29/8/2016, Pepe Escobar, Sputnik International
A próxima reunião de cúpula dos BRICS, em Goa, acontecerá em menos de dois meses. Comparada à situação de apenas dois anos passados, as placas tectônicas da geopolítica moveram-se com espantosa velocidade. Os BRICS estão mergulhados em crise profunda: no Brasil, o desastre político/econômico/ institucional pode gerar um kafkiano impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Os BRICS estão em coma. A única parte do corpo que sobrevive é a parceria estratégica Rússia/China (RC). E até essa parceria parece também enfrentar problemas – com a Rússia ainda atacada por incontáveis metástases de Guerra Híbrida. O Hegemon – Excepcionalista – continua poderoso, e a oposição está zonza e confusa.
Mas, firmemente, embora lentamente – veja-se por exemplo a possibilidade de uma coalizão Ankara-Teerã-Moscou – o poder global continua a insistir em andar na direção do Oriente, para o leste. É mais do que o pivoteamento da Rússia para a Ásia; industriais alemães estão só esperando a conjunção política certa, antes do final da década, para também se pivotearem para a Ásia, modelando uma coalizão BMP (Berlim-Moscou-Pequim).
A Alemanha já reina sobre a Europa. O único modo de uma potência comercial global se firmar é tomar rumo leste. A Alemanha, membro da OTAN, com PIB que ultrapassa Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, não tem nem autorização para partilhar informação coletada pela gangue secreta dos "Cinco Olhos".
Anos atrás, o presidente Putin falava de um grande empório "de Lisboa a Vladivostok". Talvez seja recompensado – gratificação retardada? – pela coalizão Berlin-Moscou-Pequim, uma união de negócios e comércio, combinada com o projeto chinês "Um Cinturão, uma Estrada" [ing. One Belt, One Road (OBOR)], que acabará por fazer encolher e efetivamente substituirá a hoje oscilante ordem internacional pós 2ª Guerra Mundial, construída e controlada pelo mundo anglo-saxônico.
Esse inexorável movimento para o oriente destaca todas as interconexões – e conectividade crescente – relacionada às Novas Rotas da Seda, à Organização de Cooperação de Xangai, o novo Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento (BAII), o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, a União Econômica Eurasiana. O cerne da parceria estratégica RC (Rússia e China) é fazer acontecer o mundo pós-Atlântico. Ou, atualizando Ezra Pound, fazê-lo novo [ing. Make It New][1].
Conter a parceria Rússia-China
Claro que o pivô da Rússia para a Ásia é só parte da história. O principal das indústrias da Rússia, infraestrutura e população está no ocidente do país, perto da Europa. O eixo Berlin-Moscou-Pequim permitirá movimento de duplo pivô – simultaneamente para Europa e Ásia; com a Rússia explorando ao máximo seu personagem eurasiano.
Não por acaso, tudo aí é anátema absoluto para Washington. E daí a estratégia previsível, em andamento, rédeas soltas, do Excepcionalistão, para impedir por todos os meios necessários qualquer tipo de cooperação Rússia-Alemanha mais próxima.
Paralelamente, também é essencial o movimento de pivô para a Ásia, porque lá vive a vastíssima maioria dos futuros consumidores que a Rússia visa a alcançar – de energia e de outros produtos. Será processo longo e tortuoso educar a opinião pública russa para o valor incalculável da Sibéria e do Extremo Leste da Rússia. Mas já começou. E em meados da próxima década estará em pleno andamento, quando todas as Novas Rotas da Seda interpoladas estarão operando.
"Conter" o eixo Rússia-China é o nome do jogo excepcionalista – aconteça o que acontecer dia 8 de novembro. No que tenha a ver com o complexo industrial-militar-de segurança-'midiático', não haverá reset.
Serão empregados procuradores e forças 'delegadas' – do estado-falido da Ucrânia ao Japão no Mar do Leste da China, bem como qualquer facção do sudeste asiático que se apresente como voluntária no Mar do Sul da China.
Em todos os casos, o Hegemon enfrentará muitas dificuldades para conter simultaneamente os dois lados da parceria Rússia-China. A OTAN não ajuda; o braço comercial do Hegemon, a Parceria Trans-Pacífico [ing. TPP] ', pode bem entrar em colapso lá mesmo em alto mar, antes de chegar à praia. Sem Parceria Trans-Pacífico – que não existirá caso Donald Trump seja eleito em novembro – significa o fim da hegemonia econômica dos EUA sobre a Ásia. Hillary Clinton sabe disso; e não é por acaso que o presidente Obama tenta tão alucinadamente aprovar a Parceria Trans-Pacífico numa estreita janela de oportunidade, na sessão do Congresso pato-mando de 9/11/2016 a 3/1/2017.
Contra a China, a aliança do Hegemon depende de fato de Austrália, Índia e Japão. Mas esqueçam qualquer possibilidade de instrumentalizar a Índia, membro dos BRICS – a qual jamais cairá na arapuca de uma guerra contra a China (para nem falar de Rússia, com a qual a Índia mantém tradicionalmente muito boas relações).
Os instintos imperiais do Japão foram returbinados por Shinzo Abe. Mas persiste uma inamovível estagnação econômica. Além disso, Tóquio foi proibida pelo Departamento do Tesouro dos EUA de manter lá o 'alívio quantitativo'. Moscou assiste a esse movimento, como acompanharia objetivo de longo prazo, para arrancar o Japão da órbita dos EUA e integrá-lo à Eurásia.
Dr. Zbig entra na Desolation Row [lit. Fila/Trilha da Desolação]
O Pentágono, em pânico, ante a visão de que a parceria Rússia-China é agora também parceria militar.
Comparada ao armamento superior de alta tecnologia da Rússia, a OTAN é sala de brinquedos de jardim de infância; para nem falar que, em breve, o território russo será inviolável para esses esquemas norte-americanos copiados de Guerra das Estrelas. Em breve a China terá todos os submarinos a serem armados com mísseis necessários para fazer da vida da Marinha dos EUA um inferno, no caso de o Pentágono estar acalentando ideias doidas. E há também os detalhes regionais – da base aérea permanente da Rússia na Síria, à cooperação militar com o Irã e, eventualmente, com a Turquia, membro indisciplinado da OTAN.
Não surpreende que ideólogos luminares do excepcionalismo do Excepcionalistão, como o Dr. Zbig "Grande Tabuleiro de Xadrez" Brzezinski – conselheiro do presidente Obama para questões de política exterior – estejam sendo absolutamente descartados.
Quando Brzezinski ergue os olhos para a crescente integração da Eurásia, ele simplesmente não consegue não ver que aqueles "três grandes imperativos da geoestratégia global" que expôs em O Grande Tabuleiro de Xadrez (ing. e port.) estão simplesmente em dissolução e já não bastam para "impedir a colusão; e manter vassalos dependentes de segurança; para manter os tributários submissos e protegidos e impedir que os bárbaros se unam" ("Toward a Global Realignment", Zbigniew Brzezinski, The American Interest, 17/4/2016, p.40).
Aqueles vassalos do Conselho de Cooperação do Golfo – a começar pela Casa de Saud – estão em pânico, quanto à própria segurança; o mesmo para os histéricos Bálticos. Tributários já não se curvam – o que inclui sortimento grande de europeus. Os "bárbaros" que se unem são, isso sim, civilizações milenares – China, Pérsia, Rússia – fartas dessa unipolaridade de controle verticalizado de cabo a rabo.
Não surpreendentemente, para "conter" a parceria Rússia-China, definida como "potencialmente ameaçadora" (o Pentágono considera que são ameaças existenciais) Brzezinski sugere – e o que poderia sugerir?! – mais "Divide e Reina", tipo "conter o menos previsível, mas, potencialmente, o que tem mais probabilidade de se expandir". Mas não sabe por qual dos países começar a 'contenção': "atualmente, a Rússia tem mais probabilidade de expandir-se; no longo prazo, pode ser a China."
Hillary "Rainha da Guerra" Clinton, claro, não subscreve essa conversa de "pode-ser", de Brzezinski. Afinal de contas, é a candidata oficial, apoiada por Robert Kagan, dos neoconservadores. Ela está mais afinada com "análises" consideravelmente mais sinistras.
Por tudo isso, deve-se esperar que o "projeto" de Hillary seja avassaladora expansão hegemônica por toda a Eurásia. Síria e Irã serão alvos. E até outra guerra, na península coreana, pode estar nos planos. Mas contra a República Popular Democrática da Coreia ("Coreia do Norte"), potência nuclear? O Excepcionalistão só ataca quem não tenha como se defender. Além do que, a parceria Rússia China pode impedir a guerra, oferecendo algumas cenouras estratégicas à família Kim.
Em muitos aspectos, nem foram tantas as mudanças desde, há 24 anos, quando, apenas três meses depois de a URSS se autodissolver, o Manual de Planejamento da Defesa do Pentágono já proclamava:
"Nosso primeiro objetivo é impedir a reemergência de um novo rival (...) Para isso, temos de assumir a missão de impedir que qualquer potência hostil domine uma região cujos recursos sejam, sob controle consolidado, suficientes para gerar poder global. Essas regiões incluem a Europa Ocidental, o Leste da Ásia, o território da União Soviética e o sudoeste da Ásia."
Aí está um mapa antecipado do que está acontecendo hoje: a potência "rival", "hostil" é, de fato, duas potências, associadas entre elas numa parceria estratégica: Rússia-China.
Para completar esse pesadelo do Pentágono, o impasse só faz aproximar-se cada vez mais; as próximas manifestações e reverberações da crise financeira iniciada em 2008 e sem fim à vista podem vir a torpedear os fundamentos da "ordem" global – tipo gangue do petrodólar e fraude tributária.
Correrá sangue. Hillary Clinton já farejou sangue no ar – da Síria ao Irã e ao Mar do Sul da China. A questão é se ela – e virtualmente todo o establishment do governo dos EUA em Washington, que segue na trilha dela – serão loucos o bastante para provocar Rússia-China e comprar bilhete de ida sem volta para o território pós-DeMG (Destruição Mútua Garantida; ing. MAD, Mutual Assured Destruction).*****
[1] Ezra Pound, Make It New: Essays. London: Faber and Faber, Set., 1934. "A expressão Make it New' [aprox. "fazer (qualquer coisa) nova"] é usada frequentemente para definir um traço chave do modernismo – a novidade – e é tomada com fundamento do desenvolvimento da estética modernista. Mas, quando Ezra Pound usou a expressão pela primeira vez em 1928, os maiores trabalhos do modernismo já haviam aparecido, e passaram-se décadas até que 'Make It New'ganhasse significado específico e se tornasse slogan e palavra-senha. 'Make It New' [a publicação que leva esse título] traz a tradução de Pound, de uma passagem do Da Xue, texto de história chinesa. Influenciado também pela fé cristã,'Make It New' tornou-se modelo de mudança, de renascimento e renovação, pelos quais o novo não é simples retorno ao antigo. Mas, assentado sobre o trabalho dos que vieram antes, "Fazê-lo novo" é um processo de reciclagem histórica, citação e rearranjo".
2 comentários:
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