13/5/2018, Roberto Mangabeira Unger, Les Crises, ENTREVISTA
(Vídeo, 30" em ing. e legendado em fr., aqui transcrito e traduzido ao port.[1])
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Les Crises (LC): Roberto Mangabeira Unger, o senhor é filósofo, é professor da Escola de Direito de Harvard e foi também ministro do governo do Presidente Lula do Brasil e também do governo da Presidenta Dilma Roussef. Nós o convidamos para que o senhor fale sobre a situação, o status da esquerda, digamos a filosofia da esquerda. Para começar pelo começo, gostaria de conhecer suas impressões, seus sentimentos, sobre o encontro entre Emanuel Macron e Donald Trump nos EUA. EM se autoapresenta, de certo modo, como se fosse uma nova forma da socialdemocracia. Mas a recente viagem mostrou outra faceta dele. Como o senhor analisa o que aconteceu nesses três dias, nos EUA?
Roberto Mangabeira Unger (RMU): Macron e seu governo parecem ser mais um exemplo, dentre muitos, do que, por muito tempo foi o projeto das elites dominantes nos grandes países do Atlântico Norte, a saber: reconciliar a proteção social dos europeus com a flexibilidade econômica dos norte-americanos, numa versão apenas superficialmente revista dos arranjos institucionais herdados vigentes.
"'Flexibilidade' é eufemismo para erosão dos direitos do trabalho"
É uma flexibilização da socialdemocracia na qual "flexibilidade" não passou, em grande medida, de eufemismo para uma erosão dos direitos do trabalho.
Para entender esse projeto, é necessário compreender o contexto histórico. E o contexto histórico é a acomodação [compromise] da socialdemocracia que se estabeleceu em meados do século 20. Pode-se dizer, para compreender essa acomodação, é que as forças que naquele tempo desafiavam os modos estabelecidos de organizar produção e poder desistiram do desafio. E em troca dessa abdicação, o Estado foi autorizado a exercer o poder de (i) regular mais intensamente o mercado, para promover uma 'redistribuição' moderada, sob a forma de uma compensação retroativa, mediante a tributação progressiva e os direitos sociais; e de (ii) administrar a economia de modo contracíclico. Essa é a socialdemocracia conservadora no plano das instituições.
"Eis a socialdemocracia conservadora das instituições"
Vista em retrospecto, essa socialdemocracia conservadora das instituições mostrou-se ao mesmo tempo ineficiente e injusta. Ineficiente porque, ao respeitar os direitos adquiridos da parte organizada da população, em detrimento da maioria desorganizada, ela impôs rigidezes que custaram caro e divisões entre insiders e outsiders [iniciados e não iniciados]. Esse é o projeto de liberalizar a socialdemocracia. Mas sempre que se quer liberalizar a socialdemocracia, ela se torna social-liberalismo. O projeto dominante foi esse: do social-liberalismo.
"O projeto dominante não foi socialdemocrata: foi social-liberal"
Esse projeto, a meu ver, não consegue resolver nem tratar qualquer dos problemas estruturais das sociedades contemporâneas. Precisamos de outra coisa, e essa outra coisa não pode ser uma diluição da socialdemocracia histórica. Tem de ser um movimento que ultrapasse as fronteiras da socialdemocracia histórica.
LC: E o senhor acredita que essa fratura, essa linha de fratura entre o projeto que o senhor descreveu, da socialdemocracia, e o social-liberalismo e, acrescentemos, a ideologia conservadora da direita, e a visão utópica, digamos, de alguma outra forma de organização... Seria essa a nova fratura entre direita e esquerda?
"A esquerda não construiu um projeto de produção"
RMU: Quando a esquerda abandonou a fé no estatismo, ela procurou refúgio no que se chama Keynesianismo vulgar. Quero dizer: nesse período, o foco da esquerda esteve no lado da demanda da economia, não do lado da oferta, da economia. A esquerda não construiu um projeto produtivista. O que aconteceu é que a esquerda apareceu na cena histórica como um agente para a tentativa para humanizar o projeto de seus adversários conservadores.
"A esquerda surgiu na cena histórica no século 20 para apenas 'humanizar' ['adocicar'] o projeto conservador"
Significa que a direita continuou a ter a iniciativa, a iniciativa continuou a ser dos liberais.
"E os progressistas condenaram-se ao papel de 'humanizadores' do inevitável'."
A esquerda não tinha projeto nesse momento. Historicamente, durante esse período o projeto da esquerda era adocicar tudo em volta.
O que sempre acontece em política é que a força que comanda a agenda, o caminho adiante, é a força que encarna de modo mais convincente a causa da energia, da fecundidade, da criação, da inovação.
E na política, sempre, a verdadeira questão é saber se o processo de empoderamento para agir será hierárquico ou partilhado: queremos a grandeza para uns poucos ou uma grandeza partilhada?
"Se queremos a grandeza partilhada, o projeto econômico e político tem de ser outro"
E a grandeza partilhada exige projeto econômico e político de outro tipo. Não pode ser essa liberalização da socialdemocracia que Macron representa. Tem de ser outra coisa.
LC: E essa outra coisa deve passar também por novos modos de organizar a política?
RMU: Sim, sem dúvida. Mas [essa outra coisa] se apresenta sob vários diferentes aspectos. Para começar, [essa outra coisa] tem um núcleo econômico. E esse núcleo econômico deve enfrentar a segmentação hierárquica da economia. Essas economias são hoje divididas em setores avançados e setores atrasados.
A economia do conhecimento tem de ser entendida como uma forma de produção para criar e manter condições de inclusão para inovação permanente
Temos hoje no mundo uma nova forma de produção, que chamamos de knowledge economy [economia do conhecimento], que se baseia, não em tecnologia de ponta, mas em inovação permanente [esse trecho da legenda em francês está errado no vídeo].
Essa economia do conhecimento está hoje presente em todos os setores do sistema de produção. Mas em cada setor, hoje, ela forma uma franja que exclui a vasta maioria dos trabalhadores da empresa. É portanto um vanguardismo que exclui. E esse caráter insular do modo de produção mais avançado explica tanto a estagnação econômica como a desigualdade econômica.
"Não basta regular mercados nem fazer redistribuição compensatória"
Portanto, a primeira parte do projeto dos progressistas tem de ser estabelecer essa economia do conhecimento numa forma socialmente inclusiva. E para esse fim, são indispensáveis várias iniciativas radicais. Iniciativas radicais na educação e iniciativas radicais na reorganização da economia do mercado. Não basta regular o mercado. Não basta atenuar as desigualdades geradas no mercado, retrospectivamente, por redistribuição compensatória.
É indispensável inovar no arranjo dos dispositivos que definem o que seja uma economia de mercado, de modo que mais pessoas tenham maior acesso, de vários modos, aos diferentes recursos de produção.
"A economia de mercado tem de avançar para um formato de produtivismo inclusivo"
Em resumo, é preciso diversificar os regimes de propriedade, o que democratizaria radicalmente a forma da economia de mercado.
Trata-se portanto de produtivismo inclusivo, cuja primeira ambição deve ser fazer avançar a economia de mercado para um formato inclusivo.
"Reformatar a relação entre finança e economia real e mudar a relação entre capital e trabalho"
Esse projeto tem alguns corolários importantes. Um deles é reformatar a relação entre finança e economia real. A finança tem de ser um bom servo, não um mau patrão. E tem de ser mobilizada a serviço da agenda produtiva da sociedade. O outro corolário é mudar a relação entre trabalho e capital.
"Criar um regime jurídico que proteja, represente e organize os trabalhadores hoje condenados ao trabalho precário"
Hoje o que se vê no mundo é que parte crescente da força de trabalho nas sociedades avançadas está confinada a empregos temporários ou precários. Para pôr em funcionamento um vanguardismo inclusivo é preciso resgatar esse precariato e criar um regime jurídico concebido para protegê-los, representá-los e organizá-los. Isso não é liberalizar a socialdemocracia. Isso é transformar a socialdemocracia em outra coisa que ela ainda não é.
Como você sugeriu, esse projeto econômico deve também ter contrapartes num projeto de reorganização da sociedade civil fora do Estado e de transformação da política.
LC: O que lhe parecem essas novas formas de reorganização que se veem na Europa. Penso por exemplo no Podemos da Espanha e no movimentoFrance Insoumise [França Insubmissa, movimento de Jean-Luc Mélenchon], que tentam organizar a ação política de modo mais horizontal. O senhor crê que esse seja um bom caminho?
"É preciso dar conteúdo programático aos movimentos 'alternativos'"
RMU: Temos de dar a eles um conteúdo programático. A sociedade civil fora do Estado tem de ser organizada. E um foco para organizá-la pode ser participar como parceiro do Estado na produção experimental de serviços públicos.
"Não se trata de privatizar os serviços públicos em favor de empresas que visam ao lucro. Trata-se de socializar os serviços públicos."
Em outras palavras, a sociedade civil, mediante cooperativas, passa a ser parceira do Estado para fornecer esses serviços, começando por saúde e educação.
A nova democracia de alta energia: "democracia quente e institucional".
E na política, temos de criar outro tipo de política: uma democracia de alta energia.
Essa democracia de alta energia depende de três séries de inovações:
– depende de inovações que aumentam os níveis de engajamento popular organizado, na vida política: a temperatura da política. Em outras palavras inventar uma política que é ao mesmo tempo quente e institucional. De modo que ninguém tenha de escolher entre política institucional fria, ou política quente anti-institucional, que é cesarismo;
– depende também de um conjunto de inovações que acelerem o ritmo da democracia, para rápida solução dos impasses. No caso de impasse, organizam-se eleições antecipadas, plebiscitos programáticos completos; e em terceiro,
– a democracia de alta energia depende de combinar (i) uma iniciativa central forte e (ii) oportunidades para descentralização radical, de tal modo quepartes do país possam experimentar contramodelos para o futuro do país.
"Radicalização institucional de um impulso para a experimentação"
O que há de comum nesses três eixos que descrevi – o eixo econômico, social e político – é que são a radicalização institucional de um impulso para a experimentação. E o objetivo principal não é simplesmente alcançar alguma igualdade de resultado ou de circunstância.
"Libertar a mudança, resgatá-la de sua dependência das crises; inverter a autoridade dos mortos sobre os vivos."
O objetivo principal é aumentar o poder de agir de homens e mulheres comuns. Retomar os despossuídos no seu próprio contexto de baixo para cima para começarem a mudar, sem que tenham de passar por crises.
Libertar a mudança de sua dependência das crises e inverter a autoridade dos mortos sobre os vivos.
LC: Mas as forças de resistência do capitalismo são extremamente fortes, o senhor sabe disso. Impõem-se pela cultura, pela mídia, e fazem reviver algumas figuras históricas, por exemplo as figuras sombrias do comunismo, por exemplo, no século 20. Como podemos lidar com esse problema das forças do capitalismo, da resistência contra?
RMU: O que acontece é que essa socialdemocracia institucionalmente conservadora e também a versão liberalizada de Macron, ou de Blair, da "3ª via" é incapaz de resolver esses problemas de estrutura. Consequentemente, ela leva ao ressentimento, ao descontentamento da maioria da população trabalhadora ativa, que se torna, na ausência de alternativa progressista, o fermento para o populismo de direita, para o nacionalismo, para a xenofobia.
A falsa alternativa que existe a isso, até agora, é mais centralismo tecnocrático, mais distribuição de mais açúcar para 'adoçar' tudo, mais tentativas de combinar a proteção social fragmentária de um lado e, de outro, cada vez mais concessões ao capital e às elites tecnocráticas e empresariais.
"Precisamos de um projeto que combine um produtivismo inclusivo e um aprofundamento da democracia"
A única alternativa efetiva é construir um projeto que combine um produtivismo inclusivo e um aprofundamento da democracia. E esse projeto exige, como contraparte, uma mudança radical no sistema de educação, outro tipo diferente de cabeça, espírito diferente, pessoas diferentes.
O projeto de educação para o produtivismo inclusivo, em democracia aprofundada
Tem de haver um tipo de educação que ponha em primeiro lugar o desenvolvimento das capacidades analíticas e sintéticas, acima da informação. Em segundo lugar, no aspecto dos conteúdos, deve dar preferência ao aprofundamento seletivo, não à superficialidade enciclopédica.
"Cooperação" não é qualquer mistura de individualismo e autoritarismo
Em terceiro lugar, no quadro social, esse ensino deve optar pela cooperação, não por qualquer mistura de individualismo e autoritarismo.
Em quarto lugar, a abordagem do corpus dos conhecimentos tem de ser dialética. Cada matéria tem de ser ensinada de pontos de vista contrastantes e desde o início da educação.
A República deve ajudar a formar cidadão ativos pró-rupturas, quer dizer, cidadãos ativos pró-inovação
Nesses termos, o objetivo da República deve ser ajudar a formar cidadãos que, desde o primeiro momento sejam capazes de provocar rupturas [ing.disruptors] e que, porque são capazes de provocar rupturas, são capazes de inovar.
A verdadeira alternativa não pode ser uma queixa, um lamento
Esses, afinal, são alguns dos elementos de uma verdadeira alternativa. A verdadeira alternativa não pode ser um lamento, uma queixa. Não pode estar concentrada exclusivamente na insegurança ou no medo. Ela tem de representar uma esperança de transformação.
"Dar grandeza às pessoas, mas fazê-las grandes pelo conjunto, não pela divisão, uns contra os outros."
E o verdadeiro objeto de uma verdadeira alternativa, como foi o objeto dos liberais e socialistas do século 19, deve ser fazer as pessoas maiores. E fazê-las maiores juntas, dar-lhes grandeza pelo conjunto, não pela divisão, uns contra os outros.
LC: Mas... Não vou ensinar a dinâmica da história a um latino-americano como o senhor, mas a dinâmica da história não está só no pensamento político, está também na poesia, na música, nos personagens históricos e nas narrativas nacionais.
"A 'cultura romântica mundial' são só fantasmas de aventuras e de empoderamento"
RMU: É. O que nós temos na cultura romântica mundial são fantasmas de aventuras e de empoderamento. Permitem compensar a experiência da vida diária. Para a vasta maioria, a vida diária é limitação, rebaixamento e humilhação.
"Os progressistas devem apelar não ao autointeresse egoísta, mas ao autorrespeito"
Uma das ambições dos progressistas deve apelar não ao autointeresse egoísta e raso, mas ao autorrespeito. A fé dos democratas deve ser fé, antes de tudo, no gênio construtivo de homens e mulheres comuns. A luta contra as desigualdades tem de ser subsumida nesse objetivo maior. Esse objetivo maior não é simplesmente humanizar a sociedade, mas de divinizar a humanidade. Fazer-nos maiores.
"E ficamos mais humanos quando tocamos a divindade. E o método para isso deve ser o método da mudança estrutural."
A mudança estrutural é quase sempre fragmentada. Mas se persiste numa mesma direção rumo a uma ideia, pode levar a resultado revolucionário.
"Por que os franceses, agora, só falam de objetivos rebaixados?"
Uma sociedade muito educada, como a sociedade francesa, que está historicamente habituada a ambições grandiosas, não deveria pôr-se agora a buscar um futuro rebaixado, modesto. Deveria concentrar-se na própria fecundidade, na capacidade para criar.
"E essa capacidade criadora não pode ser confiada aos interesses egoístas de uma pequena elite. Tem de ser organizada em forma republicana. Para isso, é indispensável mudar as instituições econômicas e políticas."
Agora, os progressistas têm de se concentrar no institucional. Devem ir além de fronteiras e limites instituídos por essa socialdemocracia institucionalmente conservadora.
"É hora de todos se concentrarem em mudar o institucional"
E devem associar essa transgressão institucional, essa renovação, a uma mensagem profética. Essa mensagem deve ser: aumentar nosso poder para reorganizar o mundo, sem depender de crises.
O ritmo fundamental da vida europeia no século 20 foi que os europeus eram feitos de/pela guerra. Todas as grandes mudanças estruturais das sociedades europeias aconteceram depois de guerras. Tão logo se fez a paz, eles outra vez caíram no sono e afogaram as próprias mágoas no consumo. Não deveriam precisar de guerras para se manterem despertos. Todo o objetivo dessas alternativas econômicas e políticas de que estamos falando é criar um mundo no qual o trauma deixe de ser condição indispensável da transformação.
LC: O senhor acha que a preocupação ecológica pode ter poder suficiente para servir como alavanca à nova esquerda progressista?
TMU: Depende. Há uma forma pervertida da preocupação com a ecologia, que consiste em abandonarmos toda a agenda de mudança estrutural sob o ataque de catástrofes, calamidades e desapontamentos do século 20, para nos esconder na natureza, como se fosse um grande jardim, onde encontraríamos consolo, depois das decepções da política. Esse seria o resultado fracassado.
O modo correto de encarar a questão ecológica: "dar-lhe conteúdo de ideias que promovam um produtivismo inclusivo"
O modo correto de encarar a questão ecológica seria, por exemplo, aproveitar que está posta a questão de sistemas de produção com baixa emissão de carbono, para iniciar uma mudança estrutural, para favorecer o desenvolvimento de um produtivismo inclusivo.
A questão ecológica não é alternativa à agenda da mudança estrutural, apenas outra condição para pôr em andamento a mesma agenda da mudança estrutural. Mesmo assim, é preciso dar um conteúdo...
Vejam... Os conservadores não precisam explicar nada. Eles não precisam de ideias para reproduzir o mundo que aí está. Basta reinventar o mesmo mundo e recomeçar a adorá-lo. Mas se você quer mudar o mundo, as ideias são indispensáveis. Embora as ideias sozinhas não mudem o mundo, ninguém muda o mundo se não tiver ideias.
"O projeto indispensável hoje tem de visar à mudança institucional"
Hoje o mundo sucumbe sob o jugo de uma ditadura da ausência de alternativas. O único modo de quebrar esse jugo é construir um projeto. E esse projeto tem de ter um conteúdo institucional.
LC: O que o senhor pensa da situação atual da esquerda na Europa? Sabemos que é muito diferente da América Latina.
Sobre a União Europeia hoje e a esquerda
RMU: A União Europeia tem dois pressupostos. O primeiro pressuposto era estabelecer a paz perpétua na Europa e pôr fim a um século de guerras europeias. E o segundo pressuposto era criar um espaço para um modelo de organização social e econômica diferente da norte-americana. Isso deu nessa socialdemocracia que hoje, em sua forma fossilizada, mostra-se inadequada.
A União Europeia desenvolveu-se segundo uma lógica que é a seguinte: o poder para determinar as regras da organização econômica e social é cada vez mais centralizado. Está no papel em Bruxelas, e de facto, em Berlim. O poder para definir as dotações educacionais e sociais dos cidadãos é delegado às autoridades nacionais e regionais. No ponto mais alto há uma elite tecnocrata centrista que desconfia da democracia e teme o povo.
Esse projeto tem de ser virado de pernas para cima. E tem de ser virado de pernas para cima, porque a vocação fundamental da União deve ser garantir as dotações e o equipamento educacional e econômico de todos os cidadãos. Mas em seguida dar aos respectivos países e regiões a maior latitude possível para a experimentação institucional.
Como fazer? Os países do sul e do leste – as principais vítimas desse projeto – têm de se aliar aos progressistas dos grandes países europeus, para inverter o projeto. Mas ninguém conseguirá inverter o projeto se não houver, pelo menos, o início de alguma alternativa progressista dentro de cada país.
Assim sendo, esse redirecionamento da esquerda, dos progressistas, tem de ter, como contrapartida, a transformação da União Europeia.
Obviamente, esse projeto também tem implicações sobre o modo como vemos a composição de uma maioria progressista em países como França ou Alemanha.
"A esquerda tem de se reconciliar com os pequenos burgueses"
Um dos erros históricos fatais que a esquerda cometeu durante o século 20 foi escolher a pequena burguesia, a classe dos pequenos quadros, como sua inimiga. Porque, sob ataque, a pequena burguesia desenvolveu as bases sociais dos movimentos fascistas. Hoje há mais pequenos burgueses, ou gente que aspira a sê-lo, do que proletários na indústria. Temos pois de ir ao encontro deles, nos termos deles, e temos de obter a adesão deles a um projeto de transformação da produção e aumento do poder.
Temos de construir uma maioria progressista que não inclua só a minoria organizada dos trabalhadores, que tem status e direitos adquiridos, mas também os trabalhadores precários, os pequenos burgueses e os quadros técnicos e profissionais. E essa aliança, essa coalizão progressista, é o verso do projeto social-liberal, e vai além de espalhar açúcar por cima de tudo: ele visa a dar poder e oportunidade para criar.
LC: O senhor vem do Brasil, o senhor sente que a esquerda da América Latina, que esteve várias vezes no poder nos últimos 15 anos, e a esquerda europeia, estão em contato e conversam suficientemente, ou haveria alguma espécie de autismo na Europa?
RMU: Ah, até que falam muito, mas só para trocar platitudes. Denúncias e lamentação. Essa visão é dominada pelo medo, pela insegurança e pelo rancor. E continuam ainda como 'humanizadores do inevitável'.
A esquerda precisa de "cálculo concreto e visão profética"
Mas a responsabilidade da esquerda não está em 'humanizar' coisa alguma. A responsabilidade da esquerda é servir como força de energização – o que exige sensibilidade política radicalmente diferente da que se vê hoje. Exige uma combinação de cálculo concreto e visão profética. Exige audácia política.
Não deveria estar acontecendo, como se vê acontecer agora na Europa, que essa energia só exista na direita e na extrema direita.
O temperamento dominante do progressismo, do esquerdismo, é pietista, muito mais que transformador. E isso é algo que temos de mudar radicalmente.
No fim do século 20, a definição de identidade de esquerda ou progressista passou a ser uma combinação de duas coisas: primeiro, um engajamento a favor da igualdade, no sentido de 'menos desigualdades'; segundo, um conservadorismo, um ceticismo institucional: aceita-se o contexto e tenta-se humanizá-lo.
No século 19, o objetivo dos radicais, dos republicanos, dos progressistas, dos socialistas, era criar um ser humano que tivesse grandeza, em outras palavras, empoderar o ser humano, dar-lhe meios para agir. A luta contra as desigualdades entrava como luta subsidiária. E o método era o da mudança estrutural. Eles tinham uma fórmula, um dogma institucional, os direitos liberais, o controle da economia pelo Estado.
Os progressistas do final do século 20 combinaram a fé que tinham na igualdade, com um conservadorismo institucional. E essa soma dessas duas coisas significa o quê? Significa que, dali em diante, tudo passa a depender da simples atenuação retroativa da desigualdade, espécie de prêmio de consolação: "o mundo é o que é, mas vamos torná-lo menos selvagem, menos cruel, para que nos inspire menos medo..." Esse o projeto deles.
Precisamos de "nova ideia de grandeza que não tenha por molde a autoconfiança aristocrática...
Em vez disso, o que temos de fazer é reencontrar e reinventar o projeto dos progressistas e socialistas do século 19. Precisamos de uma ideia de grandeza que não seja estreitamente formada no molde da autoconfiança aristocrática.
... e o método da mudança estrutural não deve ser dogmático"
E temos de repensar o método da mudança estrutural, para que não seja dogmático.
Como os progressistas e os socialistas do século 19, temos de reconhecer a primazia da transformação institucional, sim. Mas, diferente deles, não podemos confiar nosso futuro a um rascunho institucional dogmático .
Portanto, temos tarefa sem precedentes na experiência histórica: desenvolver uma imaginação de alternativas estruturais, sem sucumbir ao dogmatismo estrutural. Como? Para isso precisamos de instituições econômicas e políticas as quais, dentre outras características, tenha a capacidade de facilitar a própria transformação, de admitir a própria autocorreção em função da própria experiência, de tal forma que, caminhando, se possa descobrir o caminho, de onde advém também a necessidade da educação que descrevi. Eis o que quero.
"Ninguém deve aceitar o destino de morrer todos os dias"
Não quero que os europeus continuem a dormir, quero que despertem! Que acordem e permaneçam acordados. E que criem uma forma de educação e de vida política e econômica que os mantenha despertos. Porque nossa meta na vida deve ser só morrer uma vez.
LC: E o senhor está otimista?
"A esperança não é causa da ação. É consequência."*
RMU: Não sou otimista. Sou homem de esperança. Otimismo é atitude irônica e contemplativa. Como dizia Goethe, o homem que não age é sempre fatalista. Esperança não é adivinhar o futuro, não é uma previsão. Esperança é uma atitude existencial, que segue a ação, como se fosse sua sombra. Esperança não é causa da ação: é consequência. Ninguém precisa ter esperanças, para agir. Pode-se agir por incontáveis razões, inclusive cólera, indignação, ressentimento. Mas mediante a ação, seja intelectual seja prática, descobre-se a esperança. Recomendo aos que nos assistem que ajam, para encontrar a esperança.
LC: Roberto Mangabeira Unger, muito obrigado.*******
[1] O tema dessa entrevista tem sido frequente na reflexão do prof. Mangabeira Unger. Por exemplo, as três conferências intituladas "Making National Alternatives: China, Brazil, and the Path to National Development Now" [Construindo alternativas nacionais: China, Brasil e o caminho para o desenvolvimento nacional hoje], em Tsinghua, China, em outubro de 2017 (1-3, ing.) [NTs].
* A frase acompanha Mangabeira desde Conhecimento e Política (1978), seu primeiro livro, acessível em https://www.robertounger.com/ pt/2017/01/10/conhecimento-e- politica/ . Também apareceu em ato da campanha de Brizola à presidência em 1989, no MASP, onde a ouvimos pela primeira vez. Sobre Brizola (e outros temas), aliás, há maravilhosa coluna naFSP, de 26/6/2004 (NTs).
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