19/2/2016, Michael Hudson ("Guns + Butter Interview") Counterpunch
"A estratégia da Nova Guerra Fria é, basicamente, nunca parar de forçar outros países a privatizar as respectivas economias para abrir-se às políticas neoliberais. O objetivo é conseguir que os países abram as respectivas economias às empresas e aos bancos norte-americanos."
(...) "De repente, ficou bem claro que o FMI não é instituição internacional para promover o crescimento econômico global: é uma arma da diplomacia dos EUA para a Guerra Fria, e diplomacia que, no governo Obama, caminhou muito rapidamente rumo à direita.*
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Suponha que um país deva dinheiro a governo ou a agência oficial estrangeira. Como os credores podem receber, a menos que haja uma corte internacional e sistema para aplicar a lei? O FMI e o Banco Mundial foram parte desse sistema para aplicar as leis, mas agora já andam dizendo "Não vamos mais participar de sistema algum. Só trabalhamos para o Departamento de Estado dos EUA e para o Pentágono. Se o Pentágono diz ao FMI que tudo-bem se um país não for obrigado a pagar o que deve à Rússia ou à China, o país deixa de ter de pagar, no que tenha a ver com o FMI. Esse novo trato rompe a ordem global criada depois da 2ª Guerra Mundial. O mundo está sendo dividido em duas metades: a órbita do dólar norte-americano e os países que os EUA não podem controlar e cujos governos e altos funcionários não estão, digamos assim, na folha de pagamento dos EUA.
Dr. Michael Hudson é economista especializado em finanças e historiador. É presidente do Instituto para o Estudo de Tendências Econômicas de Longo Prazo, é analista financeiro de Wall Street e professor e pesquisador emérito da University of Missouri, Kansas City. Seu livro de 1972 Super Imperialism é uma crítica de como os EUA exploraram economicamente outros países servindo-se do FMI e do Banco Mundial. Seu livro mais recente é Killing the Host: How Financial Parasites and Debt Destroy the Global Economy. Hoje discutimos seu artigo "FMI muda as regras para isolar China e Rússia" [The FMI Changes Its Rules to Isolate China and Rússia]."
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Bonnie Faulkner: Michael, produzi sete programas a partir das apresentações em Rimini, sobre Moderna Teoria Monetária [orig. Modern Money Theory], dos quais participaram Marshall Auerback, William K. Black, Stephanie Kelton, e todos foram enormes sucessos.
Michael Hudson: Muito bom. Aquele evento foi sensacional. Quando entramos, naquele enorme estádio de futebol, nos sentimos como se fôssemos os Beatles entrando pela passarela central. As pessoas nos saudavam, gritavam nossos nomes, como se fôssemos celebridades pop.
Bonnie Faulkner: Os italianos mostraram-se tão calorosos, tão entusiasmados com uma teoria econômica alternativa. Também achei sensacional.
Michael Hudson: Yep. E as pessoas viajaram da Espanha e de toda parte. Foi dos melhores eventos de que qualquer um de nós jamais participou.
Bonnie Faulkner: Fico feliz de ter podido participar. Um encontro, sem dúvida, inesquecível.
Mas, voltando ao presente, li seu artigo "FMI muda as regras para isolar China e Rússia". Fez soar um sinal de alarme sobre as implicações das mudanças das regras do FMI, que faz empréstimos a governos. Antes de discutirmos essas mudanças de regras no FMI: o que precipitou mudanças tão drásticas no FMI?
Michael Hudson: Há várias mudanças políticas. A primeira foi que – no passado, o FMI jamais fez empréstimos a países que estivessem em situação de 'calote' em dívidas com outros países. Isso porque, no passado, o governo em questão era o governo dos EUA. Desde a 2ª Guerra Mundial todos os empréstimos para resgate ou estabilização feitos pelo FMI e Banco Mundial sempre envolveram o governo dos EUA, em conjunção com consórcios de bancos norte-americanos.
Pela primeira vez, agora que China e os BRICs estão crescendo, os países tomam empréstimos não exclusivamente dos EUA submetidos às forças dos lobbies norte-americanos, mas também tomam empréstimos de China e outros países.
A reação dos EUA foi mudar as regras do FMI. Disseram "Calma lá. Tudo bem que o FMI empreste dinheiro a países que não pagam o que devem à China e Rússia ou a outros BRICs, porque estamos numa nova Guerra Fria. O FMI realmente trabalha a nosso favor". Enquanto os EUA tiverem poder de veto no FMI, o delegado deles pode vetar empréstimo a qualquer país que deva dinheiro aos EUA, e que os EUA não queiram apoiar. Mas não fará objeções a que o FMI empreste dinheiro a satélites dos EUA, como a Ucrânia, que tem grandes dívidas não saldadas com a Rússia.
Em dezembro passado, a Ucrânia devia $3 bilhões à Rússia, de empréstimo feito pelo fundo soberano russo de investimentos. Os EUA estão fazendo de tudo para ferir economicamente a Rússia, supondo que, se for suficientemente ferida, a Rússia se renderá à estratégia de Washington. Os EUA estão fazendo de tudo para ferir economicamente a Rússia, supondo que, se for suficientemente ferida, a Rússia se renderá à estratégia de Washington.
A estratégia da Nova Guerra Fria é, basicamente, tentativa de forçar outros países a privatizar as respectivas economias para abrir-se às políticas neoliberais. O objetivo é conseguir que os países abram as respectivas economias às empresas e aos bancos norte-americanos.
As mudanças nas regras do FMI aconteceram para mobilizar o FMI como, basicamente, um agente do Departamento de Defesa dos EUA, com escritório também em Wall Street. De repente, ficou bem claro que o FMI não é instituição internacional para promover o crescimento econômico global: é uma arma da diplomacia dos EUA para a Guerra Fria, e diplomacia que, no governo Obama, caminhou muito rapidamente rumo à direita.
Bonnie Faulkner: Agora temos a Organização de Cooperação de Xangai, OCX [orig. Shanghai Cooperation Organization, SCO] como uma aliança militar alternativa à OTAN, e o Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura, BAII, que ameaçam substituir o FMI e o Banco Mundial. Você acha que essas novas alternativas ao banking ocidental podem ser bem-sucedidas? O quanto bem-sucedidas?
Michael Hudson: O grande ponto é que o sistema ocidental de banking, o Banco Mundial e o FMI, não é sistema bem-sucedido. O FMI segue uma economia sórdida que diz que, se você deve dinheiro a acionistas ou banqueiros de outros países, você tem de impor arrocho (não é 'austeridade': é ARROCHO) máximo ao país, para que pague o que deve, custe o que custar. Essa economia da sordidez que opera atualmente diz que o arrocho capacitará os devedores a arrancar para fora do país o máximo de dinheiro de impostos, para pagar banqueiros e acionistas estrangeiros.
É a mesma desastrosa teoria que britânicos e norte-americanos e franceses usaram nos anos 1920s, para insistir que o povo alemão conseguiria pagar qualquer valor de reparação, desde que se criassem impostos suficientes sobre a economia alemã.
Que essa teoria é falsa e viciosa já está demonstrado por John Maynard Keynes e também pelo norte-americano Harold Moulton, da Brookings Institution. Mas as lições dos anos 1920s foram rejeitadas pelo FMI, porque o pessoal lá sabe muito bem – e a equipe já disse bem claramente – que nenhum arrocho jamais capacitará país algum a pagar dívida externa alguma. Quanto mais arrocho – quanto mais 'austeridade', no jargão oficial e 'jornalístico' de mascaramento da realidade –, menor a capacidade do país para pagar suas dívidas, e quanto mais arrocho, mais o país terá de tomar emprestado.
É quando o FMI entra em cena, com o segundo golpe: o golpe número um é a 'austeridade' (arrocho). O golpe número dois é dizer: 'Ok, acho que nosso programa não funcionou. Que lástima. [Na verdade, não é surpresa para ninguém, e já aconteceu incontáveis vezes.] Então, agora, vocês têm de privatizar, privatizar, privatizar, a indústria e os recursos naturais, tudo. E vendam as terras.'
Isso, precisamente, é o que o FMI diz aos países devedores e é o que disseram à Grécia, ano passado.
Quando o plano de austeridade arrocho que o FMI exigia desde 2010 não funcionou, o FMI uniu-se ao resto da Troika (Banco Central Europeu e União Europeia), em 2015, para exigir que a Grécia concordasse com vender suas ilhas, seus portos, seus sistemas de abastecimento de água, tudo que ainda fosse propriedade pública. Depois de terem destruído a Grécia, no verão de 2015, começaram as 'negociações' com a Ucrânia.
O golpe número 1 do FMI contra a Ucrânia foi impor 'austeridade' arrocho, sob o falso pretexto (é a economia de sarjeta do FMI) de que a Ucrânia conseguiria pagar os acionistas estrangeiros com impostos sobre a renda que seriam extraídos da economia doméstica. Quando o 'remédio' agravou ainda mais a 'doença', o Banco Mundial e a [agência] USAID entraram em cena. O ministro das finanças da Ucrânia nomeado pelos EUA pôs as garras na terra agricultável, nos direitos de venda e distribuição de gás e em outros recursos naturais que a Ucrânia poderia vender para quitar as dívidas com credores norte-americanos e europeus – mas não o que a Ucrânia devia à Rússia.
A ideia geral é que, se investidores norte-americanos conseguirem comprar a infraestrutura chave e comandar os pontos chaves da economia ucraniana, conseguirão separa a Ucrânia, da Rússia. A Ucrânia teve papel chave na economia russa. Muito da indústria militar e espacial russa é produzida na região do Donbass, no leste da Ucrânia.
A ideia portanto era separar Ucrânia e Rússia, no primeiro passo, para dividir a Rússia; depois, se tratará de dividir a China em pequenos 'pedaços'. A meta é tratar China e Rússia como os EUA trataram o Oriente Médio, a Líbia, o Iraque, o Afeganistão e a Síria – fazendo o que for preciso, até arrancar deles as empresas e os recursos naturais.
Bonnie Faulkner: E qual é o objetivo do Tratado da Parceria Trans-Pacífico, TPT, e como se opõe a projetos como o Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura?
Michael Hudson: Poderia dar-lhe resposta rápida e dizer que o objetivo é matar de fome 50% da população global, abolir aposentadorias e pensões e disseminar o mais amplamente possível a máxima miséria. Aí está realmente o efeito desse Acordo.
A história da capa finge que tem a ver com comércio, mas a agenda real é forçar privatizações e neutralizar qualquer regulação que os governos proponham. É o exato contrário de toda a Era do Progresso. Nos últimos 300 anos, Europa e EUA pressupunham que você teria uma economia mista, com governos investindo na infraestrutura, estradas e outras vias e meios de transporte, comunicações, sistemas de água e esgotos, gás e eletricidade. O papel de infraestrutura do governo era atender a essas necessidades básicas a custo mínimo, para promover uma economia competitiva, de baixos custos. Foi assim que os EUA enriqueceram. Foi assim que a Alemanha industrializou-se e, também, foi assim que o resto da Europa industrializou-se.
Mas o objetivo da Parceria Trans-Pacífico é reverter e privatizar todo e qualquer investimento público. A ideologia da tal 'parceria' é que a economia deve ser propriedade de, e operada por, agentes privados; proprietários privados, empresas privadas, cujo objetivo é lucro de curto prazo.
Há vários outros objetivos relacionados: acabar com qualquer regulação que vise a proteger o meio ambiente (porque aumentam os custos); acabar com qualquer proteção ao trabalho; e acabar com qualquer projeto para criar impostos sobre exploração de recursos naturais ou sobre as atividades do rentismo.
A ideia é converter estradas e sistemas de transporte em estradas apedagiadas, que serão compradas por empresas estrangeiras, que imporão os preços de pedágio que bem entenderem. A Internet e o sistema de distribuição de água serão privatizados e convertidos em sistemas q também funcionarão por 'pedágios', todos os serviços serão comprados, todos.
Assim se imporá uma economia de rentismo neofeudal em todo o mundo, com o estado expulso dos setores de Finanças, Indústrias e Imobiliário.
Acho que se pode dizer que, num nível mais amplo, a ideia é apagar o Iluminismo e restaurar o feudalismo. Pode parecer exagero, mas as pessoas ainda não se deram conta de o quanto são radicais os acordos de investimento doTratado da Parceria Trans-Pacífico, TPT.
Por exemplo, quando a Austrália aumentou os impostos sobre cigarros e incluiu nos maços avisos de que cigarros são nocivos à saúde, a Philip Morris processou o país, exigindo receber da Austrália o que a empresa lucraria, se as pessoas continuassem a fumar e só parassem ao morrer de câncer nas porcentagens hoje calculadas.
Quando o Equador tentou processar empresas de petróleo por crime ambiental, as empresas responderam, processaram o país e, hoje, o Equador tem de pagar às petroleiras valor correspondente ao lucro que teriam se continuassem a poluir o solo para extrair petróleo – em grau infinito. Nenhum governo em lugar algum do mundo que assine essa 'Parceria' será jamais livre para criar leis de proteção ao meio ambiente nem, sequer, para criar novos impostos que atinjam as empresas financeiras ou qualquer outra empresa privada.
Essencialmente, os novos compradores das estradas que os sistemas de água e esgoto poderiam usar passam a ser autorizados a fazer das estradas um meio de extração de lucros, sem nenhuma lei antimonopólios que os perturbem. Implica dizer que poder cobrar o que bem entendam, e tratar os países onde operam exatamente como são tratados os usuários de TV por cabo em New York City. Eu moro em Forest Hills, no Queens. Ali só há um provedor de sinal, a Time Warner. Se eu quiser instalar um cabo para receber outros canais, sou condenado a pagar o que quer que as empresas cobrem, e esse custo nada tem a ver com o custo de produção dos programas. Tenho de alugar o cabodeles. Não posso comprar o cabo para usá-lo como quiser.
Assim opera a economia rentista. Há nela ganhos que nada têm a ver com custos de produção. Ao longo de séculos, economistas como Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill e Thorstein Veblen escreveram sobre como criar uma economia que produziria tudo ao custo real, tecnológica e socialmente necessário, sem almoço grátis, quer dizer, sem nenhum tipo de renda não justificável ("renda econômica", orig. "economic rent").
O objetivo da Parceria Trans-Pacífico e sua versão 'transatlântica', para a Europa, é promover extração de renda econômica. Esses interesses rentistas oferecem um tipo de economia-lixo, para substituir a economia clássica, contra a Era do Progresso e a democracia social, para criar uma ideologia de direita que eles chamam de 'livre comércio'. Essa expressão é puro duplipensar orwelliano.
Bonnie Faulkner: As regras da Organização Mundial do Comércio foram aplicadas contra aqueles países, que você citou antes, como a Austrália?
Michael Hudson: Acho que a Philip Morris perdeu a ação, mas mesmo assim o estado australiano foi obrigado a gastar milhões de dólares em custas e despesas do processo. É quase impossível para país pobre, como o Equador, e mesmo para a Austrália, gastar esse dinheiro todo para conseguir defender-se contra aqueles exércitos de advogados empresariais. Nos termos da Parceria TTP, os árbitros seriam escolhidos pelo setor empresarial e seus advogados contratados.
Os julgamentos [no acordo, fala-se de "arbitragem"; o mecanismo é chamado "mecanismo para a resolução de conflitos Investidor x Estado (MRCIE)"] são feitos à margem do Estado e não são regidos pelas leis aprovadas por Parlamentos eleitos: a oligarquia empresarial substitui o que hoje conhecemos como "democracia". Decisões sobre quanto os governos terão de pagar às empresas como reparações são tomadas por um pequeno grupo de 'árbitros' que trabalham em regime de 'porta giratória' que conecta o Estado e as empresas. Os chamados 'árbitros' não passam de lobbyistas a serviço das empresas.
Bonnie Faulkner: A China acelerou a criação de seu sistema alternativo de compensações internacionais [orig. China International Payments System, CIPS] e de sistema próprio de cartões de crédito. O que é o atual Sistema Internacional de Compensações Interbancárias [ing. SWIFT Interbank Clearing System], e o novo sistema chinês o ameaça em algum sentido?
Michael Hudson: Todos os bancos têm um sistema de compensação dos cheques que preenchemos, para saque em nossas contas bancárias. O sistema SWIFT é um gigantesco programa para computadores, que torna possível mandarmos dinheiro, por cheque de nossa conta bancária, para outros, que usam outros bancos.
Há cerca de um ano, estrategistas norte-americanos conceberam o que viria a ser uma nova Guerra Fria contra a Rússia. Pode rapidamente tornar-se guerra militar. Mas os EUA perceberam que poderiam ferir a economia russa sem ter de mandar soldados. Não é mais preciso que os EUA invadam. Invasões é guerra antiquada. Hoje, é difícil invadir outros países. Mas os EUA podem manter a Rússia como refém – ou qualquer outro país – se, repentinamente, decidirem expulsar, a Rússia ou qualquer país, do sistema de compensações SWIFT. O país expulso do sistema SWIFT não pode compensar cheques. Acaba paralisado. Para excluir um país, os EUA 'embaralham' ou apagam as comunicações e conexões entre bancos.
Tão logo os norte-americanos começaram a falar sobre isso, China e Rússia reagiram. Evidentemente, não podem admitir que um país que pode vir a declarar-lhes guerra, tenha tanto poder. Obama e Hillary Clinton já ameaçaram expulsar Rússia e China do sistema SWIFT. Assim sendo, os russos responderam que muito desejariam ser parte de uma unidade global, mas dado que os EUA comandam o sistema SWIFT exclusivamente para atender aos seus próprios interesses e de modo hostil, Rússia e China são obrigados a proteger os respectivos sistemas de compensações bancárias.
A China imediatamente pôs-se a trabalhar para criar sistema próprio de compensações bancárias.
Pessoas, empresas e organizações governamentais na China e nos demais países BRICS deixarão a posição de reféns dos EUA, sempre a espera de um 'vírus' de computador que os norte-americanos implantem no sistema de computação que faz as compensações bancárias, como fizeram no sistema que controla as centrífugas iranianas. Porque se trata disso: assim como os EUA invadiram os computadores que controlavam as centrífugas iranianas, assim também podem invadir o sistema SWIFT. Agora, a China e os países BRICs já são capazes de defender-se contra esse tipo de ataque.
Bonnie Faulkner: E a China já implementou seu Sistema Chinês Internacional de Compensações, ou são só planos?
Michael Hudson: Acho que o programa ainda está sendo desenvolvido, porque é sistema extremamente complexo. Essas coisas têm uma inércia, é mais fácil desenvolver programas a partir do que existe, do que desenvolver sistema substituto. É como o programa Office, da Microsoft. Por isso os computadores Mac usam Word e Excel. Custa bilhões de dólares escrever programa novo, sem nenhum conflito com os existentes. Acho que os chineses ainda estão trabalhando nos conflitos, porque, afinal, não precisam temer guerra eletrônica imediata declarada nesse campo.
Bonnie Faulkner: O primeiro-ministro russo Vladimir Putin propôs uma parceria ou, no mínimo, uma cooperação entre o ocidente e parceiros militares e econômicos emergentes no outro lado do mundo. A abertura de Putin para o ocidente parece ter caído em ouvidos surdos. O que você pensa sobre isso?
Michael Hudson: É a mesma esperança que já havia desde os anos 1990s, mesmo antes de Putin chegar ao poder. A ideia é que a Rússia quer unir-se à OTAN, dado que qualquer guerra atômica entre nações industrializadas está já fora de questão.
Todos enfrentam uma ameaça comum que lhes vem do Islã wahhabista financiado pela Arábia Saudita – o terrorismo da Xaria Wahhabista. A Rússia preocupa-se com terroristas financiados pelos sauditas ali bem próximos de sua fronteira sul, da Geórgia, do Azerbaijão, diretamente até a Ásia Central.
Os chineses também se preocupam com o terrorismo wahhabista, entre os uigures.
O ISIS e a Frente Al-Nusra atuam hoje como a Legião Estrangeira dos EUA.
Quando Hillary Clinton derrubou o governo da Líbia, armas e equipamentos militares de todos os tipos foram entregues ao ISIS. Os recursos do Banco Central da Líbia foram roubados e também foram entregues aos terroristas do ISIS. Quando os EUA invadiram o Iraque, entregaram o exército sunita e bilhões de dólares em notas amassadas de 100 dólares, na prática, aos terroristas do ISIS. Assim, por mais que os EUA falem de combater o ISIS nos casos em que matem norte-americanos, o ISIS é, basicamente, ferramenta que os EUA usam para quebrar países que ameacem não aceitar o padrão do dólar global.
A Rússia tinha esperanças de que os EUA acabariam por entender que esse sistema é loucura total. EUA, Rússia e Europa têm muito a ganhar no comércio multilateral. A Europa, se conseguisse defender efetivamente seus próprios interesses, veria que a Rússia é sua parceira comercial óbvia. Europeus e norte-americanos, é claro, muito teriam a ganhar se investissem e reerguessem a economia russa, porque faltam empresários naquela parte do mundo.
Mas, em vez de buscar uma esfera de prosperidade mútua entre Europa, Rússia e os EUA, os EUA empurraram a Europa para uma zona morta de arrocho neoliberal. Por causa disso, a economia europeia está encolhendo. Sem a Rússia, a prosperidade europeia é praticamente impossível. Mas isso – a ruína da Europa – é o que os EUA desejam, porque Europa próspera beneficiaria também Rússia ou China.
A ideia dos EUA é aplicar à Rússia o mesmo tratamento que aplicaram a Cuba, Irã e Líbia – isolar o país, à espera de que a Rússia caia de joelhos. Mas a Rússia é muito maior que Cuba ou que a Coreia do Norte; a China, é ainda maior. E, em vez de se renderem ao plano econômico norte-americano liberal, decidiram que ambas as nações, Rússia e China, trabalhariam para construir um alinhamento mutuamente defensivo. A patética diplomacia norte-americana conseguiu firmar ainda mais uma unidade eurasiana, exatamente o que os EUA mais queriam impedir que acontecesse.
Bonnie Faulkner: Sim. Creio que no seu artigo, a certa altura, você descreve alguns dos membros do FMI como se vestissem coletes de explosivos, para fazer a instituição voar pelos ares. Achei ótima a descrição.
Michael Hudson: É, mesmo, como se os EUA entrassem na reunião do FMI usando coletes de explosivos e dissessem "Queremos que o FMI só sirva aos interesses dos EUA, não a interesses internacionais". Assim se quebrou a ilusão de que o FMI seria negociador honesto, interessado em ajudar os países a se estabilizar.
A pressão dos EUA mudou radicalmente várias regras. Uma das regras a que já fiz referência é a de não emprestar a país que se recuse a pagar o que deve a outro governo. Nada disse está registrado nos contratos que o FMI assina. Mas o que, sim, está escrito nos estatutos do FMI é que ninguém estaria obrigado a emprestar coisa alguma a país que visivelmente não tem nem terá tão cedo os meios para pagar o empréstimo. É a regra chamada "nenhuma nova Argentina", que ficou estabelecida depois que o FMI emprestou dinheiro à Argentina em 2001 para pagar o que devia. A Argentina não tinha qualquer chance de pagar por esse empréstimo.
O FMI quebrou essa regra depois de 2010, quando emprestou à Grécia. Alguns funcionários deixaram o FMI, ao ver ignoradas as suas análises. A diretoria do FMI perguntou como poderia emprestar aquele dinheiro à Grécia para que a Grécia pagasse o que devia a bancos alemães, franceses e ingleses, e resgatar acionistas, sem definir como a Grécia pagaria o empréstimo.
O então diretor do FMI, Dominique Strauss-Kahn, atropelou a equipe e membros da diretoria e criou uma nova regra, chamada "de risco sistêmico". Por essa regra, o FMI ficava autorizado a violar as regras da própria constituição e emprestar a qualquer país (mesmo que fosse devedor inadimplente), no caso de o risco de o país não pagar o empréstimo gerasse risco a muitos países. Na prática, o FMI definiu que haveria risco sistêmico sempre que houvesse risco de qualquer acionista perder mais de $1. Essa perda derrubaria a "confiança". Então, para salvar bancos e acionistas do fundo, a economia seria detonada pela deflação da dívida. Vale lembrar que há poucos dias, dia 29/1/2016, o FMI cancelou essa 'regra'. Declarou que não voltará a aplicá-la.
Outro elemento presente na lei de constituição do FMI estipulava que o FMI não emprestará a país em guerra. A razão óbvia é que, se um país está em guerra, guerra civil sobretudo, que esteja destruindo o setor de exportação – como a Ucrânia está fazendo –, de onde obterá as dividas necessárias para pagar sua dívida externa? A Ucrânia exportava para a Rússia praticamente tudo q produzia. O ataque contra o Donbass e o leste da Ucrânia destruiu toda a indústria ucraniana de exportação.
Os EUA super turbinaram o FMI para que fizesse o empréstimo à Ucrânia. A diretora do FMI, Christine Lagarde disse que esperava que a Ucrânia não gastasse todo o dinheiro em mais guerra. Na verdade, 1,5 bilhão de dólares foram entregues a banqueiros cleptocratas como Kolomoiski, que imediatamente retirou do país todo o dinheiro, ao mesmo tempo em que usou o dinheiro que tinha na Ucrânia para financiar um exército anti-Donbas. Dia seguinte, o presidente Poroshenko declarou que então, afinal, a Ucrânia podia continuar e ampliar a guerra.
A quarta regra que o FMI quebrou é a de não emprestar a país onde seja baixa a probabilidade de que se implante um programa de arrocho [orig. "austeridade"]. Chamam a isso uma "condicionalidade". Implica calar qualquer oposição democrática. A Ucrânia está reduzindo pensões e impondo regras de arrocho as mais ferozes, o que implica dizer que é mínima a chance de o país sobreviver como democracia.
Os EUA já se manifestaram e já reconheceram que estão desistindo de fingir que seriam país que só apoia democracias. Nos anos 1960s e ‘70s apoiaram incontáveis ditaduras na América Latina, inclusive a derrubada de Allende no Chile.
E agora o FMI emprestará a países em guerra, mesmo quando não haja qualquer possibilidade de o empréstimo ser pago, bastando, para obter dinheiro, que o país que solicite o empréstimo faça o que os estrategistas norte-americanos lhe ordenem. E não emprestará a país que precise do dinheiro para pagar dívidas a bancos russos ou a bancos dos países BRICS.
Bonnie Faulkner: Michael, você até já começou a responder essa pergunta, mas talvez possa acrescentar mais alguma coisa. O Fundo Nacional Soberano Russo emprestou dinheiro à Ucrânia. Você já falou disso. Esse empréstimo foi protegido pelas cláusulas de empréstimo do FMI, e os papéis foram registrados nos termos definidos pelas leis e tribunais comerciais de Londres. Explique, por favor, como as regras do FMI e o Banco Mundial protegiam a estrutura original das práticas de empréstimos soberanos pós-2ª Guerra Mundial.
Michael Hudson: O FMI disse que não emprestaria dinheiro a país que devesse dinheiro, ou estivesse em estado de 'calote' de dívida com qualquer governo, ou que não negociasse de boa fé para pagar governos estrangeiros. Ucrânia devia $3 bilhões ao Fundo Nacional Soberano Russo – obviamente, uma organização governamental. O empréstimo russo foi feito em termos de concessão, mas não sem qualquer proteção. Dado que se tratava do Fundo Nacional Soberano Russo, ele se autoprotegeu, registrando a transação na Inglaterra. Tem havido muita discussão na Rússia sobre se a Ucrânia conseguirá safar-se sem ter de pagar o que deve à Rússia.
Ano passado, o Tesouro dos EUA teve longa discussão com advogados de bancos sobre o que a Ucrânia deveria fazer para continuar em condições de para receber novos empréstimos do FMI. Agora, aí está. Já conhecemos a resposta: mudaram-se as regras do FMI. Não esqueçamos que a União Europeia e os bancos internacionais, como regra geral, não se alistam em consórcios para conceder empréstimos a país que não se qualifique para obter empréstimos do FMI. Para receber empréstimos dessas organizações, o país devedor tem de ter 'ficha limpa' no FMI.
Agora, a diferença é que, em vez de proteger o sistema de empréstimos para todos países e governos, o FMI só protegerá empréstimos a países que gravitem na órbita dos EUA. Governos que não obedeçam aos EUA ficam sem crédito e sem dinheiro. Na prática, esses governos que 'não obedecem' aos EUA são todos que não implantem políticas neoliberais as mais rígidas.
Bem resumidamente, tudo isso foi feito porque os EUA estavam decididos e retirar da Rússia o direito e a capacidade legal para cobrar (e eventualmente receber) os $3 bilhões que a Ucrânia tomou emprestados.
Discutiu-se até se a Ucrânia poderia declarar "odiosa" a dívida que os russos estavam cobrando, porque 'tudo' que pertencesse à Rússia teria passado a poder ser declarado 'odioso', desde que Obama 'declarou' que Putin seria cleptocrata e corrupto.
Ora, durante 50 anos os EUA emprestaram dinheiro a fundo perdido a todos os tipos de ditadores corruptos na América Latina, África e Ásia, todos absolutamente corruptos, de Pinochet, ladeira abaixo, até Tony Blair.
Verdade é que os EUA fizeram voar pelos ares todo o arcabouço legal e legítimo da lei internacional.
A Ucrânia sabe que perderá nos tribunais britânicos, onde a transação está registrada, seja qual for a sua tentativa de escapar de pagar o que deve à Rússia. As cortes inglesas tendem a garantir os direitos do credor. Mas, pelo menos, os EUA conseguiram passar aquele derradeiro empréstimo, diretamente às mãos da cleptocracia ucraniana.
A Ucrânia e seus apoiadores nos EUA talvez suponham que, com o petróleo a menos de $30 o barril, e com a Rússia precisando de dinheiro, conseguirão dobrar a Rússia aos desejos dos EUA. É perfeita insanidade, porque já é perfeitamente visível que a Rússia não se renderá. Há poucos dias, o ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergei Lavrov anunciou que a Rússia está repensando seu relacionamento com o ocidente.
É óbvio que os EUA opõem-se a quaisquer laços econômicos entre Alemanha e outros países europeus, e a Rússia. Assim sendo, a Rússia está repensando o próprio relacionamento com a Europa. Ora! Se a Europa age como se quisesse ser o 51º estado dos EUA, em vez de defender os interesses de seus próprios cidadãos, os russos, claro, se orientarão na direção da China e dos demais BRICs. É péssimo para os EUA e para a Europa. Melhor seria um relacionamento amigável, para maior prosperidade de todos.
Bonnie Faulkner: Você deu ao seu artigo o título de "FMI muda as regras para isolar China e Rússia", porque é o que estavam fazendo. O objetivo por trás da mudança nas regras é isolar China e Rússia. Mas China e Rússia estavam cooperando com o FMI e o Banco Mundial, não estavam?
Michael Hudson: Sim, estavam. O principal objetivo da estratégia dos EUA desde o início sempre foi a China. Os EUA passaram três anos discutindo abertamente o que fazer para isolar a China. Os EUA não querem ver nenhum grande Estado potencialmente independente. Tudo bem que a mão de obra chinesa trabalhe sob salários super arrochados para abastecer as prateleiras de Wal-Mart com itens exportados de baixo preço. Mas os EUA não podem admitir uma China potência independente.
A China deu aos importadores e investidores norte-americanos importantes interesses comuns a favor dos quais fazerem lobby para impedir que o governo dos EUA intensificasse sua Guerra Fria contra a China. Mas a Rússia não tem o mesmo poder de alavancagem, porque não tem tantos meios, como tem a China, para enriquecer gente do outro lado do mundo, especialmente depois que os russos meteram Khodakovsky na cadeia, quando ele tentou vender sua petroleira Yukos para a Exxon. Na essência, seria vender o controle do petróleo russo, extraindo-o do patrimônio nacional russo. As vendas e lucros certamente encolheriam, depois que os contadores da Exxon usassem todas as estratégias que conhecem para sonegar impostos, servindo-se de bandeiras de conveniência e bancos em paraísos fiscais para fazer desaparecer qualquer lucro taxável.
A China quer que sua moeda torne-se item da cesta global de moedas do FMI. Quer estabelecer o yuan com status igual ao do dólar, para que não precise depender de bancos norte-americanos para suas exportações, e, sobretudo, para criar crédito doméstico.
A China quer evitar o os neoliberais neoconservadores norte-americanos fizeram à Rússia em 1992 e 1993. Naquele momento, eles convenceram a Rússia de que o banco central russo não poderia viver ser dólares norte-americanos que serviriam como lastro para o rublo. Dado que a Rússia não tinha grande quantidade de dólares norte-americanos, o resultado foi deflação drástica ("terapia de choque" sem terapia). Efeito disso na Rússia, foi a desindustrialização.
Não havia necessidade alguma de a Rússia tomar empréstimos em moeda estrangeira para saldar despesas domésticas com a própria indústria e força de trabalho. O rublo foi transformado em moeda satélite do dólar, até que quebrou, no crash de 1997, quando os capitais – em torno de $25 bilhões ao ano – fugiram para a libra esterlina e o dólar.
Isso, precisamente, é o que a China quer evitar. Querem livrar-se de depender do dólar, exceto o que for necessário para importar dos EUA ou para defender a moeda contra ataques. George Soros disse que espera que o yuan caia. É 'aviso' para que os especuladores ponham-se a tentar derrubar a moeda. Os chineses estão tentando livrar-se de interconexões com a órbita do dólar, exceto o necessário para importar dos EUA – que acho que não é muito, exceto no caso de filmes.
Bonnie Faulkner: Você mencionou quatro das próprias regras, que o FMI infringiu ao emprestar dinheiro à Ucrânia. Será que você se incomodaria de comentar novamente aquelas quatro regras, para que as pessoas não percam de vista a extensão da mudança?
Michael Hudson: A primeira regra foi a de não emprestar a país que não tivesse meios visíveis para pagar o empréstimo. É a chamada regra "nenhuma nova Argentina". Já havia sido quebrada no empréstimo à Grécia, quando Strauss-Kahn introduziu o tal de "risco sistêmico" para proteger os bancos.
A segunda regra foi não emprestar a país que tenha dado calote, quer dizer, que tenha renegado as dívidas que tivesse com credores oficiais, quer dizer, país que tivesse declarado que não pagaria o que devesse a outro país. Essa regra tornou o FMI uma espécie de 'cobrador' mafioso a serviço do cartel de credores. Hoje porém já é 'cobrador' mafioso a serviço dos só dos credores que os EUA protejam.
A terceira regra é não emprestar a país em guerra. A Ucrânia está em guerra, guerra civil contra o leste do país. Mas como o Donbass é apoiado pela Rússia, a regra não valeu nesse caso.
A quarta regra é não emprestar a país que não imponha à população as regras do arrocho [o FMI chama de "regras de austeridade"] do FMI, que empobrecem de tal modo o país que entram rapidamente em bancarrota e têm de vender o próprio patrimônio (terras e recursos naturais). O governo golpista da Ucrânia não pode impor a receita de arrocho do FMI sem ser arrancado do poder, mas pode vender terra e direitos de extração de gás natural a Soros e à Monsanto. Então, nesse caso, a regra não valeu.
Essas quatro regras foram infringidas. A Ucrânia ainda não começou a vender os próprios recursos naturais, e há alguma discussão em curso sobre isso, porque os cleptocratas locais querem continuar proprietários daqueles recursos e fazer o mesmo negócio que seus contrapartes russos fizeram no início dos anos 90s: venderão nas bolsas de valores de EUA e Grã-Bretanha coisa como 25% do monopólio que hoje é deles; os compradores encarregam-se de fazer subir e subir o preço, e depois vendem os seus 75%, para receber em Londres, New York ou onde for. O que importa é tirar da Ucrânia todos os valores, deixando o país sem fundos, e devendo anualmente quantidades enorme de dinheiro, com o patrimônio nacional vendido na bacia das almas.
Bonnie Faulkner: Você diz que a questão entre Oriente e Ocidente é uma filosofia do desenvolvimento. Em que o desenvolvimento difere nos dois sistemas?
Michael Hudson: A filosofia neoliberal norte-americana do desenvolvimento é uma espécie de conceito orwelliano oco; chamam de "desenvolvimento" o que é ausência de desenvolvimento. Como se fosse "desenvolvimento reverso". O plano neoliberal é criar uma sociedade pós-industrial. "Pós-industrial" nessa caso significa economia "neo-rentista" que volta ao feudalismo.
Em vez de os governos assumirem o comando e proverem serviços básicos a baixos preços para que o país construa economia competitiva, os governo neoliberalizados vendem estradas e energia, água e esgotos a compradores que cobrarão por tudo, bem ou serviço, que encontre demanda no mercado. É a via mais curta para empobrecer o país. É o oposto do que fez a economia do desenvolvimento ao longo de quase todo o século 20.
Bonnie Faulkner: Que tipo de cenário o Departamento de Estado e o Tesouro dos EUA discutem há mais de um ano, como meio para se opor aos empréstimos para infraestrutura que chineses e russos têm feito a outros países? Acho que você já falou um pouco sobre isso.
Michael Hudson: Os EUA não se integraram ao Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura, e fizeram de tudo para induzir outros países a não se integrarem. Houve muita gritaria e ranger de dentes quando a Inglaterra integrou-se ao BAII e outros países tentaram segui-la. Os EUA estão tentando criar uma cortina de ferro que impeça que os BRICS escapem da órbita do dólar norte-americano. É uma cortina financeira – não é cortina de ferro: é cortina eletrônica.
Bonnie Faulkner: Naquele artigo, você escreveu que o FMI seguiria emprestando aos países e dizendo a eles que não têm obrigação de pagar o que devem a Rússia e China, mas que sempre poderão tomar empréstimos do FMI?
Michael Hudson: Não é que o FMI vá e diga aos países que não paguem o que devem. O problema é que não há corte internacional. Não há agente que obrigue a cumprir as leis e fiscalize com eficácia se as leis estão ou não estão sendo cumpridas. Por exemplo, há incontáveis fundos abutres a gritar que a Argentina deve dinheiro a eles, mas até agora não conseguiram cobrar coisa alguma. Conseguiram que a Nigéria confiscasse um navio-escola argentino, mas, porque era propriedade do Estado argentino, o país teve de deixá-lo partir.
Suponha que um país deva dinheiro a outro governo ou agência oficial. Como os credores conseguirão receber, se não houver corte internacional e sistema de aplicação das sentenças e decisões daquela corte? O FMI e o Banco Mundial foram parte desse sistema para fazer pagar, mas agora tudo mudou. Agora, o FMI está dizendo 'Não faremos mais o que fazíamos. Agora só trabalhamos, exclusivamente, para o Departamento de Estado e para o Pentágono dos EUA.' Se o Pentágono diz ao FMI que 'tudo-bem', que tal ou qual país não precisa pagar o que deve à Rússia ou à China, então o país não tem de pagar – pelo menos no que tenha a ver com o FMI.
Esse é o movimento que rompe toda a ordem global que foi criada depois da 2ª Guerra Mundial. O mundo está sendo dividido em duas metades: a órbita do dólar dos EUA, e países que os EUA não conseguem controlar e cujos governantes e funcionários não estão na folha de pagamento dos EUA, digamos assim.
Bonnie Faulkner: No artigo, você fala de mudança geopolítica tectônica, que será combatida com a fúria de uma Inquisição do Século Norte-americano.[1] O que você quer dizer com "Inquisição"?
Michael Hudson: Todos os truques mais sujos, golpes de todo o tipo. O presidente Obama disse que não vamos invadir país nenhum, porque nenhum país consegue realmente mobilizar soldados em número suficiente, sem criar crise econômica e política no âmbito interno. Dado que não pode fazer guerra à moda antiga, Obama optou pela via das listas de matar e dos assassinados planejados dentro do Departamento de Estado ou noutras áreas do governo dos EUA. Mas os EUA já fazem isso há muito tempo, já fizeram no Chile, no governo Nixon/Kissinger, e na Guatemala e Nicarágua no governo Reagan.
Ou, de modo mais simples, subornam governos para forçá-los a promover gente em países estrangeiros que trabalham para os EUA. Você tem alguma dúvida de que na Inglaterra, por exemplo, se alguém como Tony Blair torna-se primeiro-ministro, ele deixará de fazer qualquer coisa que os EUA o mandem fazer?
Se querem garantir que nada aconteça, mesmo no caso de um país realmente trabalhar para ser independente, como o Chile trabalhou, por exemplo, os EUA vão até lá e assassinam o presidente eleito. Se num ou noutro país há movimento consistente a favor da reforma agrária, os EUA lançam lá a Operação Condor e matam 10 mil professores, militantes e líderes sindicais que trabalhavam a favor da reforma agrária. Na essência e no espírito, é política terrorista.
Por fim, os EUA usam o ISIS e a Frente al-Nusra como uma Legião Estrangeira dos EUA e os mandam para qualquer país que queiram destruir e saquear.
Bonnie Faulkner: Você escreveu: "Esperava-se que o capitalismo industrial clássico de há um século se convertesse numa economia de abundância. Em vez disso, temos o capitalismo do Pentágono, o capitalismo da finança, já deteriorado numa economia rentista polarizada e num imperialismo senil, fanado. (...) Se e quando a ruptura acontecer, não será marginal, mas mudança geopolítica sísmica."[2] O que você pensa da ruptura que se aproxima, do sistema financeiro global dolarizado pós-2ª Guerra Mundial? Como será?
Michael Hudson: Outros países tentarão enriquecer do mesmo modo como os EUA tentaram enriquecer: promovendo a prosperidade, um mercado doméstico, subsidiando pesquisa e desenvolvimento, exatamente como os EUA subsidiaram a tecnologia de ponta. E vão tentar impedir o rentismo – impedir que haja privilegiados, sejam donos de patentes ou donos de sistemas de TV a cabo. O objetivo sempre é evitar os super-lucros, ou a "renda econômica", ganho excessivo, além de qualquer investimento e independente de qualquer investimento.
É normal desejar que as pessoas lucrem de modo que reflita a verdadeira contribuição delas à produção, e sempre se quer garantir melhor status ao trabalho. Queremos sempre educar nossa força de trabalho, fazer dela uma força de trabalho tecnológica moderna.
Para isso, é indispensável que haja subsídios governamentais. Daí uma economia mista, com setores públicos e setores privados, na qual os governos pagam pelos custos de infraestrutura com vista a ajudar o setor privado, garantindo a todos melhores condições de concorrência.
Quero dizer: outros países evidentemente podem fazer o que os EUA fazem desde sua Guerra Civil. Serão protecionistas, tentarão melhorar a qualificação da própria mão de obra, e melhorar também a qualidade da própria agricultura. Promoverão indústrias de ponta, saúde pública e atenderão outras demandas básicas. Assim poderão alcançar o que a social-democracia se propôs a alcançar há um século, na Era Progressista. Esse, precisamente, é o caminho que EUA e Europa resolveram fechar, proibir a entrada de qualquer outro estado ou povo.
Bonnie Faulkner: Em seu artigo, você escreveu que o resultado foi "criar e reforçar uma nova Cortina de Ferro que dividirá o mundo em, de um lado, economias pró-EUA cada dia mais neoliberais; e, de outro, o resto, inclusive economias que busquem manter o investimento público em infraestrutura, impostos progressivos e o que, antes, se conheceu como um capitalismo progressista."[3]
Michael Hudson: Acho que quando a União Soviética acabou e Rússia e outros países convidaram conselheiros norte-americanos, aqueles países provavelmente esperavam que aqueles neoliberais os ajudariam a desenvolver-se como os EUA, e a alcançar a prosperidade de uma economia industrial e produtiva como a norte-americana.
Os russos não se deram conta de que os EUA não tinham nenhuma intenção de ajudá-los a enriquecer ao ponto de enriquecimento que os EUA chegaram e pelo modo como chegaram. Os conselheiros norte-americanos chegaram para destruir e saquear. Foram eles que desindustrializaram a Rússia e também os Bálticos apertando todos os elos de conexão que haviam mantido coesa a União Soviética. Resultado, a Rússia foi empurrada para trás e voltou a ser fornecedora de matérias-primas.
O resultado não foi só a pobreza, foi também a emigração em massa. A República da Latvia, por exemplo, é aplaudida como um "milagre do Báltico", como se fosse história de sucesso. O milagre é que os salários nunca pararam de cair durante a última década, levando 10-20% da população a ter de deixar o país – principalmente a população em idade laboral. O mesmo aconteceu na Rússia. Muitos dos engenheiros e outros profissionais treinados partiram para os EUA, onde ajudaram a industrialização. Neoliberalizar a Rússia não tornou o país mais próspero. Mas, por algum tempo, enriqueceu investidores norte-americanos.
Bonnie Faulkner: E sobre os pacotes de empréstimo do FMI à Grécia pós-2010? São caso também de quebra de regras no FMI?
Michael Hudson: Foi quando aconteceu o debate dentro do FMI sobre a regra de "nenhuma nova Argentina". Não cabia esperar que o FMI viesse a emprestar a país que visivelmente não teria como pagar o empréstimo. Meu livro Killing the Host trata disso.
Há três capítulos sobre a Grécia, que é exemplar de como, no passado, o FMI esmagou países do Terceiro Mundo, quase sempre para beneficiar empresas norte-americanas de minérios e outros exportadores também norte-americanos. Mas a Grécia foi o primeiro país europeu ao qual o FMI chegou explicitamente para esmagar, com o objetivo de privatizar tudo. Também escrevi um capítulo sobre a Latvia. Esse é, precisamente, o assunto de Killing the Host [Matar o anfitrião].
Bonnie Faulkner: Você escreve que Dominique Strauss-Kahn apoiou a posição linha-dura do Banco Central Europeu e EUA no caso da Grécia. E também Christine Lagarde em 2015, apesar dos protestos da equipe no FMI.
Michael Hudson: A equipe do FMI declaradamente se opôs a qualquer empréstimo à Grécia, porque o país não tinha condições de pagar. Mas foi quando Strauss-Kahn encontrou-se com o presidente Sarkozy da França e disse que tinha planos para candidatar-se à presidência. Sarkozy disse a ele que de modo algum conseguiria sucesso eleitoral na França se, como presidente do FMI, agisse de modo a expor o Fundo ao calote previsível que os gregos lhe aplicariam. Mas vários bancos franceses teriam sido atingidos se o FMI não os 'resgatasse', quer dizer, se não emprestasse o dinheiro ao governo grego, apenas para que fosse repassado aos bancos franceses, e o FMI engoliria o prejuízo.
Então, o presidente Obama foi à reunião do G-20, depois que Tim Geithner, secretário do Tesouro já falara ao telefone com toda a Europa, para dizer que, se a Grécia não pagasse o que devia a bancos e acionistas franceses e alemães, os bancos norte-americanos teriam graves prejuízos – e o mesmo aconteceria também com grandes bancos europeus, todos com dívidas encadeadas uns com os outros.
Por isso – porque todo o sistema desabaria, quer dizer, porque grandes bancos norte-americanos perderiam dinheiro –, mesmo que Strauss-Kahn já soubesse que a Grécia não poderia pagar, o empréstimo foi autorizado. Obama e Geithner disseram que o FMI não podia deixar que os apostadores norte-americanos perdessem o dinheiro que apostaram naquele determinado cavalo financeiro. Ficou resolvido que melhor quebrar a Grécia, mesmo que significasse quebrar a Europa. O troca-troca foi esse: para salvar os bancos, destruíram a economia grega.
A assimetria da posição autista, autorreferente dos EUA é enorme. É ganância nua. Estão dispostos a esmagar o FMI, a Grécia e a integração europeia, só para que Goldman Sachs e bancos de Wall Street que jogaram suas fichas na Grécia não sofressem qualquer prejuízo.
Foi o que levou à renúncia da presidenta da seção europeia do FMI. Se bem me lembro, ela viajou ao Canadá, e os canadenses publicaram tudo que ela tinha a revelar e revelou. Destruiu completamente a credibilidade do FMI, já antes da crise ucraniana.
Bonnie Faulkner: Você escreveu que a razão pela qual a economia grega foi esmagada teria sido a urgência em deter o [partido] Podemos na Espanha, e movimentos semelhantes na Itália e em Portugal, todos com plataformas a favor de buscar antes a prosperidade nacional que a 'austeridade' [o arrocho] da Eurozona. Você acha mesmo que esse componente também tenha pesado?
Michael Hudson: Foi precisamente o que o Banco Central Europeu declarou. Disseram com todas as letras que 'Não podemos deixar que o Syriza vença'. O ministro de Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, contou que lhe disseram, durante reunião com o FMI e os europeus, que a democracia era o que menos os preocupava. Que nenhuma diferença faria quem fosse eleito. Qualquer novo governo grego seria obrigada a pagar as dúvidas contraídas pelo governo corrupto que precedeu o governo do Syriza.
O Financial Times e praticamente toda a imprensa ocidental sabiam e publicaram que, se a dívida grega fosse perdoada, para salvar o país da bancarrota, o FMI e o resto da troika da União Europeia teriam de perdoar dívidas de Itália, Espanha e Portugal. Todo o sistema de cobrança de empréstimo ruiria. Diante do impasse entre salvar os bancos ou salvar a economia, a troika optou por salvar os bancos, e quebrar as economias nacionais.
Foi também o que fez o presidente Obama nos EUA, quando 'resgatou' os bancos, em 2008. Essa é a causa fundamental que hoje dá vida à candidatura de Bernie Sanders.
Em resumo, a órbita dos EUA sempre diz 'salve os bancos, não a economia.' O problema é que o volume dos juros das dívidas cresce exponencialmente. Significa que as dívidas cresceram exponencialmente. Com isso, os países devedores serão sempre obrigados a impor arrocho [não é 'austeridade': é arrocho] cada vez mais apertado. E as economias às quais se impuser arrocho sem fim reagirão como a Rússia, nos anos 90s, ou Latvia ou a Grécia: haverá emigração em massa, queda nos índices de natalidade, aumento nos índices de mortalidade e crescimento de incidência de doenças muitas das quais já erradicadas. Os mercados encolherão, ao ritmo em que a economia dos países devedores for sendo sufocada.
A grande luta que se trava hoje é sobre salvar os bancos ou salvar a economia. No final, os bancos não podem ser salvos eternamente, porque s cada dia mais dívidas tornam-se impagáveis. A posição dos EUA de fato é bem clara: 'Pouco importa que as dívidas sejam impagáveis, porque sempre há patrimônio dos estados que poderá ser vendido a preço de liquidação a empresas norte-americanas interessadas'.
Portanto, o que se vê hoje, é um vasto processo global pelo qual bancos credores tomam propriedades de devedores inadimplentes [ing. foreclosure process].
Os credores e acionistas, de fato, estão cobrando o que lhes é oficialmente devido, à moda Máfia, confiscando estradas, sistemas de transporte, sistemas de comunicações, sistemas de água e esgoto e todo o tipo de infraestrutura. Chamo a isso "neofeudalismo". É forçar o capitalismo industrial a regredir. Estão forçando os mercados a encolher e toda a economia é 'desidratada': é o neofeudalismo.
Isso, precisamente, é a economia rentista. É economia de extração de rendas, não é economia que gere crescimento porque produza sempre mais e contrate mão-de-obra para fazer a economia expandir-se. É o contrário. É a dinâmica reversa do capitalismo, como se pensava o capitalismo há cem anos passados.
Bonnie Faulkner: Michael Hudson, obrigada pela entrevista.
Michael Hudson: É sempre muito bom participar de seu programa. É ótimo que você esteja de volta, Bonnie.*****
* Desde 2003, o Brasil não mais tomou empréstimos do FMI; em 2005, na gestão do ministro Palocci no Ministério da Fazenda do governo do presidente Lula, o país pagou todas as suas dívidas e tornou-se credor do FMI (mais sobre isso em Exame, 10/2/2005).
Agora, em 2016, Brasil passará a ser 10º maior cotista do FMI. Pela 1ª vez, 4 emergentes – Brasil, Rússia, Índia e China – estarão entre os dez maiores cotistas do fundo (mais sobre isso em O Globo, 22/2/2016) [NTs].
[1] "Rússia e China estão fazendo, simplesmente, o que EUA fazem há muito tempo: usar laços comerciais e de crédito, para cimentar a própria diplomacia geopolítica. Mas a novidade chinesa é uma mudança geopolítica tectônica, e ameaça de dimensões copernicanas à ideologia da Nova Guerra Fria.
Em vez de a economia mundial gravitar em torno dos EUA (a ideia ptolomaica segundo a qual os EUA seriam “a nação indispensável) pode acontecer de ela passar a gravitar em torno da Eurásia. Enquanto a sede papal continuar plantada em Washington nos gabinetes do FMI e do Banco Central, aquela mudança no centro de gravidade seria combatida com a fúria total da Inquisição do Século Norte-americano (de fato, Inquisição do Milênio Norte-americano)." HUDSON, Michael, "FMI altera regras, para isolar China e Rússia", traduzido em Patria Latina [NTs].
[2] HUDSON, Michael, "FMI altera regras, para isolar China e Rússia", traduzido em Patria Latina [NTs].
[3] HUDSON, Michael, "FMI altera regras, para isolar China e Rússia", traduzido em Patria Latina [NTs].
Um comentário:
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