Com tensões crescentes entre Turquia e Rússia em torno da situação na Síria, um fato importante passou despercebido. Não é a Rússia a causa dos atuais problemas turcos. A causa foi e é os EUA.
O problema mais fundamental que a Turquia enfrenta é a questão curda. É problema crônico que ameaça a integridade da Turquia, e a elite turca o vê como a maior ameaça à segurança que o país enfrenta hoje. Políticas turcas na Síria são determinadas pelo problema curdo, mais que por qualquer outro fator. A mudança da política chamada de "zero problemas com os vizinhos", que Erdogan e seu governo tanto promoveram e que surpreendeu muitos, está diretamente relacionada ao problema curdo e a eventos no Iraque depois da desastrosa invasão norte-americana.
Aqui é necessária uma rápida digressão histórica. Quando o moderno estado turco foi criado das cinzas do império otomano depois da derrota na 1ª Guerra Mundial, ele nasceu à procura de nova identidade sobre a qual pudesse se estabelecer com sucesso. A jovem elite turca de então escolheu um modelo de nacionalismo, conceito progressista naquele momento – e tão popular novamente na Europa contemporânea.
A Turquia, exatamente como seus contrapartes europeus, teve de enfrentar o desafio de uma herança imperial, a saber, os grupos de diversas etnias que viviam no território nacional recém estabelecido. Havia grandes e antigas comunidades de gregos, de armênios, de curdos e de muitos outros povos que viviam na Anatólia e na parte europeia da Turquia. Os próprios turcos étnicos eram relativamente recém-chegados naquela parte do mundo: só chegaram no século 11 d.C. Gregos e outros grupos étnicos, por sua vez, podem traçar desde meados da Idade do Bronze e dali em diante (3300-1200 a.C.) a própria presença na área que é hoje a Turquia.
Os turcos conseguiram resolver a questão grega depois da guerra grego-turca de 1919-1922 e de grande troca de população que se seguiu. Muitos gregos deixaram a Turquia, e a Turquia recebeu em troca um influxo de turcos étnicos vindos da Grécia. A questão armênia foi resolvida já durante a 1ª Guerra Mundial, pelo que muitos chamam de "o genocídio dos armênios", designação à qual a Turquia opõe-se furiosamente. Para os turcos, chama-se "a deportação forçada dos armênios para o deserto sírio". Mas, sim, estima-se que 1,5 milhão de armênios tenham morrido. A Turquia reconhece a deportação forçada, mas alega que a perda de tantas vidas foi dano colateral não desejado, não qualquer tipo de ação deliberada.
Mas a Turquia jamais conseguiu resolver a questão curda. Os curdos são antiga comunidade de pessoas originárias do Irã que aceitaram o Islã. São soldados bem treinados e muito habilidosos, que tiveram importante papel em exércitos islâmicos, incluídos o seljuk e o otomano. A mais afamada figura histórica curda é Saladino (nome pelo qual é conhecido no ocidente), o general muçulmano que reconquistou Jerusalém durante as Cruzadas e sultão do Egito e Síria.
Os turcos tentaram resolver o problema curdo por assimilação direta. Anunciaram que, daquele ponto em diante, os curdos passavam a ser simples "turcos orientais" e proibiram a língua curda. Os curdos resistiram e os turcos responderam com repressão, realocação forçada, discriminação e força militar pesada. Desde então, os curdos na Turquia vivem de fato em rebelião constante e em guerra às vezes mais às vezes menos intensa com o governo turco, guerra a qual já custou milhares de vidas aos dois lados.
Apesar da vantagem em número e em armamento, a Turquia parece estar lentamente perdendo essa guerra. Estima-se que os curdos sejam já 20% da população turca, e a taxa de nascimentos nas famílias curdas é quase o dobro do que se constata nas famílias turcas. Em poucas décadas, essa diferença levará a uma situação na qual haverá mais curdos que turcos, em idade de servir ao exército.
Para piorar as coisas para a Turquia, os curdos não vivem só em território turco. Também graças ao legado pós-colonial e à arbitrariedade das fronteiras que França e Grã-Bretanha traçaram nas areias, nas planícies e nas montanhas do Oriente Médio, comunidades curdas de dimensões semelhantes vivem também em países vizinhos – na Síria, no Iraque e no Irã. Juntas, as comunidades curdas vivem numa grande área, quase contínua, chamada Curdistão. Para sorte da Turquia, os curdos naqueles outros países enfrentaram até recentemente perseguição semelhante à que sofreram na Turquia. Todos aqueles países viam os respectivos curdos como ameaça à própria integridade territorial. O episódio mais conhecido dessa repressão aconteceu quando Saddam Hussein usou gás venenoso contra curdos no norte do Iraque. Não é de modo algum o único exemplo, mas é caso que, quando ocorreu, serviu bem aos interesses do ocidente no Oriente Médio. Por isso foi mais divulgado que inúmeras outras circunstâncias semelhantes de violência, ao longo de décadas de silenciosa cumplicidade do mundo dito 'civilizado' ocidental. E com isso voltamos à causa da recente mudança nas políticas turcas e na tensão sempre crescente na fronteira turco-síria.
Quando os EUA decidiram invadir o Iraque em 2003, a Turquia concluiu, corretamente, que a operação seria absolutamente temerária, com resultado imprevisível. Na esperança de minimizar os efeitos sobre o próprio país, os turcos decidiram manter estrita neutralidade e atitude de não intervenção; chegaram ao ponto de não permitir que seus aliados na OTAN, EUA e Grã-Bretanha, usassem território e bases turcas para ataques ao Iraque.
O ataque norte-americano contra o Iraque e a ocupação que se seguiu levaram a guerra total dentro do país, culminando com o Iraque rachado em três partes: uma parte xiita, uma parte sunita e uma parte curda.
Assim, de repente, a Turquia estava diante não só de uma insurgência curda dentro de seu território, mas também pela primeira vez, havia um estado curdo independente de facto bem junto à fronteira, onde todos os curdos que viessem de território curdo encontravam paraíso seguro, podiam reagrupar-se, reorganizar-se e obter suprimentos. Para a Turquia, foi desastre total.
Os turcos tentaram dar conta do problema com incursões militares limitadas em áreas do Curdistão iraquiano, tentativas de subornar líderes curdos e integral confiança na capacidade de seus parceiros norte-americanos para manter os curdos sob controle e impedir dano maior. Os norte-americanos, como logo se viu, mostraram absolutamente incapazes de levar a bom termo qualquer dessas 'missões'. O mais provável é que sequer tenham desejado fazê-lo.
A lição que Erdogan e líderes turcos parecem ter aprendido dos eventos no Iraque é que se abster de se envolver nos conflitos na região não basta para blindar a Turquia e torná-la à prova de consequências negativas. Conclusão foi que, se a Turquia não pode impedir os conflitos, melhor envolver-se neles e assim, pelo menos, influir nos resultados, como meio para proteger os próprios interesses.
Quando os EUA e aliados na NATO decidiram 'mudar regimes' no Norte da África e meteram-se em mais uma aventura imperial na Líbia, a Turquia, apesar de inicialmente ter relutado, concordou em juntar-se a eles. E quando os EUA decidiram iniciar guerra contra a Síria, a Turquia também pulou no mesmo trem, provavelmente porque os EUA disseram aos turcos que a guerra seria rápida, a vitória, imediata; e, com ela, viria um novo governo na Síria, da Fraternidade Muçulmana – amiga da Turquia e do partido ali governante.
O mais provável é que Ankara tenha-se posto a imaginar que os EUA implantariam rapidamente na Síria um governo cliente... da Turquia. Essa, sem dúvida, era também a esperança de Riad – outra desgraçada vítima das políticas dos EUA para o Oriente Médio.
Como o mundo já deveria ter aprendido, mas ainda não aprender, as políticas dos EUA para aquela região (e também para outras regiões) jamais funcionam como os EUA propagandeiam. Quando o presidente Assad mostrou-se muito mais duro na queda do que Washington fantasiava, Ankara e Riad passaram a esperar que os EUA fariam o que fizeram na Líbia – intervir a ferro e fogo sob o pretexto de lá implantar uma zona aérea de exclusão, novamente para proteger "os civis" – o mesmo pretexto de sempre, desde a Iugoslávia.
Mas nenhum homem se banha jamais duas vezes no mesmo rio, como tão bem compreenderam e ensinaram os gregos antigos. Depois do desastre na Líbia, cresceu a oposição à intervenção, liderada com destaque por Rússia e China; simultaneamente, emagreceu muito o apoio, dentro dos EUA e dos aliados França e Grã-Bretanha. E a tal zona aérea de exclusão nunca aconteceu.
Não se deve deixar de notar que turcos e sauditas haviam sido os mais falantes e empenhados propositores da tal zona aérea de exclusão [eufemismo criado pelos EUA para "invasão norte-americana contra a Síria"]. Sem qualquer outra ideia, turcos e sauditas continuaram a repetir aquele velho mantra de zona aérea de exclusão. Até hoje.
Mas o governo Obama já estava cantando em outra freguesia. Por trás dos panos, agradeceu muito aos russos que, com o acordo da troca de armas químicas, ofereceu aos norte-americanos uma saída não completamente vergonhosa.
Os EUA já haviam decidido que a operação de 'mudança de regime' na Síria teria de ser tentada exclusivamente por 'procuradores' locais, sob a forma de colorida gangue de grupos sunitas, todos mais ou menos repugnantes, e tanto locais quanto estrangeiros deslocados para lá.
'Conversadas' mais uma vez, Turquia e Arábia Saudita abraçaram entusiasmadas as tais gangues de mercenários que os EUA lhes mandavam, alguns declaradamente apoiados sob rótulos 'moderados'; outros, menos declaradamente, enquanto iam fazendo de conta que combatiam contra grupos 'radicais' e 'terroristas'.
A única verdade em todo esse processo é que o único grupo que a Turquia realmente combateu na Síria foram os curdos. Por ironia, os curdos são, provavelmente, o único grupo de oposição que havia na Síria e que merecia a classificação de "moderados".
Mas então veio, inesperada, a intervenção russa, a pedido do presidente Assad – intervenção legal, portanto.
E contra todas as 'promessas' e 'ameaças' de Washington de que os russos lá ficariam atolados, como no "atoleiro" do Afeganistão, fato é que os russos viraram a mesa. Hoje, cada dia mais, são os 'rebeldes' que estão em fuga. É desastre de proporções épicas para a Turquia.
Em vez de regime amigável de tipo Fraternidade Muçulmana em Damasco, que Ankara controlaria, estão diante da criação do segundo estado curdo independente junto às fronteiras turcas. Isso pôs os líderes turcos em modo "pânico", e por isso os turcos só fazem aumentar irracionalmente as tensões e os riscos na fronteira com a Síria. Em minha opinião, a derrubada do avião russo, o assassinato do piloto quando descia de paraquedas depois de ejetar-se do avião, o bombardeio de curdos e a concentração de forças militares junto à fronteira, ao som de retórica agressiva não visam tanto a ameaçar Rússia ou Assad; são, sobretudo, tentativas desesperadas para forçar Washington a comandar, afinal, uma invasão à Síria. Porque, afinal, Washington provavelmente induziu, sim, Ankara e Riad a crer que assim seria feito. E agora Washington está tirando o corpo e recuando. Nem Turquia nem Arábia Saudita, sozinhas, invadirão coisa alguma.
Para concluir: as políticas dos EUA de desestabilizar países e regiões inteiras do mundo, porque assim favoreceriam seus próprios interesses geopolíticos e econômicos ao longo das últimas uma, duas décadas, já se comprovaram gravemente danosas aos aliados dos EUA, ainda mais do que aos inimigos dos EUA – se não ainda mais danosas aos amigos, que aos inimigos.
Outro exemplo é, claro, a crise dos migrantes que buscam a Europa. Ainda não se sabe que efeito terá nas relações entre EUA e seus aliados, por um lado; e entre EUA e seus inimigos, por outro. Mas é razoável esperar que a insatisfação com a liderança dos EUA (presente ou futura) só aumentará, em todo o mundo.*****
Nenhum comentário:
Postar um comentário