Soberania nacional: para quê?
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
"Nessas circunstâncias é preciso afirmar a soberania nacional, para permitir os avanços fatalmente desiguais entre um e outro país, mas sempre em conflito contra a lógica do ordoliberalismo.
O projeto nacional soberano popular, social e democrático proposto neste artigo é concebido sempre com isso em mente. O conceito de soberania que opera aqui nada tem a ver com a soberania burguesa-capitalista; ele difere da soberania burguesa-capitalista e, nesse sentido, deve ser definido como soberania popular."
A defesa da soberania nacional crítica leva a mal-entendidos graves, se a retiramos do conteúdo social de classe da estratégia na qual se inscreve. O bloco social dirigente nas sociedades capitalistas sempre concebe a soberania como um instrumento necessário para promover seus próprios interesses, que se baseiam ao mesmo tempo na exploração capitalista do trabalho e na consolidação das suas posições internacionais.
Hoje, no sistema neoliberal globalizado (que prefiro chamar de ordoliberal, tomando emprestado a Bruno Ogent esse excelente termo) dominado por monopólios financeirizados da tríade imperialista (EUA, Europa, Japão), as potências políticas responsáveis pela gestão do sistema para benefício exclusivo dos monopólios em questão concebem a soberania nacional como o instrumento que lhes permite melhorar suas posições "competitivas" no sistema global.
Os meios econômicos e sociais do Estado (submissão do trabalho às exigências dos empregadores, organização do desemprego e da precariedade, segmentação do mundo do trabalho) e as intervenções políticas (incluídas as intervenções militares) estão associados e combinados na busca de um único objetivo: maximizar o volume da renda capturada por seus monopólios "nacionais".
O discurso ideológico ordoliberal finge que estabelece uma ordem baseada exclusivamente no mercado em geral, cujos mecanismos seriam autorregulatórios e produtivos do ótimo social (evidentemente falso), sob a condição de que a concorrência seja livre e transparente (o que ela nunca é e não pode ser na era dos monopólios), assim como finge que o Estado não teria papel algum a desempenhar, além de garantir o funcionamento da concorrência em questão (o que é o contrário dos fatos: a concorrência é que exige a intervenção ativa do Estado a favor dela: o ordoliberalismo é uma política de Estado).
Este discurso – expressão da ideologia do "vírus liberal" – impede que se compreendam o real funcionamento do sistema e as funções que o Estado e a soberania nacional cumprem no mesmo sistema.
Os EUA dão o exemplo de uma prática que põe em ação decidida e contínua a soberania, entendida neste sentido "burguês", ou seja, hoje a serviço do capital dos monopólios financeirizados. O direito "nacional" garante aos EUA, como benefício, a supremacia afirmada e reconfirmada na "lei internacional". Foi assim também nos países imperialistas da Europa dos séculos 19 e 20.
As coisas mudaram com a construção da União Europeia? O discurso europeu pretende que sim, e como tal legitima a submissão das soberanias nacionais ao "Direito europeu" manifesto mediante as decisões dos órgãos de Bruxelas e do Banco Central Europeu (BCE), em virtude dos Tratados de Maastricht e de Lisboa. A liberdade de escolher que os eleitores têm é ela mesma limitada por exigências supranacionais bem visíveis do ordoliberalismo. Como diz Merkel: "esta escolha deve ser compatível com as exigências do mercado"; se não, perde a legitimidade.
No entanto, em contraponto a esse discurso, a Alemanha afirma, nos fatos, políticas nas quais exerce a própria soberania nacional, e empenha-se para forçar os associados europeus a respeitarem suas exigências. A Alemanha fez o ordoliberalismo europeu render para estabelecer a hegemonia alemã, particularmente na área do euro.
A Grã-Bretanha – ao escolher o Brexit – afirmou também, por sua vez, a decisão de fazer funcionar as vantagens de exercer a própria soberania nacional.
É compreensível, então, que o "discurso nacionalista" e o elogio sem limites que faz às virtudes da soberania nacional, compreendida desta maneira (a soberania burguesa-capitalista), sem qualquer referência ao conteúdo de classe dos interesses aos quais esse discurso serve, sempre tenha sido recebido com reservas, para dizer o mínimo, por correntes da esquerda sensu lato, isto é, por todos aqueles que cuidam de defender os interesses das classes trabalhadoras. Mas temos de cuidar para não defender, da soberania nacional, exclusivamente as modalidades do "nacionalismo burguês".
Esta defesa é necessária para atender a outros interesses sociais, que não os do bloco capitalista dominante. É defesa que será intimamente associada à implantação de estratégias para sair do capitalismo e embarcar na longa estrada que leva ao socialismo. Defender a soberania nacional é condição indispensável para que se possa avançar nesta direção. Isso, porque repor efetivamente em questão o ordoliberalismo global (e europeu) sempre será o produto de avanços desiguais de um país a outro, de um momento a outro. O sistema global (e o subsistema europeu) nunca foi transformado "de cima", por decisões coletivas da "comunidade internacional" (ou "europeia").
Os desenvolvimentos destes sistemas nunca foram senão o produto de mudanças que se fazem dentro dos Estados que os compõem, e dos resultados que tenham, concernentes às relações de força entre eles. O quadro no qual se travam as lutas decisivas que transformam o mundo ainda é o quadro definido pelo Estado ("nação").
Os povos das periferias do sistema mundial, polarizado por natureza, têm longa experiência deste nacionalismo positivo, isto é, anti-imperialista (que recusa a ordem mundial imposta) e potencialmente anticapitalista. Digo apenas potencialmente, porque esse nacionalismo também pode carregar a ilusão de construir um capitalismo nacional que conseguiria "alcançar" as construções nacionais dos centros dominantes.
O nacionalismo dos povos das periferias é progressista, se e somente se for anti-imperialista, hoje em processo de ruptura com o ordoliberalismo globalizado.
Em contraponto, um "nacionalismo" (nesse caso só aparente) que se encaixe no ordoliberalismo globalizado e, portanto, não questione as posições subalternas da Nação envolvida no sistema, torna-se o instrumento das classes dominantes locais interessadas em participar na exploração das suas populações; e eventualmente também de parceiros periféricos possivelmente mais fracos, ante os quais se comporta como um "subimperialismo".
Hoje, em todas as partes do mundo, do Norte e do Sul, são necessários e possíveis avanços – audaciosos ou limitados – na direção de sair do ordoliberalismo. A crise do capitalismo criou terreno favorável para que amadureçam circunstâncias revolucionárias. Essa exigência objetiva, necessária e possível pode ser condensada numa frase curta: "sair da crise do capitalismo, ou sair do capitalismo em crise?" (Título de um dos meus trabalhos recentes). Sair da crise não é problema nosso: é problema dos governantes capitalistas. Que consigam (e em minha opinião não caminham por vias que lhes permitam chegar lá), ou não consigam, não é problema nosso.
O que temos a ganhar com nos associar aos nossos adversários para reavivar o ordoliberalismo em pane? Esta crise criou, isso sim, pelo menos, oportunidades para avançadas consistentes, audaciosas, desde que os movimentos em luta adotem estratégias também consistentes.
Nessas circunstâncias é preciso afirmar a soberania nacional, para permitir os avanços fatalmente desiguais entre um e outro país, mas sempre em conflito contra a lógica do ordoliberalismo.
O projeto nacional soberano popular, social e democrático proposto neste artigo é concebido sempre com isso em mente. O conceito de soberania que opera aqui nada tem a ver com a soberania burguesa-capitalista; ele difere da soberania burguesa-capitalista e, nesse sentido, deve ser definido como soberania popular.
Misturar esses dois conceitos antinômicos, e a partir daí, rejeitar 'automaticamente' qualquer "nacionalismo", sem mais detalhes, destrói qualquer possibilidade de sair do ordoliberalismo. Infelizmente na Europa – e em outros pontos –, a esquerda contemporânea envolvida nas lutas muitas vezes tem feito precisamente esse amálgama e confusão.
Defender a soberania nacional não é sinônimo simples de querer "outra globalização, multipolar" (em contraponto da globalização existente), com base na ideia de que a ordem internacional deva ser negociada entre parceiros nacionais soberanos, iguais em direitos, sem ser unilateralmente imposta pelos poderosos – a tríade imperialista, EUA à frente – como é imposta no ordoliberalismo. E que fosse. Ainda assim seria preciso responder à pergunta: mundo multipolar, para fazer o quê? Porque é possível conceber mundo multipolar e ainda regido pela concorrência entre sistemas que, em casa, aceitam o ordoliberalismo; ou, diferente disso, como quadro que abre margens de manobra para as pessoas que queiram sair desse ordoliberalismo.
É preciso portanto especificar a natureza do objetivo visado no âmbito do sistema multipolar proposto. Como sempre na história, um projeto nacional pode ser híbrido, atravessado por contradições entre as tendências ativas, umas favoráveis a uma construção de nacional capitalista, e outros que se dão outros objetivos que vão além dos seus conteúdos sociais progressistas.
O projeto soberano da China oferece belo exemplo; outros exemplos são os projetos semisoberanos da Índia, e do Brasil antes do golpe da direita.
União Europeia em pane
Embora o colapso do projeto europeu (e, em particular, do subsistema do euro) já estivesse em andamento há anos (Ref. Samir Amin, Implosão do capitalismo contemporâneo, 2012, fr.), o Brexit é evidência de evento mais amplo.
O projeto europeu foi concebido desde o início em 1957, como o instrumento implementado pelos monopólios capitalistas dos parceiros – França e Alemanha em particular –, com o apoio dos EUA, para neutralizar o risco de deslizamentos socialistas, radicais ou moderados. O Tratado de Roma, ao gravar em pedra a santidade da propriedade privada, tornava ilegal qualquer aspiração ao socialismo, como disse, à época, Giscard d'Estaing. Na sequência e gradualmente, este traço foi reforçado pela integração europeia, construção rígida como concreto armado a partir dos Tratados de Maastricht e de Lisboa.
O argumento orquestrado pela propaganda para fazer aceitar o projeto foi que ele abolia definitivamente as soberanias nacionais dos estados da União, soberanias as quais (em sua forma burguesa/imperialista), estiveram na origem dos massacres sem precedentes das duas grandes guerras do século 20. Por isso, este projeto foi beneficiado por um eco favorável entre as gerações mais jovens, ao fazer brilhar uma soberania europeia democrática e pacifista, que se destacava acima das soberanias nacionais belicistas do passado.
De fato, a soberania dos Estados não foi jamais abolida, mas mobilizada para fazer aceitar o ordoliberalismo, que se tornara o enquadramento necessário para garantir aos monopólios, dali em diante financeirizados, o comando da gestão econômica, social e política das sociedades europeias; e, isso, fosse qual fosse a evolução das opiniões. O projeto europeu é baseado em uma negação absoluta da democracia (entendida como o exercício de escolher entre projetos sociais alternativos) que ultrapasse o "déficit de democracia" que se invoca a propósito das burocracias de Bruxelas.
O próprio projeto já ofereceu repetidas provas disso. Ele de fato aniquilou a credibilidade das eleições, que só são consideradas legítimas na medida em que atendam as exigências do ordoliberalismo.
Mas a Alemanha sempre pôde, no contexto desta construção europeia, afirmar a própria hegemonia. De tal modo que a soberania (burguesa/capitalista) da Alemanha tomou o lugar, como substituta, de uma soberania europeia inexistente. Os parceiros europeus são convidados a alinhar-se sob os requisitos dessa soberania superior à soberania dos outros.
A Europa tornou-se a Europa alemã, em particular na eurozona, cuja moeda é gerida por Berlin para benefício preferencial dos Konzern [al. no orig., "grupos"] alemães. Políticos importantes, como o ministro das Finanças, Schäuble, dedicam-se a fazer chantagem permanente e ameaçam os parceiros europeus com uma possível "saída da Alemanha" (Gexit), caso questionem a hegemonia de Berlim.
Ninguém extrai desses fatos a conclusão evidente: que o modelo alemão envenena toda a Europa, inclusive a Alemanha.
O ordoliberalismo é a fonte da persistente estagnação do continente, juntamente com políticas permanentes de austeridade. O ordoliberalismo é pois um sistema irracional, se nos colocamos na perspectiva de proteger os interesses das maiorias populares em todos os países da UE, inclusive na Alemanha, e na perspectiva de defender, para o longo prazo, condições ecológicas da reprodução da vida econômica e social.
Além disso, o ordoliberalismo leva ao agravamento interminável da desigualdade entre os parceiros; está na origem dos excedentes comerciais da Alemanha e dos déficits simétricos dos demais países.
Mas o ordoliberalismo é opção perfeitamente racional do ponto de vista dos monopólios financeiros, aos quais assegura que suas rendas monopolísticas não pararão de crescer. Este sistema não é viável. Não porque enfrente crescente resistência de suas vítimas (até agora ineficaz), mas por causa de sua própria contradição interna: o crescimento da renda dos monopólios impõe o agravamento e a estagnação cada vez mais graves, da situação dos parceiros frágeis (Grécia e outros).
O capitão que está ao leme, dirige o navio europeu diretamente contra recifes visíveis. Os passageiros suplicam que o capitão mude de rumo, e nada. O capitão, protegido por uma guarda pretoriana (Bruxelas, BCE) permanece inabalável e invulnerável. Só resta lançar os botes ao mar. Claro que é perigoso, mas menos perigoso que o iminente naufrágio certo. A imagem ajudará a compreender a natureza das duas opções, entre as quais os críticos do sistema europeu vigente hesitam.
Alguns argumentam que é preciso que todos permaneçam a bordo; fazer a construção europeia evoluir em novas direções que respeitem os interesses das maiorias populares. E insistem, apesar dos repetidos fracassos das lutas inscritas nesta estratégia. Outros conclamam a abandonar o navio, como se viu na decisão dos ingleses. Deixar a Europa? Sim, mas... para fazer o quê?
As campanhas de desinformação orquestradas pelo clero 'midiático' a serviço do ordoliberalismo contribuem para embaralhar as cartas. Misturam-se todas as formas possíveis de usar a soberania nacional – e todas sempre apresentadas como demagógicas, "populistas" irrealistas, chauvinistas, ultrapassadas pela história, nauseabundas. O público é metralhado por discursos sobre segurança e imigração. E paralisa-se o trabalho de chamar a atenção para a responsabilidade que cabe ao ordoliberalismo e aos ordoliberais, na degradação das condições em que vivem os trabalhadores. Infelizmente, setores inteiros da esquerda caem nesse jogo manipulado.
De minha parte, digo que não há o que esperar do projeto europeu, que só pode ser transformado de dentro para fora. É preciso desconstruí-lo para eventualmente o reconstruir, adiante, sobre outras bases. Porque se recusam a admitir essa conclusão, muitos dos movimentos em conflito com o ordoliberalismo permanecem hesitantes quanto aos objetivos estratégicos das próprias lutas: sair ou ficar na Europa (ou no euro)? Nestas circunstâncias, os argumentos apresentados por uns e outros são os mais variados, baseados muitas vezes em questões triviais, às vezes em falsos problemas orquestrados pelos meios de comunicação (a segurança, os imigrantes), resultando em escolhas malcheirosas, raramente sobre os desafios reais.
Sair da OTAN, por exemplo, é caminho raramente invocado. Resultado, a onda crescente que se expressa na rejeição à Europa (como o Brexit) mostra que já se apagaram todas as ilusões sobre a possibilidade de reformar a Europa.
Mesmo assim, a confusão assusta. A Grã-Bretanha não pensa, certamente, em pôr a operar a própria soberania para abraçar alguma via que a afastará do ordoliberalismo. Ao contrário, Londres deseja abrir-se ainda mais para os EUA (a Grã-Bretanha não tem tantas reservas, quanto outros países europeus, contra o tratado da parceria de livre comércio transatlântico); e dá mais alta prioridade aos países da Commonwealth e aos emergentes do Sul, que à Europa. Só isso, e nada, com certeza, de melhor programa social. Além do mais, a hegemonia alemã é menos aceitável para os britânicos do que parece ser para outros, na França e Itália.
Os fascistas europeus proclamam sua hostilidade à Europa e ao euro. Mas temos de saber que o conceito de soberania dos fascistas europeus é o mesmo da burguesia capitalista; o projeto deles é buscar a competitividade nacional no sistema do ordoliberalismo, associados a campanhas nojentas contra imigrantes.
Os fascistas nunca defendem a democracia, sequer a democracia eleitoral (exceto por oportunismo), muito menos alguma democracia mais avançada. Diante do desafio, a classe dominante não hesita: ela sempre prefere, para sair das crises, a via fascista. A Ucrânia é prova disso.
O espanto ante o que parece ser fascistas que rejeitam a Europa paralisa as lutas que se travam contra o ordoliberalismo. O argumento frequentemente invocado é: como poderíamos unir-nos com os fascistas em causa comum contra a Europa?
Estas confusões fazem esquecer que o sucesso dos fascistas é produto, precisamente, da timidez da esquerda radical. Se a esquerda radical tivesse defendido com audácia um projeto de soberania popular, que explicitasse claramente o conteúdo popular e democrático; se o tivesse associado à denúncia contra o projeto de soberania mentiroso demagógico dos fascistas, a esquerda teria conquistado as vozes que, hoje, estão com os fascistas.
Defender a ilusão de alguma reforma impossível da Europa não impede a implosão. O projeto europeu se desfiará, para beneficiar uma reemergência do que se parece muito mais, infelizmente, com a Europa dos anos 1930s e 1940s: uma Europa alemã; Grã-Bretanha e Rússia fora dela, França hesitante entre Vichy (hoje no governo) e de Gaulle (ainda invisível); Espanha e Itália navegando na esteira de Londres ou de Berlim; etc.
Soberania nacional a serviço do povo
A soberania nacional é o instrumento indispensável de progresso social e progresso da democratização, tanto ao Norte como ao Sul do planeta. Esses avanços são controlados por lógicas que se situam além do capitalismo, numa perspectiva favorável para a emergência de um mundo policêntrico e da consolidação do internacionalismo dos povos.
Nos países do sul global, o projeto soberano nacional deve "andar sobre as próprias pernas":
(i) engajar-se na construção de um sistema industrial autocentrado e integrado, no qual os diferentes ramos da produção passam a ser fornecedores e consumidores uns dos outros. O ordoliberalismo não permite essa construção. Com efeito, o ordoliberalismo concebe a "competitividade" de cada estabelecimento industrial considerada por si só. A aplicação deste princípio dá prioridade então à exportação e reduz as indústrias dos países do sul ao estatuto de subcontratantes dominados pelos monopólios dos centros imperialistas, os quais por essa via apropriam-se de grande parte do valor criado aqui e o convertem em renda imperialista de monopólio.
Em contraponto, construir um sistema industrial requer planejamento pelo Estado e controle nacional sobre a moeda, o sistema fiscal, o comércio exterior.
(ii) Envolver-se numa via original de renovação da agricultura camponesa, com base no princípio de que as terras agrícolas são bem comum da nação, gerida de modo a assegurar a todas as famílias de agricultores o acesso à terra e aos meios de explorá-la. Deve-se conceber sobre nessa base, para garantir o aumento da produção por família/hectare; com as indústrias prioritárias instaladas para permitir aquele aumento. O objetivo desta estratégia é garantir à nação a própria soberania alimentar; e o controle sobre os fluxos migratórios do campo para as cidades, ajustando o ritmo desses fluxos ao crescimento do emprego urbano.
A articulação do progresso em cada um desses dois campos é o principal foco de políticas de Estado que garantem que se consolidem amplas alianças populares "trabalhadores e camponeses". Essa aliança cria um terreno favorável para avanços da democracia participativa.
Nos países do norte a soberania popular também deve romper com o ordoliberalismo, o que implica políticas audaciosas que chegam até à nacionalização dos monopólios e a pôr em andamento os meios para socializar a gestão daqueles monopólios. Isto, obviamente, implica moeda, crédito, fiscalização e câmbio e comércio exterior sob controle nacional.
O sistema imperialista vigente faz funcionar uma gama diferenciada de maneiras pelas quais ele exerce seu domínio sobre as nações das periferias do sistema global e a exploração delas. Nos países do sul, avançados na industrialização de segmentos do sistema global deslocalizado e controlados pelo capital dos monopólios financeirizados da tríade imperialista (EUA, Europa Ocidental e Central, Japão), reduzidos ao status de subcontratantes, encontra-se o principal meio pelo qual uma massa crescente do valor gerado nas economias locais dependentes é convertida em renda dos monopólios imperialistas. Em muitos países do sul global, os modos de operação também assumem a forma de brutal pilhagem de recursos naturais (petróleo, minérios, terrenos agrícolas, recursos em água e em sol), mediante ataques financeiros que capturam a poupança nacional. A obrigação de garantir prioritariamente o serviço da dívida externa é o meio pelo qual operam aqueles ataques. O déficit estrutural das finanças públicas nestes países oferece a oportunidade para que os monopólios imperialistas apliquem lucrativamente os próprios crescentes excedentes financeiros gerados pela crise do sistema imperialista globalizado e financeirizado, forçando os países em desenvolvimento a endividar-se sob condições abusivas. O ataque financeiro alcança seus efeitos destrutivos também nos centros imperialistas.
O crescimento contínuo do volume da dívida pública em relação ao PIB é meta ativamente buscada e sustentada pelo capital financeiro nacional e internacional, porque grandes dívidas públicas permitem aplicação frutífera de excedentes. O serviço da dívida pública contraída no mercado financeiro privado oferece a oportunidade de instalar um dreno nos rendimentos dos trabalhadores, que permite que cresça a renda dos monopólios. A dívida portanto alimenta o crescimento continuado da desigualdade na distribuição de renda e riqueza. O discurso oficial sobre a intenção de implementar políticas para reduzir a dívida é inteiramente mentiroso: o objetivo é sempre aumentar, nunca reduzir, o volume da dívida.
A globalização neoliberal continua a atacar massivamente a agricultura camponesa na Ásia, África e América Latina. Aceitar essa força componente importante da globalização levou a pauperização / exclusão / miséria de centenas de milhões de pessoas em três continentes. Aceitá-la seria realmente pôr fim a qualquer tentativa de nossas sociedades para se afirmarem na sociedade global das nações.
A agricultura capitalista moderna, representada tanto pela agricultura familiar rica como por empresas do agronegócio, procura atacar massivamente a produção camponesa mundial. A agricultura capitalista governada pelo princípio de rentabilidade do capital localizado na América do Norte, Europa, Cone Sul da América Latina e Austrália, emprega apenas umas poucas dezenas de milhões de agricultores, mas tem a mais alta produtividade global; enquanto os sistemas de agricultura camponesa ainda dão trabalho a quase a metade da humanidade – três bilhões de pessoas.
O que aconteceria se "a agricultura e a produção de alimentos" fossem tratadas como qualquer outra forma de produção capitalista, sujeitas às regras de concorrência em um mercado aberto e não regulamentado? Será que esses princípios facilitariam a aceleração da produção?
Na verdade, pode-se imaginar cerca de cinquenta milhões de novos agricultores modernos a mais, produzindo o que os três bilhões de agricultores presentes podem oferecer no mercado além da própria (e frágil) subsistência. Para que alternativa desse tipo fosse bem-sucedida, seria necessário transferir para os novos agricultores áreas significativas de solos aráveis (terras tomadas das que são hoje ocupadas pelas sociedades camponesas); acesso aos mercados de capital (para comprar equipamentos); e acesso aos mercados consumidores. Esses agricultores facilmente fariam concorrência aos bilhões de camponeses hoje existentes. E o que aconteceria com eles? Bilhões de produtores não competitivos seriam eliminados, no curto período histórico de algumas poucas décadas.
O principal argumento que se ouve a favor da legitimação da alternativa "concorrencial" é que foi o que se viu acontecer na Europa no século 19 e contribuiu para formar sociedades industriais e urbanas ricas, depois pós-industriais capazes de alimentar as nações e até de exportar excedentes de agroalimentos. Por que não repetir este modelo nos países do terceiro mundo de hoje?
Não. Esse argumento ignora dois fatores fundamentais que tornam impossível reproduzir esse modelo hoje, em países do Terceiro Mundo.
O primeiro desses fatores é que o modelo europeu desenvolveu-se durante um século e meio com tecnologias industriais intensivas em mão de obra. As tecnologias contemporâneas exigem número muitíssimo inferior de trabalhadores. Portanto, se os recém-chegados do Terceiro Mundo querem ser competitivos nos mercados mundiais, eles têm de adotar aquelas tecnologias para suas exportações industriais.
O segundo é que, ao longo de sua demorada transição, a Europa poderia induzir a emigração do próprio excedente populacional, em direção às Américas.
Podemos imaginar outras possibilidades baseadas no acesso universal à terra para todos os camponeses. Neste contexto, está implícito que a agricultura camponesa tem de ser subsidiada e simultaneamente engajada num processo de mudança e avanço tecnológico e social continuados. E isso num ritmo que permita progressiva transferência para o emprego não agrícola, ao ritmo em que o sistema se desenvolva. Tal objetivo estratégico exige políticas que protejam a produção camponesa de alimentos, contra a concorrência desigual pelas agriculturas nacionais modernizadas e o agronegócio internacional.
Essa meta põe em questão os modelos de desenvolvimento industrial e urbano – que deverão basear-se menos nas exportações e nos baixos salários (que por sua vez implicam baixos preços dos alimentos), e dar mais atenção à expansão de um mercado interno socialmente equilibrado. Além disso, tal estratégia facilitaria a integração de todas as políticas que garantam a soberania alimentar nacional, condição essencial para que um país seja membro ativo da comunidade internacional, reforçando o seu necessário grau de autonomia e a capacidade de negociação.
Leituras complementares
Para abreviar, não abordei aqui questões adjacentes importantes: o surgimento do capitalismo dos monopólios generalizados; a nova proletarização generalizada; a militarização da globalização e as disputas pelo acesso aos recursos naturais; a globalização financeira, elo fraco do sistema; a reconstrução da solidariedade entre os países em desenvolvimento; a estratégia de lutas em curso; as exigências do internacionalismo anti-imperialista dos povos. Remeto o leitor ao meu livro A implosão do capitalismo contemporâneo [fr. L’implosion du capitalisme contemporain] e chamo a atenção para as construções institucionais que propus, destinadas a consolidar o conteúdo popular da gestão da economia da transição para além do capitalismo (pp. 123-128 do livro citado).*****
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