicerce teórico para interpretar o mundo para mudar o mundo.*** Não é slogan vazio. Tem – ou deve ter – sentido muito preciso. Significa que o marxismo busca um específico tipo de conhecimento capaz de iluminar mais que qualquer outro os princípios do movimento histórico e, pelo menos implicitamente, os pontos nos quais a ação política pode intervir com máximo efeito. Isso não quer dizer que o objeto da teoria marxista seria descobrir um programa 'científico' ou técnico de ação política. Não. O objetivo é prover um modo de analisar especialmente bem equipado para explorar o terreno no qual a ação política tem de ter lugar. Pode-se contudo argumentar que o marxismo desde Marx com frequência perdeu de vista esse projeto teórico e o caráter quintessencialmente político que esse projeto tem.
Em particular, é o que acontece quando marxistas, sob várias formas, perpetuam a rígida separação conceitual entre 'o econômico' e 'o político' que tão bem serviu à ideologia burguesa desde que os economistas clássicos descobriram o 'econômico', assim, no abstrato, e puseram-se a esvaziar o capitalismo do que nele é conteúdo social e político.
Dado contudo que esses aparelhos conceituais refletem – embora como espelho que deforma – uma realidade específica do capitalismo, qualquer separação-diferenciação real do 'econômico' e tentativa de extraí-lo da ideologia burguesa e conseguir que ilumine mais do que obscureça tem de começar por reexaminar as condições históricas que tornaram possíveis e plausíveis aquelas concepções. O objetivo desse reexame não será re-explicar a 'fragmentação' da vida social no capitalismo, mas compreender precisamente o que, na natureza histórica do capitalismo, aparece como 'esferas' que se diferenciam, que se separam –, especificamente no processo que separou 'o econômico' de 'o político'.
Dado contudo que esses aparelhos conceituais refletem – embora como espelho que deforma – uma realidade específica do capitalismo, qualquer separação-diferenciação real do 'econômico' e tentativa de extraí-lo da ideologia burguesa e conseguir que ilumine mais do que obscureça tem de começar por reexaminar as condições históricas que tornaram possíveis e plausíveis aquelas concepções. O objetivo desse reexame não será re-explicar a 'fragmentação' da vida social no capitalismo, mas compreender precisamente o que, na natureza histórica do capitalismo, aparece como 'esferas' que se diferenciam, que se separam –, especificamente no processo que separou 'o econômico' de 'o político'.
Talvez se possa interpretar essa 'fragmentação' histórica de tal modo que o 'fetichismo' das categorias capitalistas possa ser superado, mas sem obscurecer as realidades históricas que aquelas categorias refletem.
Claro que a diferenciação do 'econômico' para um lado, e do 'político' para outro não é simplesmente problema teórico: é problema prático. Talvez não haja nenhum obstáculo maior para a prática socialista, que a separação entre lutas políticas, para um lado, e lutas econômicas, para o outro, que tipificou os movimentos da classe trabalhadora moderna.
Se esse obstáculo fosse, como muitos socialistas revolucionários sugeriram com desdém, mero produto de uma consciência 'não desenvolvida', ou 'falsa' (e até 'errada', como há quem diga) na classe trabalhadora, seria mais fácil superá-lo.
Imagem: cartaz, China, 1967 (Início da Revolução Cultural): |
A persistência tenaz do 'economicismo' da classe trabalhadora porém, deriva precisamente de ele corresponder às realidades do capitalismo e aos modos pelos quais a apropriação e a exploração capitalistas realmente dividiram as arenas de ação econômica e de ação política, e realmente transformaram algumas questões políticas essenciais – lutas contra dominação e exploração que historicamente sempre foram inextrincavelmente entretecidas com o poder político –, em questões diferenciadamente 'econômicas'. Essa separação 'estrutural' pode, de fato, ser o mais efetivo mecanismo de defesa acessível ao capital.
Se, portanto, o objeto da teoria marxista é lançar luz sobre o terreno da ação política, ela não pode nem ignorar essas realidades históricas nem ratificá-las, reafirmando a separação entre economia e política que serviu tão bem ao capitalismo na teoria e na prática.
Em vez disso, a teoria marxista deve explicar precisamente como e em que sentido o capitalismo abriu um fosso entre o econômico e o político – como e em que sentido questões essencialmente politicas como a disposição dos poderes para controlar produção e apropriação, ou a alocação de trabalho e recursos sociais, foram excluídas da arena política e deslocadas para uma 'esfera' separada.
Karl Marx apresentou o mundo nos aspectos políticos do mundo, não só nos trabalhos explicitamente políticos, mas até nos textos econômicos mais técnicos. Sua crítica da economia política foi, dentre outras coisas, orientada para revelar a face política da economia que economistas burgueses da economia política haviam obscurecido.
O segredo fundamental da produção capitalista revelado por Marx – o segredo que a economia política tratou sistematicamente de ocultar, até que finalmente se tornou impotente para dar conta da acumulação capitalista – tem a ver com a relação social e o modo como o poder é distribuído entre o trabalhador e o capitalista para quem o trabalhador vende sua força de trabalho. Esse segredo tem um corolário: a distribuição do poder entre o capitalista individual e o trabalhador tem, como condição, a configuração política da sociedade como um todo – um determinado ponto de equilíbrio das forças de classe e dos poderes do estado, que permite que o produtor direto seja expropriado, que o capitalista mantenha para ele a propriedade privada absoluta e o controle sobre a produção e a apropriação.
No volume 1 de O Capital Marx percorre o caminho desde a forma mercadoria, pela mais valia, até o 'segredo da acumulação primitiva', para no final revelar que 'o ponto de partida' da produção capitalista '(...) nada é senão o processo histórico de divorciar o produtor e os meios de produção' [1], processo de luta de classes e sangrenta intervenção pelo estado a serviço da classe que expropria.
A própria estrutura do argumento sugere que, para Marx, o segredo último da produção capitalista é segredo político. O que distingue tão radicalmente a análise feita por Marx e a economia política clássica é que Marx não cria descontinuidades agudas entre as esferas econômica e política. E que ele consegue traçar as continuidades, porque trata a própria economia como um conjunto de relações sociais, não como rede de forças desencarnadas como faz a 'esfera' política'.
Mas não tem sido sempre assim e não se pode dizer o mesmo de todo o marxismo depois de Marx. Numa forma ou noutra e em graus variados, os marxistas em geral adotaram modos de análise que, explicitamente ou implicitamente, tratam a 'base' econômica e as 'superestruturas' legal, política e ideológica que 'refletem' ou 'correspondem' àquela 'base como se fossem qualitativamente diferentes, mais ou menos como esferas fechadas e 'regionalmente' separadas. É ainda mais obviamente verdade nas teorias ortodoxas de base/superestrutura. E também é verdade nas variantes delas que falam de 'fatores' econômicos, políticos e ideológicos, de 'níveis' ou 'instâncias', por mais que insistam na interação dos tais 'fatores' ou 'instâncias' ou em o quanto é sempre remota a "última instância" na qual a esfera econômica finalmente determina o resto. Na verdades, são formulações que, todas elas, apenas enfatizam a separação espacial das 'esferas'.
Outras escolas de marxismo mantiveram por outras vias a abstração e o fechamento das esferas. Por exemplo, ao abstrair a economia ou o circuito do capital, para construir alguma alternativa tecnicamente sofisticada à economia burguesa, enfrentada no território dela (e avançando até significativamente mais longe que o próprio Marx nesse aspecto, mas sem ancorar as abstrações econômicas em análises históricas e sociológicas como Marx fez). As relações sociais nas quais está incorporado esse mecanismo econômico – que de fato o constituem – são tratadas como coisa externa. No melhor dos casos, uma esfera política espacialmente separada pode intervir na economia, mas a própria economia já foi esvaziada de conteúdo social e é, como efetivamente foi, despolitizada.
Em todos esses aspectos, há teorias marxistas que perpetuaram as próprias práticas ideológicas que Marx estava combatendo –, práticas que confirmaram para a burguesia que as relações de produção capitalistas seriam naturais e eternas.
A economia política burguesa, segundo Marx, universaliza as relações capitalistas de produção precisamente ao analisar a produção depois de ter já abstraído dela as específicas determinações sociais. A abordagem de Marx é diferente daquela abordagem burguesa precisamente ao insistir que um sistema de produção é formado de suas específicas determinações sociais – relações sociais específicas, modos específicos de propriedade e dominação e formas legais e políticas. Isso não significa meramente que a 'base' econômica é refletida e preservada por dadas instituições 'superestruturais', mas, isso sim, que a base produtiva existe, ela própria, no modelo de formas sociais, jurídicas e políticas – particularmente nas formas da propriedade e da dominação. Economistas burgueses da economia política conseguem demonstrar 'a eternidade e a harmonia das relações sociais existentes', porque divorciam, de seus específicos atributos sociais, o sistema de produção.
Para Marx, produção é '(...) não só uma produção particular (...) mas sempre é um certo corpo social, um sujeito social, que é ativo numa totalidade maior ou mais esparsa de ramos de produção'. [2] A economia política burguesa, ao contrário, alcança seu objetivo ideológico ao lidar com a sociedade sempre em abstrato, tratando a produção como '(...) encaixada em leis naturais eternas independentes da história, para dentro das quais relações burguesas oportunistas são contrabandeadas silenciosamente, como se aquelas fossem leis naturais sobre as quais a sociedade em abstrato estaria erigida. Esse é o objetivo mais ou menos consciente de todo o procedimento.' [3]
Embora economistas burguesas possam até reconhecer que algumas formas legais e políticas facilitam a produção, não as tratam como constituintes orgânicos de um sistema produtivo. Assim eles, põem '(...) numa relação acidental, em relação meramente de reflexão' [4], coisas que são organicamente relacionadas.
A distinção entre conexões 'orgânicas' e conexões 'meramente reflexivas' é especialmente significativa. Ela sugere que qualquer aplicação da metáfora base/superestrutura que destaque a separação e o fechamento estanque das esferas – por mais que alguém insista na conexão de uma à outra, e até a 'reflexão' de uma na outra – reproduz as mistificações da ideologia burguesa, dado que não trata a própria esfera da produção como definida por suas determinações sociais e, com efeito, lida com a sociedade 'no abstrato'. O princípio básico no que tenha a ver com o primado da produção, a pedra basilar do materialismo histórico, perde assim todo o gume crítico e acaba assimilado como ideologia burguesa.
Isso, claro, não significa dizer que Marx não viu valor algum na abordagem da economia política burguesa. Bem ao contrário, ele adotou as categorias dela como seu ponto de partida, precisamente porque expressam, não alguma verdade universal, mas uma realidade histórica na sociedade capitalista, pelo menos uma 'aparência real'. O ponto foi decifrar o real significado da 'aparência', para o que se requeria não alguma reprodução, mas a elaboração crítica das categorias burguesas.
Aquelas críticas precisamente foram usadas recentemente num livro importante de G. A. Cohen para apoiar um argumento contra uma interpretação social do materialismo; e dado que o argumento de Cohen é, em muitos pontos, a perfeita antítese do argumento que aqui desenvolvo, alguns comentários podem ser úteis. [5] Será impossível, é claro, considerar cada passo da argumentação densa e impressionante de Cohen, mas há um passo-pivô indispensável naquele argumento pelo qual se pode resumir o principal ponto em discussão entre nossas interpretações opostas do materialismo.
É o ponto em que Cohen formula a distinção entre o 'material' e o 'social'. Há dois grandes aspectos a discutir aí: a própria distinção analítica feita por Cohen; e o deslizamento graças ao qual se torna possível que uma distinção analítica seja imperceptivelmente convertida não só num dualismo, mas numa separação historicamente real e numa relação causal.
Dado que o objeto de Cohen é estabelecer que o materialismo histórico seria um determinismo tecnológico, ele é obrigado não só a definir de modo estreito o 'substrato material' determinante, para só incluir forças técnicas de produção, mas, além disso, tem de identificar a esfera material com o 'natural', como algo separado por princípio e qualitativamente diferente do 'social' e do 'histórico'. Mesmo que, como ele concede, o 'material' nunca exista na história, exceto se 'envelopado' na forma social, esse argumento causal obriga Cohen, na verdade, a tratar o 'material' como se só se relacionasse externamente ao 'social' e como se tivesse vida própria, submetido a leis de movimento diferentes de princípios 'históricos'.
O determinismo tecnológico de Cohen reduzido aos termos mais simples significa que os impulsos 'naturais' que propelem a esfera material – o desenvolvimento de forças técnicas – prevalece e, de um modo ou de outro, determina causalmente o desenvolvimento histórico das formas sociais. A premissa é que haveria um impulso natural e perene, independente de condições sociais e históricas, plantado na natureza humana e na racionalidade, rumo ao aprimoramento de forças tecnológicas. [6] Em qualquer dado estágio de desenvolvimento, então, aquelas relações sociais têm de emergir, o que facilitará o tal aprimoramento. E, por sua vez, virão a existir as formas legal e política que aquelas relações sociais exigem. Em resumo, Cohen nos oferece uma análise de tipo 'base/superestrutura (qualificada pela proposição de que 'bases carecem de superestruturas', que absolutamente não pode ser excluída de nenhuma das aplicações dessa metáfora mecânica), na qual as próprias relações de produção tornam-se 'superestruturais' na relação delas com a 'base' real, as forças técnicas de produção.
Para estabelecer as fundações conceituais para suas proposições causais sobre forças e relações de produção, Cohen cita a autoridade de Marx: 'Dizemos aqui que a distinção familiar entre forças e relações de produção é, em Marx, um contraste, dentre um conjunto de contrastes entre natureza e sociedade. Comentaristas passaram sem ver a frequência com que Marx usa "material" como antônimo de "social" e de "formal", como "natural" acompanha "material" contra "social" e como o que é descrito como material também contra como o "conteúdo" de alguma forma. (Outros termos do vocabulário material são "humano", "simples" e "real"; e "histórico" e "econômico" combinam com "social".) Fruto dessas oposições e identificações é que a matéria ou conteúdo da sociedade é a natureza, cuja forma é a forma social.' [7]
O argumento gira em torno da identificação de 'material' com 'natureza' e de desenvolvimento 'natural' em oposição a 'social' e 'histórico'; e para essa definição de 'material' Cohen depende de leituras de Marx tão dúbias, que toda sua interpretação de materialismo histórica passa a ter de ser questionada. O mais impressionante é que as passagens de Marx que Cohen cita em apoio da "abstração iluminadora" que separa o 'material', do 'social'; ou a 'produção material', de seus 'traços sociais' – ou, por exemplo, a 'matéria subjacente' da produção capitalista, da 'forma econômica capitalista' – são precisamente as passagens na qual Marx argumentava contra, não em defesa, desse tipo de abstração.
Cohen cita várias passagens de O Capital e dos Grundrisse as quais, de uma forma ou outra, fazem referência à 'atividade produtiva de seres humanos em geral' ou ao 'processo de produção em geral' ou produção material 'no abstrato' [8].
A distinção de que Marx se ocupa aqui não é entre 'material' e 'social' ou entre um 'processo material de produção' e um 'processo social de produção', mas entre produção 'como tal' ou 'em geral' e produção como realmente existe, como um processo social em formas socialmente e historicamente determinadas. (Na verdade, o mesmo contraste pode ser formulado em o 'processo social de produção em geral' e o processo social de produção em formas historicamente determinadas. [9]) Não se trata, por exemplo de distinguir a 'forma capitalista', de alguma sua 'matéria subjacente', mas de distinguir 'matéria' em forma capitalista, de 'matéria' em abstrato.
O objetivo de Marx é criticar as mistificações da economia política às quais se chega precisamente se se começa com 'produção material em geral' e daí se passa a tratar do processo de produzir capital abstratamente, como se existisse algum processo de produção desse tipo. [10]
Está na natureza do capitalismo tornar tais mistificações particularmente plausíveis, porque a produção das condições da vida material no capitalismo é inseparável da produção de capital. Por exemplo, desde que a produção da mercadoria generalizou-se, toda produção de valores de uso é, ao mesmo tempo e indistinguivelmente, produção de valores de troca.
Nos Grundrisse e no Capital Marx expõe as falsas aparências da produção capitalista, traçando os estágios da mistificação na produção do capital. Nos Grundrisse, ele sugere rapidamente que se deve começar por identificar os elementos "comuns" ou "gerais" de toda a produção; mas essa sugestão pouco ajuda a apoiar o argumento de Cohen, uma vez que, primeiro, não há razão para fazer equivalentes "comum" ou "geral", com o "material" em oposição ao "social"; e, sobretudo, porque Marx rejeita esse procedimento sob o argumento de que todas as proposições sobre "produção em geral" serão sempre vazias e formais, mesmo "banais" ou tautológicas, porque o real conteúdo desses "elementos comuns" eles mesmos depende precisamente das suas determinações sociais. [11]
O processo-trabalho pode, é verdade, ser reduzido a fatores "simples" ou "elementares" ou "comuns": a atividade pessoal do homem, o produtor; um objeto de trabalho ou material trabalhado; instrumentos. Visto desse modo, porém, como 'unicamente um processo entre homem e natureza', o processo-trabalho é tratado como se fosse feito por ser humano 'anormalmente isolado' (o infame Robinson Crusoe o qual, segundo Marx, tão frequentemente espreita por trás de mistificações da economia política), em vez de ser tratado como o que realmente é: processo social, no qual o relacionamento com a natureza é ao mesmo tempo e inseparavelmente uma relação social. [12]
Os elementos 'simples' são comuns a toda produção – ao mesmo tempo 'anormalmente isolada' (ou imaginária) e social – e só são 'elementares' no sentido abstrato de que todos os tipos de produção terão de ter tais elementos, numa ou noutra forma. O conteúdo desses fatores 'elementares' como o dos fatores 'sociais' é socialmente e historicamente determinado.
Além do mais, Marx não sugere que em formas normais de produção, que implicam 'assistência social', esse elemento social seria de algum modo menos fundamental ou até menos 'material' que os elementos 'simples' ou 'comuns'. Tampouco implica que os elementos simples nesses casos tenham prioridade alguma causal sobre o social.
Assim, quando o próprio Marx isola o processo-trabalho 'simples' no 1º volume de O Capital (e só depois de analisar a forma mercadoria), seu objetivo não é separar os elementos 'simples' do processo-trabalho extraindo-o de suas determinações sociais, ou estabelecer a 'primazia' desses elementos. O que Marx quer é, isso sim, explicar o modo como a natureza particular do processo-trabalho capitalista, a particular natureza dos seus próprios elementos 'simples', está tão inextrincavelmente ligada com o fato 'social' e 'histórico' que o processo de produção no capitalismo é ao mesmo tempo (i) um processo de produzir mais-valia e (ii) a própria relação capitalista.
O objetivo de Marx então é destacar não o dualismo do 'material' e do 'social', mas definir o material pelo social; definir o processo material de produção não em oposição ao processo social de produção, mas como um processo social; focar a atenção não em 'matéria abstrata', mas na forma social que lhe dá realidade; indicar não a serventia, mas a vacuidade dessa abstração; e, dado que atrai nossa atenção para a abstração da produção material extraída de sua forma social particular, ele o faz para destacar não o que a abstração revela, mas o que ela esconde. A 'abstração iluminadora' de Cohen é, pois, a própria mistificação que Marx está atacando.
O objetivo do quadro conceitual de Cohen é servir de apoio ao seu argumento a favor do determinismo tecnológico. A força da fundação conceitual, então, pode ser julgada pelo peso do argumento que ela consegue suportar. Na análise final, as proposições de Cohen sobre as conexões causais entre forças e relações de produção provam-se sem substância. Aquelas proposições não implicam, como Cohen apressa-se a destacar, qualquer sequência temporal particular. Forças dinâmicas de produção podem irromper pelo integumento de relações sociais e compeli-las a mudar conformemente; ou forças estéreis podem, precisamente porque não se desenvolvem, compelir relações sociais a mudar para encorajar e acelerar o progresso tecnológico. Na verdade, a fórmula de Cohen pode acomodar os dois casos nos quais, nas palavras de Mar, as forças de produção estão 'petrificadas' [13] (o que pode ser a regra, não a exceção) e o caso radicalmente único do capitalismo, que se distingue precisamente por seu impulso para revolucionar constantemente as forças de produção.
Essa flexibilidade torna desnecessário explicar evidência histórica e antropológica discrepante; mas deixa bastante vazia a proposição histórica básica de Cohen e a torna de pouca utilidade como ferramenta explicativa. A proposição é, com efeito, não falseável. Se for verdadeira, é trivial ou tautológica – como talvez qualquer 'lei' histórica de tal generalidade sempre será.
Num dado sentido, o que o determinismo tecnológico de Cohen faz é repetir o erro dos economistas da economia política: ele generaliza a experiência histórica particular do capitalismo, extraindo de suas específicas determinações sociais as leis da produção capitalista. O impulso para revolucionar as forças de produção, que, no capitalismo é gerado por um modo particular de extração de mais-valia – o mecanismo do valor excedente –, e pela relação social entre capital e trabalho que isso implica, torna-se assim uma lei natural plantada na natureza humana e reforçada pelas leis da razão. [14]
A particular definição de Cohen do 'material' e de sua relação com o social, assim, torna difícil dar conta da evolução do capitalismo e do efeito distintivo que suas relações sociais de produção tiveram no desenvolvimento tecnológico. De fato – e ainda mais fundamentalmente – a separação radical que ele faz do 'material' e do 'social' não dá conta, precisamente, dessas leis materialistas da contradição e da transição histórica que o próprio Cohen invoca para apoiar seu argumento. Se há algum significado em propor que contradições entre forças e relações de produção dão ímpeto ao movimento histórico, aquele significado só se salva se as 'forças' são consideradas em seu aspecto social.
É precisamente porque o 'material' e o 'social' não estão mais em dois planos diferentes do ser, que faz sentido falar de 'contradições' entre eles. Por exemplo, a contradição crítica no capitalismo não é entre forças técnicas e relações sociais definidas estreitamente, mas entre dois princípios sociais potencialmente antagônicos: (i) a forma individualista, até antissocial, da propriedade capitalista e (ii) as formas altamente socializadas da produção capitalista.
A 'força material' mais antagonista das relações sociais do capital e um proletariado unido e com consciência de classe. Nem Cohen diria que a geração dessa força seria mero reflexo de desenvolvimento tecnológico.
Vale também observar que Marx e Engels vão a ponto de sugerir que a própria possibilidade de separação e contradição entre forças e relações de produção depende de específicas condições sociais. Tal separação só se torna possível quando produção e consumo, trabalho e lazer, 'são atribuídos a diferentes indivíduos' na divisão social do trabalho. [15] Princípio similar aplica-se à separação de 'fatores' – econômico, político, etc. – e à 'relativa autonomia' deles. O alicerce último dessas separações é a divisão do trabalho que cria 'esferas novas e independentes', ao designar pessoas para desempenharem funções sociais novas e independentes. [16]
Em resumo, o 'material' sobre o qual repousa a estrutura do materialismo histórico é, desde o início, fenômeno 'social' e histórico. Pode-se até dizer que a essência desse materialismo – em contraste, digamos, com o materialismo de economistas da economia política – é precisamente que ele socializa e historiciza a base material. Não há, pois, disjunção radical entre 'material' e 'social', 'base' e 'superestrutura', 'estruturas objetivas' e especificidades históricas, que tornam difícil movimentar-se de uma à outra em teoria e movimentar-se entre teoria e prática. *****
NOTAS[1] Karl Marx, Capital, Moscou vol. I, p. 668.
[2] Marx, Grundrisse, Harmondsworth 1973, p. 86.
[3] Ibid., p. 87.
[4] Ibid., p. 88.
[5] G. A. Cohen, Karl Marx's Theory of History: A Defense, Oxford 1978.
[6] Cohen, pp. 152–3.
[7] Cohen, p. 98.
[8] Por exemplo, na p. 99 ele cita Grundrisse, p. 304 e Capital III, p. 795 (Moscou, 1962. Na ed. Moscou, 1971, p. 815).
[9] Ver, por exemplo, Capital III, Moscou 1971, p. 818.
[10] e.g., Grundrisse, pp. 85–88.
[11] loc. cit.
[12] Capital III, pp. 883–4.
[13] Capital I, p. 456–7.
[14] Ver Robert Brenner, "The Origins of Capitalism", NLR, 304, para uma discussão de como as relações capitalistas de produção só exigem a transformação revolucionária das forças produtivas.
[15] Marx and Engels, German Ideology in Collected Works, New York 1976, vol. 5, p. 45.
[16] Engels, "Letter to Conrad Schmidt", 27/10/1890, in Marx and Engels, Selected Correspondence, Moscou 1965, p. 422.
* Ellen Meiksins Wood (12/4/1942 – 14/1/2016) é destacada especialista em teoria política e das mais influentes historiadoras marxistas em todo o mundo.
** Publicado em português (outra tradução) em WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra o Capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2010 [NTs].
*** [Autora agradece] às várias pessoas que leram e criticaram – às vezes veementemente esse ensaio, em vários estágios: Perry Anderson, Robin Blackburn, Robert Brenner, Ralph Miliband, Neal Wood, Gregory Meiksins, Peter Meiksins e meus alunos na York University, Toronto, especialmente Frances Abele e George Comninel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário