segunda-feira, 12 de junho de 2017

Zizek: Segredo do sucesso de Corbyn está em rejeitar a cultura do 'politicamente correto' tanto quanto o populismo incendiário

12/6/2017, Slavoj Zizek, The Independent












O inesperado sucesso eleitoral do Partido Trabalhista cobriu de ridículo a 'sabedoria' cínica predominante dos entendidos, inclusive dos que fingiam simpatias por Corbyn e cuja desculpa preferida era "Sim, vou votar nele, nas sei que é inelegível, as pessoas são manipuladas demais e covardes demais, o momento não é adequado para jogada tão radical".

Lembrem-se do que dizia Tony Blair, que sob a liderança de Corbyn o Partido Trabalhista ficava irremediavelmente marginalizado, perdia condições e deixava de ser potencial partido de governo? A hipocrisia desses comentários está em que mascaram a própria posição do 'comentador', de visão resignada ante o estado objetivo das coisas.

Claro que há problemas e dúvidas que persistem. Não basta confrontar só as limitações do programa de Corbyn – ainda que só se aproxime do velho estado de bem-estar, o governo Trabalhista sobreviverá ao massacre pelo capital global? Em nível mais radical, ninguém deve ter medo de levantar a questão chave: a vitória eleitoral será ainda o momento chave de mudança social radical? Estamos testemunhando a crescente irrelevância de nosso processo eleitoral?

Mas o que importa, além do resultado real, é a significação mais profunda do sucesso (relativo) do Partido Trabalhista. Esse sucesso indica grande mudança ética e política, movimento forte contra a vulgarização do discurso público. O problema aqui é o que Hegel chamou de Sittlichkeit [al. no orig. "vida ética"/"ordem ética"]: mores [lat. no orig.], o pano de fundo e contexto denso das regras (não escritas) da vida social, a densa e impenetrável substância ética que nos diz o que podemos e o que não podemos fazer.

Hoje, essas regras estão em desintegração: o que era simplesmente impronunciável num debate público há algumas décadas pode ser dito hoje impunemente. Trump pode falar sobre flatulência de Melania e dizer que "tortura funciona", Netanyahu pode dizer que os palestinos são a causa do Holocausto, populistas europeus podem dizer que o fluxo de refugiados é comandando por judeus e por aí vai.

Mas por que falar de polidez e boas maneiras públicas hoje, quando enfrentamos o que parecem ser problemas muito mais "reais"? Ao fazê-lo, não estaremos de volta ao nível da reflexão famosa de Thomas De Quincey sobre a arte simples do assassinato: "Quanta gente começou desencadeando terror e catástrofes econômicas, e terminou se comportando mal numa festa?" Mas as maneiras sim, importam – em situações de alta tensão são questão de vida ou morte, uma linha tênue que separa a barbárie, da civilização.

Lá pelos anos 1960s, vulgaridades ocasionais eram associadas à esquerda política: estudantes revolucionários frequentemente usavam linguagem chula, para marcar o contraste entre eles e os políticos oficiais, com aquele jargão culto. Hoje, a linguagem chula é prerrogativa quase exclusiva da direita radical. Desse modo, a esquerda vê-se na estranhíssima posição de defensora das boas maneiras e da decência públicas.

Infelizmente, o espaço público esquerdista-liberal está também mais ou menos dominado pelas regras da cultura de Twitter: respostinhas curtas, na bucha, comentários sarcásticos ou de extremo ultraje, sem espaços para vários passos numa mesma linha de argumentação. Uma passagem (uma sentença, ou até só um pedaço de sentença) é interrompida e vem a reação a ela. A base desses tuitadores é um mix de arrogância, politicamente-corretice e o sarcasmo mais brutal: no instante em que absolutamente não se veja coisa alguma que soe problemática, a resposta é disparada automaticamente, quase infalivelmente um clichê politicamente correto.

Por mais que críticos gostem de destacar como rejeitariam qualquer normatividade ("a norma heterossexual socialmente imposta" e coisa-e-tal), a posição lá é da mas cruel normatividade, denunciando qualquer mínimo desvio do dogma politicamente-correto como "transfobia" ou "fascismo" e seja o que for. Essa cultura de tuíto, que combina tolerância oficial e abertura, com extrema intolerância ante qualquer visão diferente, torna o pensamento crítico simplesmente impossível. É uma verdadeira imagem especular da ira populista cega à moda Donald Trump, e é simultaneamente uma das razões pelas quais a esquerda é com tanta frequência ineficiente no combate ao populismo direitista, especialmente na Europa contemporânea. Se alguém sugere que esse populista extrai boa parte de sua energia do descontentamento popular dos explorados, imediatamente se é acusado de "essencialismo de classe".

Contra esse pano de fundo é que se devem comparar as campanhas eleitorais, de Conservadores e Trabalhistas. A campanha Conservadora foi a pior da história das campanhas eleitorais no Reino Unido: ataques para semear o pânico, apresentaram Corbyn como simpatizante do terrorismo, o partido Trabalhista como enxame de antissemitas, e tudo isso culminou com Theresa May gaiatamente prometendo acabar com todos os direitos humanos – política para meter medo como jamais se viu. Não supreendentemente, o Partido Independente (UKIP) sumiu da cena: ninguém precisou dele, porque May e Johnson assumiram o mesmo servicinho.

Corbyn recusou-se a se deixar apanhar nesse jogos sujos: com absoluta sinceridade, simplesmente falou dos principais problemas e questões da vida das pessoas comuns, de inimigos econômicos a ameaça terrorista, propondo contramedidas bem claras. Nas falas de Corbyn nunca havia nem ira nem ressentimento, nada de incendiar as massas, mas, tampouco, nada da arrogância dos politicamente-corretos. Simplesmente se dedicou às preocupações de pessoas comuns, com uma mesma decência partilhada.

O fato de que essa abordagem seja nada menos que profunda mudança no nosso espaço político é triste sinal dos tempos em que vivemos. Mas é também nova confirmação da velha lição de Hegel, segundo a qual, às vezes, a mais franca sinceridade é a mais sábia e devastadora de todas as estratégias.*****





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