terça-feira, 6 de setembro de 2016

A Guerra do Vietnam não foi um engano, foi um crime de guerra

28.08.2016, Yale Magrass, LA Progressive


O professor Yale Magrass comenta o livro "The American War in Vietnam: Crime or Commemoration?" de John Marciano


Tradução: Thelma Annes de Araujo



John Marciano escreveu um livro absolutamente essencial para combater o mito prevalente de que a invasão americana do Vietnã deve ser comemorada como uma "causa nobre", da qual todos os americanos precisam se sentir orgulhosos. Não devemos questionar a versão de que todos os que atravessaram o Pacífico para matar e morrer, personificando a grande América, têm de ser homenageados por sua dedicação patriótica e seu sacrifício. Pelo menos desde o Vietnã, se não muito antes, a adesão às forças armadas tem sido chamada de "serviço", um ato altruístico em prol de um bem maior.


Sabemos que é bom porque os Estados Unidos são a encarnação do bem maior na história do planeta.

Marciano observa que o chamado para honrar os participantes na guerra não inclui as centenas de milhares de cidadãos que protestaram contra ela, que lutaram pelo fim do massacre e das atrocidades. Eles são ignorados, quando não são condenados. O chamado de "apoio às tropas" nunca significou trazê-los para casa em segurança, onde seriam resgatados do trauma e da possível morte em nome de uma causa sem sentido, o que pode ser considerado um crime. Não se pode permitir que vítimas morram em vão. Não se deve negar a elas a vitória. E a maneira de garantir que elas não tenham morrido em vão é fazer com que outras mais morram em vão. Marciano observa que Reagan, um dos presidentes que mais alto bradaram pela honra de soldados e veteranos, suspendeu a contratação de veteranos realizada por meio do Programa de Aconselhamento para Readaptação [Readjustment Counseling Program] e dissolveu "todos os programas dedicados aos veteranos do Vietnã, inclusive um programa de treinamento para emprego destinado a veteranos deficientes".

Reagan cunhou a frase "síndrome do Vietnã", uma doença que debilita a confiança na América. Ele declarou:

"Por muito tempo, temos vivido com a síndrome do Vietnã. Esta é uma lição do Vietnã que deve ser aprendida por todos nós. Se formos forçados a lutar, devemos ter os meios e a determinação para prevalecer, ou não teremos o que é preciso para assegurar a paz. E então... jamais pediremos novamente aos jovens que lutem e possivelmente morram em uma guerra que nosso governo tem medo de deixá-los ganhar."

De acordo com a direita, as tropas foram traídas, foram "apunhaladas pelas costas" por manifestantes e políticos em seu próprio país, uma interpretação muito semelhante à que Hitler usou para explicar a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Hitler achava que a Alemanha sempre havia sido boa; Reagan e seus seguidores pensavam que a América nunca poderia estar errada. Hitler prometeu que nunca mais a Alemanha perderia uma guerra; Reagan fez a mesma promessa à América. Para Hitler, as únicas pessoas que poderiam derrotar a Alemanha eram os próprios alemães; para a direita norte-americana, as únicas pessoas que poderiam derrotar os EUA eram os próprios americanos. A América só pode falhar se perder sua vontade de prevalecer, se covardes e traidores em seu próprio meio minarem seu compromisso com a vitória.

Começando com a era Reagan, os resíduos dos movimentos de esquerda e de pacifistas foram coagidos a não questionar o propósito mais amplo do império militarista dos Estados Unidos.

Na melhor das hipóteses, eles poderiam dizer que erros podem ter ocorrido, mas que suas intenções finais sempre foram magnânimas. Em um consenso partilhado com direitistas, os liberais no poder, inclusive ambos os Clintons e Obama, consideram como fato consumado, fora de discussão, que os interesses americanos sempre devam triunfar, que os EUA sempre mantenham sua hegemonia. Pode-se debater detalhes específicos sobre táticas, mas nunca desafiar os objetivos fundamentais. É necessário apoiar as tropas, o que significa que se deve aceitar que o objetivo fundamental, pelo qual estão lutando e morrendo, é nobre. É preciso ter credenciais militares antes de poder desafiar a política americana. Cindy Sheehan era uma "mãe Gold Star" [mãe de heroi de guerra]. Até mesmo Edward Snowden foi um oficial da Inteligência.

Uma narrativa muito diferente era ouvida durante a Guerra do Vietnã -- um discurso que Marciano e alguns outros, incluindo Chomsky, Charles Derber e eu próprio, estão agora a reviver. Embora grande parte do establishment liberal mainstream -- o próprio grupo que orquestrou a Guerra do Vietnã -- tenha se oposto à guerra quando admitiu que não poderia vencê-la, que era dispendiosa e já não atendia aos interesses americanos, houve outros grupos -- no verdadeiro movimento pacifista de esquerda -- que insistiam em afirmar que a guerra não tinha sido um simples erro. Na verdade, foi um dos muitos exemplos das medidas brutais que os Estados Unidos -- um império capitalista e militarista agressivo desde a sua concepção em 1776 -- empreenderam para assegurar sua dominação e garantir que ninguém se atrevesse a desafiá-los. Marciano compara a invasão do Vietnã pelos Estados Unidos a uma série de atrocidades semelhantes, inclusive o genocídio dos nativos americanos, a usurpação de metade do México, as constantes incursões em países da América Latina e a conquista das Filipinas. Do um ponto de vista da esquerda, a lição do Vietnã mostra que há limites para o poderio americano, que não importa quão poderoso um império militarista seja, ele não poderá impor sua vontade impunemente e de forma definitiva sobre povos que estão dispostos a resistir.

Marciano escreveu este livro principalmente por acreditar que a América ainda não aprendeu a lição do Vietnã, e porque a lição que o movimento pacifista tentou ensinar vem sendo suprimida. Assim como os conservadores, liberais como Obama e Hillary Clinton continuam rejeitando esta lição. Se houvessem absorvido este ensinamento, os Estados Unidos teriam se retirado do Iraque e do Afeganistão assim que Obama assumiu a presidência. No entanto, assim como os conservadores, seu primeiro compromisso é o de preservar o império norte-americano.

Como Marciano demonstra, a forma como a Guerra do Vietnã é lembrada tem importância crucial, porque molda atitudes em relação a incursões militares semelhantes e posteriores a ela, especialmente para as gerações que não nasceram durante aquele período. Por essa razão, Marciano realizou um extenso estudo de como os livros escolares retratam a Guerra do Vietnã. E encontrou uma grande variedade de representações, mas nenhuma que pudesse sugerir ter havido crimes de guerra.

Como ocorreu na época do Vietnã, o engajamento para o combate no Iraque e no Afeganistão continua sendo apresentado como um serviço altruístico, uma missão heróica e nobre. Essa visão -- que coloca as guerras além dos limites da condenação moral, mesmo entre aqueles que as criticam e as consideram um erro -- é compartilhada por liberais e alguns esquerdistas, bem como por conservadores.

De fato, organizações liberais de esquerda como MoveOn, ActBlue e Progressive Turnout Project atacam Donald Trump por suas críticas a John McCain, ao capitão Humayun Khan [americano muçulmano de origem paquistanesa morto no Iraque] e a seus pais. Embora haja muito a condenar em Donald Trump, sua oposição a intervenções externas e à Guerra do Iraque não se incluem nesse rol.

Hillary Clinton recebeu os pais de Khan na Convenção Democrata de 2016 para mostrar que os muçulmanos podem ser "verdadeiros americanos" que morrem gloriosamente em invasões americanas a países muçulmanos. Por mais trágica que tenha sido a morte de Humayun, em momento algum o discurso de seu pai apontou para os verdadeiros responsáveis pela morte do filho: os senhores da guerra que o enviaram para morrer tentando impor os interesses americanos em outro país.

MoveOn enviou a seus apoiadores um e-mail pedindo doações e exigindo que Trump "demonstrasse a uma família Gold Star a deferência que ela merece". Em outro e-mail solicitando doações, ActBlue sugeriu que Trump não estava apto para a presidência "por ter insultado heróis de guerra americanos como o capitão Khan". Em uma entrevista, Khizr [pai de Khan] afirmou que o senador republicano John McCain, que foi capturado por norte-vietnamitas quando era piloto de bombardeiro, foi um herói para seu filho.

Com algumas exceções como Trump, tanto republicanos quanto democratas defendem McCain como o epítome da virtude moral do autossacrifício, um exemplo a ser seguido pelas crianças americanas patrióticas na idade adulta. McCain foi capturado depois de haver bombardeado aldeias, matado civis, destruído cidades e infra-estruturas.

Marciano deixa claro que as escolas precisam oferecer às crianças modelos morais muito diferentes. Seu livro notável demonstra como é vital que (re)consideremos a forma como interpretamos o passado recente para tomar decisões sobre o presente. Àqueles que sofreram os traumas da guerra deve ser dado o apoio necessário para seu retorno à vida civil normal, mas eles não devem ser usados como exemplos para encorajar outros a partir para a guerra, sofrer horrores semelhantes, matar e morrer.

Este é um livro para ser lido por um grande público -- ativistas, educadores, historiadores, sociólogos, economistas políticos e cidadãos conscientes.

P.S.: Sou o último sobrevivente de uma "família Gold Star". Meu irmão foi morto no Vietnã.
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