05.06.2017, Conrado Hübner Mendes - Jota
O Supremo converteu-se em gabinete regulatório da crise política brasileira. Não há impasse político no país que lá não chegue, quer na esfera criminal, quer na eleitoral, parlamentar ou constitucional. Com maior ou menor competência, clareza e inventividade, o tribunal, quando não se omite, tem definido as regras do jogo. Aos atores políticos implicados cabe obedecê-las. A obediência, contudo, não é um dado que se possa presumir, mas uma meta a se conquistar. Essa conquista é rodeada de incerteza. Em casos com tamanha voltagem política, nos quais o tribunal busca disciplinar conflitos e sancionar atores com vultosos estoques de poder, o espectro da desobediência, explícita ou velada, torna-se palpável. Há incentivos para resistir ao STF. Cabe ao tribunal antecipá-los, neutralizá-los, minimizá-los.
Como pode um tribunal minimizar esses incentivos e conquistar autoridade? Nem o direito constitucional comparado, nem a história judicial brasileira oferecem uma receita para essa pergunta. Sabe-se que a fórmula, seja qual for, não pode prescindir, por um lado, de argumentação transparente que costure uma jurisprudência constitucional digna desse nome; por outro, de uma sensibilidade de conjuntura, uma gestão aguçada de seu capital político. Duas tarefas que o STF não desempenha com destreza: a ingovernabilidade de suas práticas solistas, já diagnosticada por tantas pesquisas empíricas na última década, é a síntese de um tribunal ancorado na individualidade de seus ministros. Comportamentos propriamente institucionais e decisões que conjuguem a primeira pessoa do plural não são visíveis ali.
Uma corte poderosa não é aquela que recebeu amplos poderes da constituição, mas aquela que se faz obedecer. Sua imagem precisa estar acima de qualquer suspeita. A ciência política que estuda cortes constitucionais pelo mundo sabe que os atributos da legitimidade e da independência não são gratuitos nem estáveis. Flutuam conforme as circunstâncias, o comportamento judicial e as reações às decisões tomadas. Por isso mesmo, a legitimidade depende de contínua administração e do bom desempenho do tribunal. Entre os adversários da credibilidade institucional do STF está, curiosamente, um dos seus próprios ministros: sobreviver a Gilmar Mendes é um desafio do cotidiano do STF. Requer do tribunal uma estratégia de redução de danos. Mas o STF permanece rendido e incapaz de controlar as contínuas quebras do decoro judicial.
A política de Gilmar Mendes
As relações de Gilmar Mendes com a política não são novas, nem causam mais espanto. O ministro transita com desenvoltura, em ambientes públicos e privados, com correligionários partidários. Gilmar Mendes, juiz, tem correligionários. Políticos que orbitam no seu círculo lhe pedem favores no tribunal, lhe consultam sobre problemas jurídicos pessoais ou sobre os rumos constitucionais do país, em encontros privados fora do tribunal ou telefonemas. Negociar, prometer apoio, organizar jantares em casa, freqüentar jantares dos outros. O ministro é presença constante nos “círculos de comensais de banquetes palacianos”, nas palavras de Rodrigo Janot. Corteja o poder político, e o poder político o corteja. Há reciprocidade.
A história é extensa, mas não custa recapitular alguns exemplos de promiscuidade. Michel Temer, Aécio Neves, José Serra, Blairo Maggi, Eduardo Cunha são algumas das autoridades públicas que lhe freqüentam, antes e depois que tiveram suas reputações gravemente atingidas por denúncias de corrupção.
O episódio mais recente relaciona-se a Aécio Neves, até então presidente do PSDB e segundo colocado nas eleições presidenciais de 2014. Aécio telefonou para Gilmar Mendes, um dia depois de este ter suspendido o depoimento do senador à Polícia Federal. Pediu que o ministro telefonasse para o senador Flexa Ribeiro e que este votasse o projeto de lei contra o abuso de autoridade. Sem maiores solenidades ou esforço argumentativo, a assessoria do ministro publicou nota: “o ministro Gilmar Mendes sempre defendeu publicamente o projeto de lei de abuso de autoridade (…), não havendo, no áudio revelado, nada de diferente de sua atuação pública. Os encontros e conversas mantidas pelo ministro Gilmar Mendes são públicos e institucionais.”
Há um mês, Gilmar Mendes também conversou com Joesley Batista, da JBS. A conversa ocorreu no Instituto de Direito Público, escola de direito fundada pelo ministro. Como sua família vende gado para a JBS no Mato Grosso, foi alegada a suspeição num caso em que o Supremo julgava a cobrança do Funrural, fundo composto por contribuições de produtores rurais à previdência. O ministro defendeu-se: “Votei contra os meus próprios interesses econômicos, pois minha família terá de pagar a contribuição atrasada“. Admite, portanto, que teria interesses na causa, mas não se enxerga como suspeito.
A antiga relação de amizade que Gilmar Mendes tem com Sérgio Bermudes, já descrita, em 2010, por longa reportagem da Revista Piauí [1], também rendeu notícias nas últimas semanas. A concessão de habeas corpus para Eike Batista, cliente de Sérgio Bermudes, sócio de sua esposa, rendeu pedido de impedimento apresentado pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, com base em artigo do Código de Processo Civil e do Código Penal. Em outra nota pública de sua assessoria, o ministro defende-se na mesma lógica: “Cabe lembrar que no início de abril o ministro Gilmar negou pedido de soltura do empresário Eike Batista (HC 141.478) e na oportunidade não houve questionamento sobre sua atuação no caso”[2].
A normalização de Gilmar Mendes
Não nos escandalizamos mais com os escândalos de Gilmar Mendes. O juiz integra a cozinha partidária como um par. A sociedade brasileira se deixou anestesiar e passou a vê-lo como patologia menor de um sistema político que não consegue separar o público do privado. Os fatos abaixo não geraram mais do que algumas notas na imprensa. São uma pequena amostra dessa anestesia:
(i) Gilmar Mendes telefona, em fevereiro de 2015, ao governador do Mato Grosso, Silval Barbosa, depois de a polícia ter executado mandado de busca e apreensão na casa do governador. Manda um “abraço de solidariedade” e promete conversar com Toffoli;
(ii) Encontra-se, fora de agenda pública, em março de 2015, com o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, quando este já era investigado pela Operação Lava-Jato;
(iv) É organizador de Seminário Luso-Brasileiro de Direito Constitucional, em março de 2016, realizado em Portugal pelo Instituto de Direito Público, que contou com a presença de Aécio Neves e outros políticos (no calor da crise política, Michel Temer, confirmado, cancelou sua participação em cima da hora). O evento ocorreu numa hora de alta tensão da Lava Jato e seus reflexos no processo de impeachment, logo depois que Gilmar Mendes, em liminar monocrática, invalidou nomeação de Lula para o ministério de Dilma. O mesmo IDP, meses antes (12/2015), inaugurava escola de direito em São Paulo com presença de muitos políticos, como Michel Temer, recebidos no palco por Gilmar Mendes. Michel Temer, mais uma vez, estará presente num seminário do IDP nos dias 20 e 21 de junho, evento patrocinado pela Caixa. Poucos dias antes, o TSE, sob a presidência de Gilmar Mendes, reinicia o julgamento que põe em risco o mandato do presidente.
(v) Almoça, em março de 2016, com José Serra e Armínio Fraga. Horas mais tarde, julga no STF o rito do impeachment, com declarações inflamadas contra a corrupção de um partido político que não lhe agrada, que pouco tinham a ver com o mérito daquele processo. Questionado sobre o episódio, respondeu: ‘Não estou proibido de conversar com Serra, nem com Aécio”.
(vi) Alguns jantares: a) em sua própria casa, com pecuaristas, o Ministro da Agricultura Blairo Maggi, e o vice-presidente Michel Temer, que manifestava ali a vontade de que o impeachment de Dilma fosse antecipado (2/8/2016); b) com o presidente Michel Temer, no Palácio do Jaburu, para uma “conversa da rotina” (22/1/2017); c) em sua própria casa, numa homenagem a José Serra, investigado na Lava Jato, com presença de Michel Temer (16/3/2017);
(vi) Michel Temer, alvo de processo que pode levar à sua cassação no TSE, presidido por Gilmar Mendes, indica primo deste para diretoria de agência reguladora (14/3/2017).
Sempre que questionado, Gilmar Mendes afirma que sua isenção é inabalável, como se fosse esse o problema. Despista. Pinça alguns exemplos de decisões que tomou, supostamente, contra os próprios interesses ou contra os próprios amigos. Esses exemplos seriam as provas incontestáveis de sua integridade. Tergiversa. E se, num determinado caso, a solução juridicamente correta fosse aquela que favorecesse o interesse de seu aliado? Da mesma maneira que uma decisão que contrarie interesses de seu amigo advogado (e de sua própria esposa, sócia do advogado) não prova sua honestidade, uma decisão favorável aos mesmos interesses tampouco provaria sua desonestidade.
A mira da resposta está errada. Seu equívoco é intencional e confunde imparcialidade objetiva e subjetiva: sabe que os mecanismos legais de suspeição e impedimento não servem para garantir o juiz honesto, mas para assegurar a imagem de imparcialidade da justiça e afastar qualquer desconfiança quanto à legitimidade da decisão. É preciso parecer honesto e imparcial, como a mulher de César. Trata-se de regulação elementar de conflitos de interesse a partir de parâmetros republicanos. Gilmar Mendes não respeita parâmetros republicanos.
Suas respostas insistem nesta falácia. No último não-escândalo, Aécio Neves lhe telefona para pedir um favor político. Há detalhes que não são meros detalhes. Um ministro de corte suprema trava conversa privada com senador da república para tratar de um projeto de lei em tramitação. Um senador investigado por corrupção solicita ao ministro que, na sua condição de ministro, ligue para outro senador para pedir apoio. Que o ministro faça, em outras palavras, articulação parlamentar. O pedido é bem recebido. Quando, em sua defesa, diz que seus posicionamentos sobre a respectiva lei já eram públicos e conhecidos, quer obscurecer a distinção primária entre o público e o privado, entre a pessoa privada e a pública, entre o juiz e o parlamentar.
A normalização de Gilmar Mendes não é só de Gilmar Mendes. Já não conseguimos ver diferença relevante entre os parâmetros de conduta de um juiz, de um político e de um cidadão comum. Paga-se caro por isso. O ministro fez de si um expoente daquilo que, retoricamente, mais abomina: uma corte bolivariana. Ele mesmo, por um irônico lapso, pinta o seu auto-retrato: “Tudo que vem desse eixo de inspiração bolivariano não faz bem para a democracia”.
A pedagogia de Gilmar Mendes
Há quem eduque pelo exemplo. Gilmar Mendes educa pelo contraexemplo. Oferece uma ética negativa: uma longa lista sobre o que não fazer. Filósofos que navegam pela ética aplicada e formulam parâmetros para lidar com dilemas morais de nossa vida cotidiana são muitas vezes agnósticos e minimalistas sobre a decisão correta a tomar. Diante da complexidade do contexto e das nuances de cada caso, sentem-se mais seguros em apontar o que não fazer. Essa é a contribuição pedagógica de Gilmar Mendes: sua conduta é uma cartilha da anti-ética.
Nem sempre é fácil saber qual a conduta judicial correta em situações dilemáticas dentro e fora da corte, dentro e fora dos autos, dentro e fora da interpretação constitucional. Há imensa riqueza no comportamento de Gilmar Mendes. Seus contra-ensinamentos são valiosos.
Os atos listados acima não são deslizes isolados ou eventuais. Trata-se de sistemática e periódica desconsideração de princípios de prudência e respeito à liturgia do cargo, indispensáveis à construção da imparcialidade e respeitabilidade da atividade judicial. Juízes não estão proibidos de ter amigos, de ter vida social intensa, de viverem uma vida normal. No entanto, a ética da atividade judicial pede vigilância a certos comportamentos, um senso de responsabilidade pelo ethos de sua instituição. Nada excessivamente oneroso.
Gilmar Mendes não é “polêmico”, nem “controverso”, nem “corajoso”. Eufemismos jornalísticos apenas obscurecem o problema. O direito não é indiferente a antiética de Gilmar Mendes: seu comportamento é ilegal.
A responsabilidade por Gilmar Mendes
Apesar de Gilmar Mendes, o Supremo ainda sobrevive. Sua sobrevivência como ator político relevante, contudo, não está garantida. O grau de relevância do tribunal já está sob teste. Ou, num jargão da ciência política, “sob estresse”. O ministro é um dos principais artífices da ingovernabilidade do STF: joga contra a imagem da instituição, contra o plenário e contra seus colegas juízes. Violenta a imparcialidade, moeda volátil da qual uma corte com tamanha missão tanto depende.
O colegiado é corresponsável pelos danos causados por Gilmar Mendes. O ministro não é só um problema “para” o Supremo, mas um problema “do” Supremo, que permanece omisso. Entrega ao ministro um cheque em branco. Não bastasse ter adversários demasiado poderosos para enfrentar, o Supremo ainda faz vista grossa para a conduta destrutiva de um de seus membros. Um inimigo íntimo como esse exige coragem e articulação para enfrentá-lo. O plenário deixa-se apequenar na cumplicidade, e deve prestar contas com a democracia brasileira por isso. O Supremo não pode se submeter a esse pacto suicida. Sabe disso.
O que fazer para se proteger de Gilmar Mendes? Um passo modesto, para quebrar a inércia normalizadora da sua conduta, seria reconhecer a suspeição do ministro em tantos casos em que sua persona política não tem como não se confundir com sua persona judicial. Por mais que o ministro prometa ser isento. Por mais que seja sincero.
Um dos maiores desafios de desenho institucional de uma corte suprema é prover formas de auto-regulação coletiva dos desvios individuais. Num órgão colegiado desse tipo, a colegialidade é indispensável. Não há instância superior que o limite. Talvez por insolúvel do ponto de vista procedimental, o desafio não foi inteiramente equacionado nem pelos Federalistas americanos nem por arquitetos das cortes constitucionais do séc. XX. A leniência institucional diante do desvio individual pode ser uma escolha racional quando a instituição permanece acima de qualquer suspeita. No Supremo, esse não é mais o caso. O espectro da desobediência ronda a corte faz tempo.
Uma corte constitucional precisa, em tempos de normalidade, acumular capital político para proteger a constituição nas situações-limite da política. De sua habilidade para desarmar dinamites depende a qualidade e longevidade da democracia. É urgente desarmar Gilmar Mendes.
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[1]Em carta à Revista Piauí, reagindo às denúncias feitas pela reportagem sobre a relação sua e de sua mulher com Sérgio Bermudes, Gilmar Mendes respondeu: “Aliás, ela era tão somente gestora organizacional do escritório do dr. Sergio Bermudes, mais um entre tantos advogados que atuam em processos sob a minha relatoria que examino com a mesma isenção.”
[2]Pedido de impedimento de Gilmar Mendes por Rodrigo Janot diante do fato de que sua esposa é sócia de Sérgio Bermudes (10/5/2017)
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Conrado Hübner Mendes - Professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP. Doutor em direito pela Universidade de Edimburgo e doutor em ciência política pela USP. Foi HLA Hart Fellow na Universidade de Oxford. É Embaixador Científico da Fundação Alexander von Humboldt no Brasil.
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