quarta-feira, 30 de março de 2016

"Guerras Híbridas" 2. Testar a teoria – Síria & Ucrânia


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O livro do autor, "Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach To Regime Change" (disponível em PDF, grátis, ing. aqui) ["Guerras Híbridas" - Abordagem adaptativa pós-tudo da 'mudança de regime'], expõe exaustivamente a teoria e demonstra que Síria e Ucrânia são as primeiras vítimas da Guerra Híbrida dos EUA, mas o objetivo do artigo é mostrar como as inovações mencionadas antes e não incluídas na publicação original sempre foram casos exemplares, desde o início.
O objetivo imediato é provar que facetas recém descobertas integram-se perfeitamente, sem necessidade de qualquer 'ajuste' na teoria geral, e ampliam a compreensão da hipótese básica, como resultado, o que permite que analistas bem informados consigam projetar mais acuradamente as batalhas futuras pelas quais, com mais alta probabilidade, se travarão as futuras Guerras Híbridas.
Essa parte da pesquisa portanto acompanha o modelo teórico exposto antes, dado que elabora sobre os determinantes geoestratégico-econômicos que sempre houve por trás das guerras contra a Síria e a Ucrânia, antes de examinar as vulnerabilidades sociopolíticas estruturais que os EUA tentaram explorar (com diferentes graus de sucesso). A parte final incorpora a ideia de precondicionamento social e estrutural, e discute rapidamente o modo como apareceu em cada caso.

Determinantes Geoestratégicos

Síria:

A tradicionalmente secular República Árabe Síria foi sugada para dentro do amplo teatro do esquema das "Revoluções Coloridas" dos EUA, quando a "Primavera Árabe" foi lançada em 2011. 

Resumindo bem concisamente os fundamentos estratégicos dessa operação grandiosa: os EUA tinham de ajudar a claque transnacional chamada "Fraternidade Muçulmana" a chegar ao poder da Argélia à Síria, mediante uma série sincronizada de operações de mudança de regime contra estados rivais (Síria), parceiros não confiáveis (Líbia), e estados seus procuradores estratégicos, nos quais a transição na liderança já aparecia como inevitável (Egito, Iêmen). 

O ambiente estratégico resultante deveria assemelhar-se à Europa Oriental do Pós-guerra: todos os estados governados por um mesmo partido (Fraternidade Muçulmana, agora; como o Partido Comunista, antes) e controlados à distância por patrão externo, no caso atual um condomínio liderado por Turquia e Qatar, com os EUA na posição deLiderar pela Retaguarda.

Essa 'confederação' ligada por elos ideológicos frouxos seria suficientemente desconexa para ser manobrável mediantes táticas simples de dividir-para-governar (o que impediria os estados de algum dia se organizarem contra a Arábia Saudita e os Estados do Golfo), mas facilmente provocável por ódios sectários para mobilizar-se contra o Irã e respectivos interesses regionais. Assim, a 'confederação' se converteria em ferramenta altamente manobrável para promover a grande estratégia dos EUA no Oriente Médio. 

Dadas as origens caóticas desse gambito geopolítico, previu-se que só alguns elementos se desenvolveriam exatamente conforme o plano, e que, na primeira tentativa, realisticamente avaliada, só parte do projeto chegaria a bom termo. Foi precisamente o que se viu, quando o povo sírio levantou-se contra o assalto de Guerra Híbrida que sofria e lutou corajosamente em defesa de seu estado e de sua civilização seculares.

Pode-se argumentar que a Síria sempre foi vista como o prêmio de mais alto valor estratégico de todos os estados afetados pela "Primavera Árabe", o que se comprova pela Guerra Híbrida desesperada de quase cinco anos que os EUA fizeram contra a Síria, a partir do instante em que sua tentativa inicial de golpe para 'mudança de regime' fracassou naquele país. 

Em comparação, o Egito – o mais populoso estado árabe –, desde que derrubou o governo da Fraternidade Muçulmana imposto lá pelos EUA, só teve de enfrentar terrorismo de baixo nível gerenciado pelo Qatar no Sinai.

A razão dessa flagrante discrepância entre a importância relativa dos objetivos da grande estratégia dos EUA num e noutro caso parece estar nos determinantes geoeconômicos por trás da guerra dos EUA contra a Síria, que serão expostos adiante.

Ucrânia:

Os determinantes geoestratégicos por trás da Guerra contra a Ucrânia são muito mais claros e diretos ao ponto que os que há por trás da Guerra contra a Síria, e já foram comentados antes, quando falei do estratagema que chamo de " Brzezinski Reverso" de armadilha geopolítica. Parte da motivação do golpe que derrubou o governo a Ucrânia e dos subsequentes pogroms antirrussos foi tentar atrair a Rússia para dentro da armadilha intervencionista à moda Afeganistão-1979. E a Guerra contra o Donbass foi epítome dessa tentativa. 

Washington não conseguiu esse objetivo, mas foi muito mais bem-sucedida no serviço de converter todo o território da Ucrânia numa arma geopolítica contra a Rússia.


Brzezinski disse, incansavelmente citado, que "Sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser império eurasiano" e, embora tivesse na cabeça, como ponto de partida, concepção inteiramente diferente (pensava que a Rússia tentaria "ressovietizar imperialmente" a região), a frase contém, sim, muita verdade fundamental. A segurança nacional da Federação Russa é, em vasta medida, determinada por eventos na Ucrânia, especialmente porque se relaciona à sua ampla periferia ocidental. Um governo hostil em Kiev que aceite hospedar a infraestrutura dos "mísseis de defesa" dos EUA (o que é realmente forma eufemística de dizer "que aumente as chances de os EUA conseguirem neutralizar a capacidade da Rússia para um segundo-ataque, e assim a pôr em posição de alvo de chantagem nuclear) sempre será grave ameaça estratégica.

Reescrevendo a frase de Brzezinski, para fazê-la objetivamente mais acurada – "Se o 'ocidente' conseguir manipular com sucesso a Ucrânia, e fazer dela inimiga de longo prazo da Federação Russa, nesse caso Moscou estará diante de considerável obstáculo às suas futuras ambições multipolares". 

O terrível cenário de a Ucrânia hospedando unidades dos "mísseis de defesa" de EUA ou OTAN já existe, mas ainda não se configurou completamente; e o país continua a andar na direção de ser membro "sombra" da OTAN (é partede facto da organização, sem as garantias formais de defesa mútua). A crescente operação militar entre Kiev e Washington e, por extensão, entre a Ucrânia e o bloco, ergue-se sobre a premissa de uma manobra agressiva contra interesses estratégicos da Rússia. 

Mesmo assim, as coisas não estão tão ruins quanto poderiam estar, porque os estrategistas norte-americanos supuseram, ingenuamente, que o Pentágono hoje já teria pleno controle da Crimeia e, assim, que teria posicionado suas unidades "de mísseis de defesa" e outras tecnologias de desestabilização bem ali, ao pé da porta da Rússia. 

A falácia máxima no pensamento do 'ocidente' nos preparativos para a Guerra Híbrida foi pressupor que a Rússia recuaria e não defenderia ativamente seus interesses civilizacionais, humanitários e geoestratégicos na Crimeia (ou então, se avançasse, que seria apanhada num atoleiro tipo "Brzezinski Reverso"). Tudo isso, como a história mostra hoje, foi erro de proporções épicas, dos piores que os EUA jamais cometeram.

Determinantes Geoeconômicos 

Síria:

A Síria é tão significativa dentro da grande estratégia dos EUA naquele momento, porque ali se instalaria o terminal final do Gasoduto da Amizade partilhado entre Síria, Irã e Iraque. Essa rota para trânsito de gás garantiria ao Irã acesso ao mercado europeu e anularia completamente todo o regime de sanções que os EUA haviam construído contra a Síria. Contemporâneo desse, havia projeto para outro gasoduto, concorrente, do Qatar, para mandar seu próprio gás através de Arábia Saudita, Jordânia, Síria e dali para a União Europeia, ou como gás natural liquefeito ou via a Turquia. 

O presidente Assad inteligentemente rejeitou a proposta do Golfo, e manteve-se fiel ao Irã, há muito tempo confiável aliado dos sírios. E então começou a Guerra contra a Síria, na sequência de uma Guerra Híbrida "pós 'Primavera Árabe'" e apoiada furiosamente pelos EUA e Estados do Golfo, especificamente para punir o país por se recusar a converter-se em satélite unipolar.

Nesse mapa, o "Gasoduto da Amizade" é chamado "Gasoduto Islamista".

Se tivesse sido concluído, o Gasoduto da Amizade seria um dos mais importantes projetos multipolares transnacionais conectivos do mundo, porque teria revolucionado a geopolítica regional, garantindo um corredor de energia e de investimentos que ligaria o Irã à União Europeia. Realmente provocaria significativa alteração no equilíbrio de poder do Oriente Médio, e em detrimento dos EUA e de seus aliados do Golfo. 

Percebendo a grave ameaça que o Gasoduto da Amizade impunha contra a sua dominação hegemonista de décadas na região, os EUA passaram a empenhar-se violentamente para que aquele gasoduto jamais viesse a ser construído, em nenhum caso e em tempo algum. Essa é uma das razões parciais que explicam criação do ISIL enfiado ali, exatamente no meio do que seria "zona de trânsito" do gasoduto. 

Analisadas as coisas desse ponto de vista, vê-se muito mais claramente por que os EUA sempre dariam prioridade a desestabilizar a Síria, não o Egito. Vê-se também, por que sempre estarão dispostos a jogar ali recursos inumeráveis, além de terem organizado uma coalizão global para agir em seu nome, à distância, para ajudá-los na empreitada.

Ucrânia:

A determinação com que os EUA atiraram-se para capturar a Ucrânia foi inspirada por muito mais que só pensamento estratégico, porque aqueles imperativos estavam em intersecção com realidades geoeconômicas contemporâneas. 

Quando a campanha de terrorismo urbano conhecida como "EuroMaidan" foi iniciada, a Ucrânia foi empurrada pelos EUA para uma "escolha civilizacional" artificial entre a União Europeia e a Rússia. 

Moscou há tempos trabalhava para fazer avançar três projetos multipolares transnacionais conectivos – vender gás e petróleo para a União Europeia, a União Eurasiana e a Ponte Terrestre Eurasiana [ing. Eurasian Land Bridge] (projetos respectivamente de energia, institucional e econômico) – que Washington ansiava por enfraquecer a qualquer custo. 

Relembrando o dito de Brzezinski acima citado sobre a Ucrânia, e a mesma frase como a reconstruímos acima, as palavras, sim, fazem muito mais sentido, porque sem a Ucrânia como parte da rede russa de projetos interconectados, o todo torna-se muito mais fraco, do que com a Ucrânia.

Dado que a Ucrânia tem a ver com cada um dos projetos, a remoção do país, da grande equação: obstrui o comércio de energia Rússia-União Europeia e cria complicações não previstas para os dois lados; deixa de fora do alcance da união aduaneira um mercado e uma força de trabalho consideráveis; e impõe que toda a infraestrutura seja reorientada para a Bielorrússia, relativamente menor e menos economicamente relevante, a qual assim passa a ser gargalo geopolítico ainda maior que o anterior, nos esquemas anti-Rússia do 'ocidente'. Como 'benefício' extra na operação de roubar a Ucrânia da órbita integracional russa, os EUA conseguiram pôr em movimento uma cadeia de eventos tematicamente preconcebidos (exceto, é claro, a reunificação da Crimeia) que instigou a Nova Guerra Fria que os EUA tanto ansiavam por disparar.


Os EUA quiseram fazer o que fizeram, com vistas a criar obstáculos insuperáveis entre Rússia e União Europeia, sabendo que os esperados dilemas de segurança (em termos militares, de energia, econômicos e estratégicos) impediriam dramaticamente qualquer cooperação entre os russos e Bruxelas. E deixariam Bruxelas ainda mais vulnerável e passível de deixar-se sugar para o massivo jogo de poder unipolar que os EUA planejavam. 

Para manter sua posição de hegemonia sobre a Europa, os EUA tiveram de arquitetar um cenário que separasse Rússia e União Europeia por tempo bastante com intensidade suficiente que permitissem inflar as chances de os EUA conseguirem impor à Europa os seguintes três projetos categóricos de controle: alocação permanente da OTAN, em prontidão (militar) no leste; exportações do gás natural liquefeito dos EUA para a União Europeia e o apelo novamente atraente de rotas não russas como o Corredor de Gás Sul (energia); e o Tratado da Parceria de Comércio e Investimentos Transatlântico (ing. TTIP), o qual, dentre outros privilégios que reserva aos EUA, passa a impedir que a União Europeia firme quaisquer outros Acordos de Livre Comércio (ing. FTAs) sem autorização (econômica) de Washington.

Somados, esses três fatores interconectados visam a promover os maiores os objetivos estratégicos dos EUA, o que, pela via do inter-relacionamento de todos os projetos, aumenta as probabilidades de sucesso dos próprios objetivos estratégicos dos EUA. 

Eis aí o "choque de civilizações" artificialmente promovido entre o 'ocidente' e a Eurásia-Rússia, ante o qual os EUA contam com que a União Europeia doravante passe a tremer de medo diante da Rússia e, consequentemente, corra para os braços de Tio Sam, como o ‘defensor da civilização ocidental'. 

Esse é o plano final que os EUA querem completar na Europa, porque sua implementação bem-sucedida, acrescida de seus três componentes chaves (as facetas militar, de energia e econômica acima comentadas) criariam as condições para dominação hegemônica multigeneracional dos EUA sobre a Europa. Assim, apostando em que a contraofensiva dos multipolaristas contra os EUA fracassará completamente, estará montado um affair para durar décadas.

Vulnerabilidades sociopolíticas estruturais – Síria

Etnicidade:

No mínimo 90% da população da Síria é árabe; os cerca de 10% remanescentes são principalmente curdos. Da perspectiva da Guerra Híbrida, alguém poderia pressupor que esse tipo de quadro poderia ser útil a quem queira desestabilizar o Estado; mas vários fatores fizeram a história andar na direção do que os EUA previram que andaria. Em primeiro lugar, a população síria é patriota, por herança civilizacional e pela oposição empenhada que fazem a Israel. 

Efeito disso, por mais que haja pluralidade de opiniões políticas pessoais naquela sociedade quase monoétnica, nunca se configurou qualquer real possibilidade de que os sírios se erguessem violentamente contra o estado. Por isso, foi preciso importar quantidade tão gigantesca de mercenários e terroristas internacionais para o campo de batalha, de modo a cumprir a 'exigência' de 'levante popular contra o governo', do manual das guerras híbridas.


Quanto aos curdos sírios, jamais tiveram história de rebelião contra o governo, diferentes dos curdos turcos e iraquianos. O que se vê por aí é que o estado de coisas na Síria era administrável e de modo algum, nem se aproximava disso, correspondia ao que os veículos de informação ocidentais tentam pintar, em retrospectiva, que teria sido. Ainda que os curdos sírios pudessem ser arregimentados numa massa de radicais antigoverno, eles cumprem papel relativamente menor nas questões nacionais; e a distância geográfica em que vivem de centros relevantes de poder não fazia deles 'candidatos' a agentes locais de Guerra Híbrida. Mesmo assim, poderiam chegar a ser item estratégico suplementar para quaisquer terroristas árabes vizinhos dos seus centros populacionais primários. 

Mas, como se sabe, os curdos permaneceram leais a Damasco e não romperam com o governo, o que confirma ainda mais a tese de que estavam satisfeitos com o status original deles, sem qualquer interesse em se deixar converter em "rebeldes".

Em suma, os componentes étnicos do planejamento para Guerra Híbrida dos EUA não corresponderam ao que deles se esperava, o que indica que as avaliações de inteligência pré-guerra foram fortemente distorcidas, ao subestimar a força agregadora do patriotismo sírio.

Religião:

A população da Síria é predominantemente sunita, mas há também uma importante minoria alauíta que tradicionalmente ocupa posições de destaque no governo e nas forças armadas. Nada disso jamais foi problema antes, mas o precondicionamento gerenciado de fora do país (nesse caso, organizado pelos Estados do Golfo) induziu partes da população ao pensamento sectário e começou a construir, em termos psicológicos, a crescente tensão relacionada aos takfiri, que deitou raízes entre alguns sírios depois que o estágio da Revolução Colorida começou, no início de 2011. Depois disso, mesmo que o sectarismo jamais antes tenha sido fator ativo na sociedade Síria e, mesmo hoje, ainda não é grande força (apesar de quase cinco anos de provocações terroristas "religiosamente" orientadas), ele seria usado como palavra de ordem para acelerar o recrutamento de jihadistasestrangeiros, e como cobertura 'plausível' para que EUA e aliados se pusessem a alegar que o presidente Assad não 'representa o povo' e, 'portanto', deve ser derrubado.

História:

A Síria tem história milenar e sempre foi uma das mais ricas civilizações de todos os tempos. Consequentemente, os cidadãos sírios são imbuídos de inabalável senso de patriotismo que, como adiante se constataria, foi das mais impenetráveis defesas que a Guerra Híbrida jamais encontrou pela frente: a solidariedade civilizacional. Claro que esse traço foi observado pelos estrategistas norte-americanos nas pesquisas pré-guerra que fizeram sobre a Síria; mas tudo sugere que tenham subestimado a importância dele. Aparentemente convenceram-se de que, sim, conseguiriam fazer voltar os tempos da pós-independência, de golpe após golpe e de crescente desestabilização, antes do governo do falecido Hafez Assad. 

Diferente contudo do que os EUA gostariam de ver, a maioria do povo sírio aprendeu a apreciar sinceramente as contribuições da família Assad à estabilidade e ao sucesso da Síria, e de modo algum quereriam ver o país devolvido aos anos obscuros que precederam a ascensão política da família Assad.


Administração

O curto período em que a Síria foi dividida por zonas administrativas separadas durante a ocupação francesa serviu como precedente geopolítico para que os EUA forçassem a ressurreição de uma divisão 'federal' do território sírio. Ainda que a memória histórica daquele tempo esteja em grande medida perdida na psique dos sírios contemporâneos (exceto pela bandeira da era do Mandato, que representa terroristas antigoverno), não significa que seja impossível reforçar externamente os restos de memória que haja para arquitetar uma "justificativa histórica", depois do fato consumado. 

A intervenção dos russos antiterroristas na Síria neutralizou a possibilidade de o país ser formalmente fragmentado, mas a atual Batalha por Raqqa significa que a força que captura a 'capital' dos terroristas terá as melhores cartas para determinar a configuração interna do Estado pós-guerra, abrindo a possibilidade de que os EUA e seus operadores à distância venham a forçar uma 'solução' federalizada para a Síria, que poderia vir a criar zonas de apoio pró-EUA bastante autônomas.

Disparidade Socioeconômica:

A Síria pré-guerra tinha distribuição relativamente equilibrada de indicadores socioeconômicos, apesar de seguir a 'regra' globalmente estereotipada, de áreas urbanas mais desenvolvidas que áreas rurais. A maior parte da área geográfica do país são áreas rurais, onde habita fração mínima da população; a maior parte dos sírios vive ao longo do corredor norte-sul de Aleppo-Hama-Homs-Damasco, ao mesmo tempo em que população estrategicamente importante também vive na província costeira de Latakia. 

Até 2011, a Síria viveu anos de crescimento econômico contínuo, e nada sugere que essa tendência seria alterada, se não tivesse acontecido a Guerra Híbrida contra o país. Apesar de evidentemente haver disparidades socioeconômicas na Síria de antes da guerra, elas estavam sendo adequadamente administradas pelo governo (em parte graças às características semi-socialistas do Estado) e não configuravam um fator que os EUA pudessem explorar.

Geografia Física:

Essa foi a única característica que realmente operou a favor dos objetivos da Guerra Híbrida contra a Síria. O componente "Revolução Colorida" ficou concentrado nas áreas do corredor norte-sul já referido; e o componente Guerra Não Convencional foi ativado nas regiões rurais distantes desse corredor. As autoridades, compreensivelmente, tiveram dificuldade para manter o equilíbrio entre as exigências de segurança urbana e rural; e a quantidade absurda de apoio que os EUA e seus aliados do Golfo estavam canalizando para os terroristas via Turquia desequilibraram os recursos militares e resultaram no impasse que marcou os primeiros poucos anos do conflito (com algumas dramáticas idas e vindas numa direção ou outra, de tempos em tempos). 

Com esse quadro configurado, e o Exército Árabe Sírio focado nas pesadas questões de segurança que o desafiavam ao longo do corredor mais densamente habitado, o ISIL conseguiu avanços militares rápidos nas planícies e desertos do leste, e rapidamente instalou seu "califato'; as consequências desses eventos ainda determinam, até hoje, o curso dos eventos no país.

Vulnerabilidades sociopolíticas estruturais – Ucrânia

Etnicidade:

A divisão demográfica da Ucrânia entre o Leste e o 'ocidente', entre russos e ucranianos, é bem conhecida e já foi demoradamente discutida. No contexto de Guerra Híbrida, essa distribuição geográfica quase perfeitamente cindida (exceto Odessa, onde se vê pluralidade russa; e a maioria de russos, na Crimeia) foi como presente dos céus para os estrategistas norte-americanos, porque criou uma complexa dicotomia demográfica que poderia ser facilmente explorada, quando chegasse a hora.

Religião:

Aqui também há divisão quase perfeita entre Leste e 'ocidente', com as igrejas Ortodoxa Russa e Ortodoxa Ucraniana representando dois grupos críticos em que se divide o país. No setor oeste há a "Igreja Católica de Kiev, também chamada "Uniata" e a Igreja Católica Romana, correspondendo quase completamente com as terras da Segunda República da Polônia do período entre as guerras mundiais. O sectarismo cristão não era o que mais se evidenciava como palavra de ordem por trás do movimento EuroMaidan, mas os radicais desse grupo usaram o sucesso do golpe como pretexto para destruírem igrejas russo-ortodoxas e outros templos de outras religiões, numa campanha nacional orientada para promover, contra a população russa, o que se caracterizou como ação de limpeza étnica e cultural.

História:


O moderno estado ucraniano é um amálgama artificial de territórios doados à Ucrânia por sucessivos governantes russos e soviéticos. Essas origens inerentemente artificiais é como uma 'maldição' que pesa perpetuamente sobre o país, como se sua própria existência foi sempre questionável; e o aumento territorial resultante da 2ª Guerra Mundial complicou ainda mais essa situação. A parte mais nacionalista do que é hoje a Ucrânia sempre foi parte da Polônia no período entre guerras; e, antes disso, do Império Austro-Húngaro. Nessas circunstâncias, os habitantes dessas regiões sempre tiveram memória histórica absolutamente diferente da que caracterizava as porções central e ocidental do país.

As comunidades minoritárias húngara e romena que vivem nas áreas recentemente acrescentadas (compradas da Tchecoslováquia e da Romênia respectivamente) também cultivam grau natural de uma identidade 'separatista' em relação ao estado ucraniano, que só precisou de um 'empurrão' externo na direção da desestabilização, para que surgisse com toda a fúria à superfície.

Como escrevi no meu livro "Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach To Regime Change" (disponível em PDF, grátis, ing. aqui) e matéria da revista Newsweek confirmou dias antes do golpe (a matéria foi, muito suspeitamente,deletada do website da revista, mas aparece referenciada em web.archive.org), a cisão etnorreligiosa histórica característica da Ucrânia Ocidental manifestou-se repentinamente em rebelião armada de grande escala contra o presidente Yanukovich; e não pode ser coincidência que o aspecto de Guerra Não Convencional desse caso de campanha para mudança de regime tenha começado precisamente nessa parte do país.

Fronteiras administrativas:

As divisões internas na Ucrânia coincidem quase perfeitamente com as fronteiras administrativas do país, em várias ocasiões e sob diferentes critérios – seja na divisão por etnias, no sectarismo cristão, nas regiões históricas ou nos resultados eleitorais –, traço que serviu como fator multiplicador de assimetrias que convenceu os estrategistas norte-americanos de que a Guerra Híbrida facilmente se desdobraria na Ucrânia. Não fosse pelo inesperado golpe no final de fevereiro de 2014, é muito provável que os EUA tivessem buscado explorar uma superposição sem precedentes de vulnerabilidades sociopolíticas que se apresentava na Ucrânia, para separar fisicamente a parte ocidental do país e o restante do estado pró-governo, mas só se Yanukovich tivesse conseguido manter-se no poder indefinidamente, resistindo contra os terroristas agentes da mudança de regime e consolidasse seu poder nas áreas do país não controladas pelos "rebeldes".

Mapa: Resultados eleitorais na Ucrânia, 2010 (eleições presidenciais)

Disparidade socioeconômica:

A Ucrânia assemelha-se à Síria no sentido de que também tinha indicadores socioeconômicos quase igualmente distribuídos, mas, diferente da República Árabe e sua riqueza modesta, o estado do leste europeu distribuía miséria, igualitariamente entre seus cidadãos. A quantidade enorme de ucranianos que viviam em situação de miséria ou próximos disso criou campo imenso de recrutamento de 'ativistas' antigoverno, a serem 'catequisados' pelos cérebros das ONGs da Revolução Colorida EuroMaidan. E a ausência de qualquer autoconsciência civilizacional ou nacional (de nacional, só se viu a perversão fascista hardcore levada ao extremo no "Setor Direita" [Pravy Sektor] e companhia) indicava que não havia salvaguardas dentro da própria sociedade que impedissem que se organizassem antecipadamente as agitações de rua, que puderam esperar até que chegasse a hora 'certa'.

Geografia Física:

A única parte diferenciada da Ucrânia quase toda ela padronizada de pré-guerra era a Crimeia, que funcionava mais como uma ilha do que como a península que tecnicamente é. Ironicamente, esse traço operou gravemente como desvantagem para os EUA quando a geografia favorável da república autônoma ajudou os habitantes a de defenderem por tempo suficiente até que aprovassem, em plebiscito a separação do fracassado estado ucraniano e corrigissem o erro histórico cometido por Khrushchev, voltando, afinal a se reintegrar à Rússia. Os mesmos fatores geográficos facilitadores não eram ativos no Donbass, ausência que dificultou muito a defesa pelos patriotas locais do próprio território e os deixou muito mais vulneráveis aos múltiplos ataques de Kiev contra eles. No ambiente de pré-golpe, a geografia facilmente atravessável da Ucrânia foi ideal para que os "revolucionários" ocidentais atacassem rapidamente, ao estilo dos assaltos do ISIL, em Kiev, tão logo conseguiram acumular suficientes armamentos, equipamentos e veículos roubados dos numerosos postos policiais e acampamentos militares que estavam ocupando naquele momento.

Precondicionamento

Não cabe no objetivo dessa pesquisa discutir em detalhe os aspectos de precondicionamento da Guerra Híbrida, mas, em termos gerais, pode-se assumir que mobilizam a tríade mídia de massas e mídias sociais/aparelhos de educação/ONGs. 

As especificidades do precondicionamento estrutural são diferentes, como, além da pressão pelas sanções, outros elementos importantes já comentados na Parte 1 (por exemplo: o desmonte do mercado de energia só aconteceu ano passado e, assim, não pode ser tomado como fator que tenha levado a nenhuma das duas Guerra Híbridas – Síria e Ucrânia – discutidas aqui). 

Seja como for, outros elementos sem dúvida foram postos em ação para cada um dos dois estados atacados, com os cofres da Ucrânia sangrados até o esgotamento, por corrupção endêmica e parasitária, e a Síria sempre forçada a viver num ponto de delicado equilíbrio entre suas necessidades militares para defender-se contra Israel, e os compromissos sociais do governo com a população (ato de malabarismo de trapézio, que o governo Assad conseguiu executar muito bem ao longo de décadas).*****

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