terça-feira, 6 de setembro de 2016

Quando os EUA amavam Mussolini

18/8/2016, Adam Tooze, New York Review of Books, vol. 63, n. 13


Resenha de The United States and Fascist Italy: The Rise of American Finance in Europe [EUA e Itália fascista: Ascensão da finança norte-americana na Europa], Gian Giacomo MIGONE, trad. it.-ing. e prefácio Molly Tambor, Cambridge University Press, 405 pp., $110.00


Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu


No início dos anos 1960s, em pleno refluxo do atlanticismo do pós-guerra, Gian Giacomo Migone, filho de uma família cosmopolita de diplomatas italianos, chegou a Harvard para estudar história. Como católico liberal, seguidor de John F. Kennedy e fã do Papa João 23, Migone escapava do conservadorismo e do neofascismo das universidades italianas do pós-guerra. Veio aos EUA em busca da promessa de democracia e novos desenvolvimentos no ensino superior. Encontrou coisa mais complicada. 

Viviam-se os anos do auge da luta pelos direitos civis e ele e outros estudantes estrangeiros viajaram ao Sul dos EUA para conhecer os últimos dias de Jim Crow. Mesmo assim o que o mais perturbaria Migone seria menos o presente que o passado dos EUA, especialmente a história então recente dos EUA, no que se relacionava com sua terra natal.

Em 1965, o tema do legendário seminário de Ernest May em Harvard, sobre relações exteriores dos EUA, eram os anos 1920s, e Migone recebeu o encargo de explorar a política dos EUA para a Itália. Era missão delicada num duplo sentido. Os anos 1920s eram década comumente identificada com o isolacionismo norte-americano, período durante o qual se dava por decidido que os EUA não tinham qualquer real política externa. E Itália, nos anos 1920, era o regime de Mussolini. 

A questão era como os governos Republicanos de Harding, Coolidge e Hoover, dedicados ao seu programa nacionalista de "normalidade" e modernização, ter-se-iam engajado no primeiro esforço para construir uma ditadura fascista na Europa. Com a guerra do Vietnã em escalada no pano de fundo, foi encargo que abalaria as crenças ingênuas que o jovem Migone acalentava sobre o alinhamento da potência ocidental com/pela democracia.

Publicado em italiano em 1980, depois de muitos anos de pesquisa pioneira em arquivos norte-americanos e italianos, o livro de Migone consagrou-o na Itália como autoridade entre os intelectuais da esquerda liberal dos anos do fascismo e lançou o autor numa carreira que o levaria, pela Universidade de Turin até um assento no Senado italiano. Mesmo assim, em tempos ainda antes da Internet e de Google Translate, a tese doutoral de Migone permaneceu praticamente desconhecida para leitores do mundo anglófono. Como outros trabalhos clássicos da historiografia internacional europeia dos anos 1960s e 1970s, muitos dos quais centrados nos EUA – em alemão, pensa-se logo em Hitler's Strategie, de Andreas Hillgruber; Aufrüstung oder Sicherheit, de Michael Geyer; e Die amerikanischeStabilisierungspolitik in Deutschland de Werner Link –, essa interpretação europeia do poder dos EUA permaneceu praticamente ignorada na própria historiografia norte-americana. E devemos agradecimentos à Cambridge University Press e a Molly Tambor, ela também historiadora da Itália do pós-guerra, por termos afinal essa excelente tradução.

O antifascismo é o mito fundador da república italiana depois de 1945. Mas não só uma ressentida minoria de italianos permanecia ligada à memória de Mussolini, como também, como Migone descobriu nos National Archives em Washington, os EUA só surpreendentemente tarde decidiram declarar Il Duce inimigo, no final da década dos 1930s. 

No período entre guerras, diferente do que se viu depois de 1945, os norte-americanos não assumiam que a democracia fosse destino natural de todos os estados da Europa Ocidental. Admiradores norte-americanos de Mussolini iam, das empresas de mídia de Hearst ao presidente da Universidade de Columbia, Nicholas Murray Butler, que deu uma plataforma à propaganda fascista na "Casa Italiana" no Upper West Side. Dois presidentes, Hoover e Roosevelt manifestaram aprovação e apoio ao regime de Mussolini. O fascismo prometia levar ordem e progresso à Itália, ao mesmo tempo em que mantinha ao largo qualquer ameaça vinda da esquerda.

Já em 1972, John Patrick Diggins, em seu Mussolini and Fascism: The View from America, revelara o entusiasmo que Mussolini gerava entre intelectuais norte-americanos do campo progressista. O que o livro de Migone expõe a nu é que aquelas afinidades eram fundadas em mais, do que só ideias e política. Por trás do palco, havia interesses financeiros que orquestravam o conúbio entre os EUA e o fascismo italiano. 

Migone escreve no Prefácio que pode não ter começado sua vida intelectual como marxista, mas que, depois de ler os documentos produzidos pelos bancos centrais e grandes banqueiros de investimentos naquele momento, muitas vezes sentiu que, sim, bem poderia "tornar-se marxista".

Um dos obstáculos que muito dificultaram que se reconhecessem mais amplamente as relações amistosas entre Wall Street e o fascismo italiano foi a visão generaliza sobre o período entre guerras como era de nacionalismo econômico. Mussolini é famoso pela defesa empenhada da autarquia e por triunfos como a drenagem dos pântanos de Pontinee a "batalha pelo grão" na agricultura. A Itália, por sua vez, foi severamente afetada pelas quotas impostas pelos EUA no início dos anos 1920s, que limitavam o número de imigrantes.

Mas políticas de desenvolvimento nacional absolutamente não eram incompatíveis com incentivar as interconexões comerciais e financeiras internacionais. Aqui se tem de tomar seriamente os adjetivos "nacional" e "internacional". As elites empresariais italianas jamais cogitaram admitir que o desenvolvimento econômico nacional fosse amputado da economia mundial. O efeito imediato da 1ª Guerra Mundial nem foi tanto desencadear uma desglobalização, quanto promover um rearranjo das interações econômicas internacionais. 

Se, antes de 1914, empresários visionários como Giuseppe Volpi procuravam a Alemanha em busca de assistência para desenvolver indústrias modernas na Itália, como usinas hidrelétricas, a partir de 1917 a economia italiana passou a depender de empréstimos da Grã-Bretanha e dos EUA, os quais, em 1919 já chegavam a $2 bilhões e $1,65 bilhão respectivamente. Depois da Conferência de Paz de Paris, apesar do confronto que houve lá com Woodrow Wilson, por os italianos exigirem o controle sobre Fiume [pequena cidade portuária no Mar Adriático], os liberais italianos continuaram de olhos postos em Wall Street.

Tragicamente, depois que Wilson fracassou e não conseguiu que o Senado ratificasse o Tratado de Versailles, a cabeça dos EUA já estava noutra coisa. Por mais que o Senado e o Departamento de Estado estivessem interessados na estabilização europeia, o que realmente os preocupava era o destino da Alemanha. Foi o desastroso conflito franco-alemão no Ruhr que levou os EUA a se reengajarem nos negócios europeus, no outono de 1923. Àquela altura, para a primeira geração de atlanticistas liberais, já era tarde demais: em outubro de 1922, Mussolini tomara o poder.

Migone mostra como, com a Alemanha como prioridade de Washington, Mussolini posicionou seu governo como muito mais maleável que a França republicana, com vistas à nova hegemonia dos EUA. Por mais que Mussolini rugisse seus resultados de guerra, não teve política agressiva contra a Alemanha. Deixou bem claro desde o início que compreendia o poder dos EUA, e disse ao rei Vittorio Emanuele III em 1923, para empurrá-lo a fazer uma visita oficial aos EUA:

"A volta do fluxo migratório para os EUA e a cooperação com o capital norte-americano são dois elementos de importância vital para nós. Além das vantagens econômicas (...) seria imenso benefício para a Itália (...) por causa da indiscutível influência que [boas relações EUA-Itália] podem ter sobre nossas relações com outros estados, dentre os quais, sobretudo, a Inglaterra."

Diferente de políticos democraticamente eleitos que governavam em Paris, na Itália a ditadura de Mussolini entregou a política financeira a uma sucessão de empresários e tecnocratas. Diferentes dos franceses, esses empresários e tecnocratas aceitaram os termos econômicos básicos fixados pelo Congresso dos EUA e articulados pelo Secretário de Comércio Herbert Hoover e Andrew Mellon no Tesouro. E circulando entre todos esses, como onipresentes facilitadores das conversas dos dois lados, lá estavam grandes banqueiros, e, sobre todos os demais, J.P. Morgan.

No prefácio à tradução, Molly Tambor observa que uma das decisões tradutológicas mais difíceis que ela e Migone tiveram de tomar para pôr o livro em inglês foi como traduzirclasse dirigente (it. e port.). Em atenção a sensibilidades modernas, rejeitaram a tradução mais óbvia "ruling class," em favor de expressões como "elites" e "líderes empresariais" [qualquer coisa, como se vê, desde que não se fale em "classe" (NTs)]. Mas mesmo através do filtro dessa tradução que aspira a ser despolitizada, o quadro que Migone pinta é muito claro. 

O novo poder dos EUA nos anos 1920s baseava-se em sua economia e na projeção de uma visão norte-americana de ordem internacional que ultrapassava a Liga das Nações: e no comando, estavam banqueiros norte-americanos. 

As questões cruciais da diplomacia italiana-norte-americana não eram questões de democracia, mas de finanças. Tinham a ver com a quitação das dívidas de guerra da Itália e com a restauração do padrão ouro. E com a orientação fraterna de J.P. Morgan, o regime de Mussolini rapidamente aceitou os termos de acertos financeiros com os EUA. O acordo sobre dívida de guerra negociado em 1925 foi o mais generoso que os EUA firmaram com qualquer de seus associados de tempos de guerra. E desencadeou um fluxo de investimento norte-americano para a Itália que ainda acelerou depois de 1927, tão logo a Itália estabilizou-se sobre o padrão ouro.

O investimento total dos EUA na Itália fascista rapidamente ultrapassaram os $400 milhões. A destacar que, à altura de 1930, quando o presidente Hoover iniciou o movimento para restaurar a ordem mundial (começando com a conferência de Londres sobre controle de armas navais), a Itália fascista, depois do governo trabalhista de Ramsay MacDonald na Grã-Bretanha, era a parceira preferida de Washington na Europa. Quando o ministro de Relações Exteriores de Mussolini, o carismático ex-squadistra Dino Grandi, encontrou Hoover em 1931, o presidente teria dito ao seu hóspede italiano que a muito falante minoria de antifascistas nos EUA devia ser ignorada: "Não existem para nós, norte-americanos, e tampouco devem existir para vocês."

O que destruiu a harmonia dos anos 1920s não foram as tendências crescentemente ditatoriais do regime de Mussolini, mas a Grande Depressão. O colapso do padrão ouro e o fim do empréstimo internacional romperam os laços de "soft power" que haviam contido o regime de Mussolini. 

Mussolini sempre falara de guerra e conquista, mas desde o incidente de Corfu em 1923, quando a Itália fora arrastada para uma crise diplomática e militar com a Grécia, em que disputavam aquela ilha, ele moderara suas ações de agressão a outros países. Em 1935 o expansionismo explodiu à plena luz. Com o ataque não provocado contra a Abissínia, Mussolini quebrou a ordem do entre guerras. Em seguida vieram a militarização daRhineland por Hitler; o golpe de Franco na Espanha e a Anschluss da Áustria. Se ainda houvesse qualquer esperança de conter essa escalada, estaria em sanções rápidas e agressivas contra Mussolini por causa da Abissínia. Mas, em vez de sanções... as potências liberais vacilaram. Por quê? 

Hitler disse, em frase que ganhou fama, que conhecera os estadistas ocidentais em Munique, e que não passavam de "vermes". Nisso, pelo menos, Churchill concordava. Para Migone, a vacilação dos liberais naquele momento nada teve de fraqueza moral: foi sistemática. 

A ação de não impor sanções aos fascistas foi uma espécie de eco abafado de uma estratégia de hegemonia financeira antes poderosa. Consideradas as políticas dos anos 1920s, a recusa dos EUA, que se posicionou contra até as mínimas sanções impostas pela Liga das Nações, era totalmente previsível. Em vez de sanções, as importações crescentes de veículos motorizados e petróleo deram forte impulso à agressão assassina da Itália, contra o único membro africano da Liga das Nações, que era estado independente. A principal preocupação do Departamento de Estado não era punir a violação da lei internacional, mas o medo de que, se Mussolini viesse a ser humilhado, o governo fascista entrasse em colapso e a Itália se tornasse palco de uma revolução.

Examinar os movimentos pró-paz (ou a ausência deles) contra o pano de fundo das relações financeiras e políticas nos anos 1920s é certamente muito esclarecedor. Mas também expõe uma parcialidade da história de Migone: ele não leva suficientemente a sério a confusão e a surpresa em Washington e Londres, ao responderem à repentina agressão de Mussolini. Mas... E o que Mussolini quereria na Abissínia? Não era pergunta ociosa.

Conforme o modelo aceito de hegemonia capitalista, à qual os norte-americanos acreditavam que eles mesmos estivessem visando com seus amigos fascistas, não havia resposta óbvia. Nem Migone cuida de nos oferecer alguma. Em seu esforço para refutar as leituras exageradamente ideológicas sobre o fascismo como uma religião política violenta, ele não cuida de oferecer explicação sistemática para a agressão fascista.

A violência que explodiu em 1935 teve várias fontes. Mas conforme o próprio argumento de Migone ela pode ser mais bem interpretada como o verso da cumplicidade que o próprio autor descreve tão poderosamente nos anos 1920s. A insurgência "ou faz ou morre" foi tipo diferente de reação à nova ordem mundial criada em 1919. É impossível dar conta da singularidade do regime de Mussolini – ou do regime de Hitler – se não se reconhece essa dualidade. Il Duce não apenas não se curvou ante o poder do Império Britânico e dos EUA: ele também conspirou contra as duas potências.

O modo como responder a essa violenta insurgência foi um verdadeiro desafio para a estratégia dos governos liberais depois da 1ª Guerra Mundial. A preferência deles pela paz tinha fundamentos sólidos. Interesses sociais e econômicos e um não-gostar de guerra também participaram. O potencial militar de uma aliança Alemanha-Itália-Japão não seria ameaça que se pudesse tratar com desdém. 

Mas o que levou realmente a amolecer contra os fascistas nem foi tanto o medo da derrota; foi, mais, o custo ruinoso de vencer novamente. A vitória das potências da Entente em 1918 custou preço tão alto que, fundamentalmente, pôs em questão o valor da guerra como ferramenta de poder político. Desde a conferência naval em Washington em 1921, a estratégia de ambos, norte-americanos e britânicos consistira em solidificar a dominação estratégica nos oceanos. Em 1935, se quisessem afirmar essa dominação, a superioridade da frota britânica sobre a frota italiana teria sido enorme. Mas impor bloqueio total requereria mobilização política em casa e alianças estratégicas com França e EUA, que esses países não haviam oferecido e que os britânicos não desejavam assumir.

O que faltava era um sistema confiável de contenção, uma força tão formidável e tão clara em sua missão política e estratégica que tornaria implausível qualquer esforço para derrubar o status quo. Desde a Conferência de Paz de Paris, o governo francês clamava exatamente por tal sistema – mediante alguma combinação de exército da Liga das Nações, mecanismos automáticos de sanções e garantias de segurança com garras reais. Mas foi precisamente essa insistência que tornou a República Francesa tão intolerável para Washington.

O desastre subsequente revelaria as limitações de uma hegemonia financeira unidimensional. Para dar segurança a uma ordem liberal assim tão conveniente, seria necessária uma mistura muitíssimo mais densa de política, ideologia e poder militar. 

Depois de 1945, a promoção, pelos EUA, da integração europeia e do papel de âncora que teria na OTAN foram dois elementos vitais da nova ordem. O anticomunismo solidificou o apoio político doméstico. O New Look [aprox. "bossa nova"] nuclear de Eisenhower, por mais horrendo pensamento que fosse, tornou a contenção financeiramente possível. 

Como o revisionismo de Migone energeticamente nos faz lembrar, outro elemento da ordem do pós-guerra foi um serviço de reescrever a história dos anos 1930s que fez descer um véu de silêncio sobre o fato de que bem recentemente, logo ali, em 1935, instituições tão crucialmente importantes como J.P. Morgan trabalhavam em relação muito próxima com homens que hoje são tratados como bandidos fascistas.

O trabalho de "acertar as contas com o passado" iniciado por Migone e sua geração iluminou assim o período do entre guerras e as fundações políticas da ordem do pós-guerra. E embora o fascismo tenha saído de cena, é o fio cortante da autorreflexão que dá ao livro de Migone a relevância que tem para fazer compreender desenvolvimentos recentes. 

Qual a relação entre democracia e capitalismo financeiro internacionalizado? Até que ponto podemos/sabemos olhar diretamente no olho das tensões que há entre uma e o outro? 

Numa era de Vietnã e Pinochet, Migone apresenta essas perguntas sobre o relacionamento entre os EUA e a Itália de Mussolini. São perguntas que persistem aí, hoje, entre nós. Para que as possamos enfrentar, os EUA precisamos de toda a ajuda que haja. Por mais que uma volta das ciências sociais norte-americanas à "história do capitalismo" seja hoje bem-vindo efeito colateral da crise financeira, décadas de desinteresse pelo tema e desleixo crítico cobraram preço muito alto às nossas faculdades e talentos críticos e analíticos. 

Bem faríamos, os norte-americanos, se tratássemos de afiar nossas competências sobre os esforços de uma geração anterior para compreender a economia política do capitalismo internacional. O livro de Migone, lúcido e poderoso, é estimulante ponto de partida.*****

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