segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Pepe Escobar: E aí? Já traiu seu curdo hoje?



Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu




Reza a lenda que os curdos jamais se unirão, porque não vivem sem se bicar uns os outros; os próprios curdos me contaram, na Turquia, Iraque e Síria. Os norte-americanos manipularam os curdos iraquianos à vontade, em 1991. Agora, o supermega top instrumentalizador/demonizador das esperanças e sonhos dos curdos – ao longo do front turco-sírio – é o sultão neo-otomano Erdogan.

Ankara costumava manter um simulacro de "processo de paz" com os curdos da Anatolia. Erdogan substituiu-o por guerra total, que respingou também contra os curdos sírios. A guerra não é contra todos os curdos, é claro, mas principalmente contra o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (cur. PKK, cujo líder, Abdullah Ocalan, cumpre pena de prisão perpétua na prisão de Imrali) e seus aliados, o Partido da União Democrática Síria (cur. PYD).




Tudo que Ankara 'noticia' sobre seu empenho na luta contra ISIS/ISIL/Daech em toda a área do "Siriaque" é mentira; o único real empenho de Erdogan e de sua máquina hegemônica no Partido AKP é tentar esmagar o PYD e seu braço armado, o YPG. Não poderia haver exemplo "pior" para os curdos da Anatólia, que o advento de um Curdistão autônomo em sistema de cantões, na vizinha Rojava (norte da Síria).

Daí que todo o drama que se desenrola ao longo da fronteira Síria-Turquia seja submetido a um imperativo categórico infindavelmente reiterado pelo primeiro-ministro Ahmet Davutoglu; se o YPG avança para o oeste do Eufrates, para unir os três cantões curdos, será guerra.

Ora, guerra já é, faz tempo, e tudo varrido como sempre pelo proverbial tsunami de mentiras, com Erdogan e Davutoglu tentando culpar o YPG pelo mais recente ataque a bomba em Ankara (os culpados são, na verdade, um grupo dissidente de ex-afiliados do PKK). Acrescente ao portfólio de mentiras os atentados sob falsa bandeira (com os quais Erdogan contava, em 2014, justificar uma invasão pela OTAN) e a emboscada covarde que levou à derrubada do Su-24 russo na fronteira turco-síria, em novembro passado.

Assim também a "política" de Erdogan para os curdos sírios, que não passa de OVNI e resume-se, essencialmente, a impedir, por todos os meios, que o YPG avance para o oeste do Eufrates e unam, afinal, os três cantões curdos; e, sendo possível, a esmagá-los completamente (Ankara, afinal, já decidiu que os curdos do YPG são "terroristas"). Fato é que o governo em Damasco não está em guerra contra o YPG e não está exatamente preocupado por os cantões curdos sírios não conterem a paranoia de guerra de O Sultão.

Erdogan o autocrata está apoplético contra a ideia dos cantões, que são, para todas as finalidades práticas, o experimento da autonomia democrática de Rojava, processo iniciado em julho de 2012 e inspirado – adivinhem! – pelo próprio Ocalan. Ano passado, no verão, os curdos turcos viram a luz e partiram para a autonomia democrática em várias cidades da Anatólia. O resultado – previsível – foi guerra de Ancara, outra vez, contra o PKK.

Trata-se, aí, de Erdogan vs Ocalan




Pode-se dizer que Rojava – e não a Rússia – é o mais terrível dos pesadelos de Erdogan. Porque a autonomia democrática aperfeiçoada pelo surgimento de Rojava é fruto brotado de textos teóricos da lavra de Ocalan, a pior das nêmeses de Erdogan.

Os curdos do outro lado da fronteira acolheram o conceito, entusiasmados: o PYD, Partido da Vida Livre do Curdistão (cur. PJAK) no Irã e Partido da Solução Democrática do Curdistão (cur. PCDK) no Curdistão iraquiano. Ninguém está falando de "divisismo" [orig."splittism"] – como diria Pequim (referindo-se ao Tibete). Rojava, por exemplo, pode permanecer dentro do estado sírio, mas gozando de plena autodeterminação.

Quero dizer: o nome do verdadeiro jogo é Erdogan vs Ocalan. Não é Erdogan vs Putin.

Erdogan: "Está tudo bem, contanto que continuem matando Curdos"

Se, pelo menos, Erdogan e a máquina hegemônica do AKP tivesse algum processo de inclusão transétnica a oferecer. Mas não apenas não tem como, para piorar, apoiam por todos os meios qualquer grupelho salafista-jihadista, e até o próprio ISIS/ISIL/Daech, naquela ira ensandecida para derrubar Damasco e converter uma Síria islamizada à posição de estado vassalo.

Inevitavelmente, em todos os casos só resta à monolítica lógica de guerra do sultão: parar o YPG onde apareça ao mesmo tempo em que permite que a Rodovia Jihadista lá permaneça, aberta e intocada, mesmo depois de o Exército Árabe Sírio (EAS) já ter bloqueado o corredor Aleppo-Kilis.

A "estratégia" da Equipe Obama por sua vez – fiel à tradição norte-americana – continua a ser manipular sem parar os curdos, tentando empurrá-los para os objetivos geopolíticos de Washington. Significa encorajar o YPG e a Peshmerga dos curdos iraquianos a abraçar uma ofensiva muito problemática contra ISIS/ISIL/Daechsimultaneamente em dois fronts, em Raqqa e em Mosul.

Os curdos não podem fazer as coisas sozinhos nos dois casos, e a possibilidade de conseguirem defender a própria trincheira é também muito magra. Bem-vindos àquela coisa de "liderar pela retaguarda", é assim que funciona. E a covardia geopolítica da Equipe Obama explode pelo teto, com o componente extra de Washington nunca, na prática, defender os curdos contra a loucura de Erdogan (afinal, trata-se de "aliado na OTAN"), ao mesmo tempo em que proclama aos gritos que o YPG ficaria 'proibido' (?!) de tirar território hoje ocupado pelos "rebeldes moderados" da Frente al-Nusra, também conhecida como al-Qaeda na Síria.

Por tudo isso, a "estratégia" de Erdogan – em coruscantes cacos por todo o teatro de guerra na Síria – reduz-se agora a tentar manter-se à distância tanto do YPG como daquela faixa de 98 km ao longo da fronteira; "transferindo", essencialmente, aquela terra, de um ISIS/ISIL/Daech enfraquecido, para Frente al-Nusra e Ahrar ash-Sham que os EUA apoiam. Tradução: o sultão realoca seus favores, tirando do falso "califato' para dar à al-Qaeda, enquanto puder usá-los para manter os curdos à distância.

É fácil visualizar, nessas circunstâncias, a frustração dos curdos sírios. Podem até encontrar uma saída, contendo por hora o sonho de unir os cantões, para, em vez disso, coordenar uma ofensiva que os una ao Exército Árabe Sírio em Aleppo. Erdogan é suficientemente covarde para não se expor ao risco de ter de enfrentar cabeça a cabeça o experiente exército sírio, apoiado pela Força Aérea Russa.

Adicionalmente, os PYD/YPG podem decidir ganhar tempo, se analisarem a extensão da traição que Washington comete. Assumindo que possam vir eventualmente a transformar-se com mais armas que os EUA lhes forneçam no médio prazo, o YPG pode até considerar não destruir por hora completamente toda a nebulosa al-Nusra – para só cuidar dela como se deve, depois de ajudar a varrer completamente os arredores de Aleppo.

Com um brinde, um bônus, um extra irresistível: novas armas inflarão o pesadelo recorrente, de proporções insuportáveis, que não dá sossego ao sultão, ao mesmo tempo em que mantêm muito, muito vivo o sonho da autonomia democrática.*****