"Livra-me da culpa dos crimes de sangue, ó Deus, Deus da minha salvação!
E a minha língua aclamará a tua justiça."
Salmo 51, 14, Bíblia Sagrada*
E a minha língua aclamará a tua justiça."
Salmo 51, 14, Bíblia Sagrada*
Os EUA querem que a Rússia seja julgada pelos crimes de guerra que teria cometido na Síria. O secretário de Estado John Kerry disse em Washington na 6ª-feira que "a Rússia e o regime [sírio] devem ao mundo mais do que uma explicação (...) São atos que clamam por investigação de crimes de guerra. E os que cometeram esses crimes têm de ser e serão julgados (...). Temos também de manter a pressão sobre a Rússia, no que tenha a ver com cumprir o Acordo de Minsk (sobre a Ucrânia). E [os EUA, aqui] declaram publicamente que, se não pudermos implementar o Acordo de Minsk nos próximos meses, ou chegar a um plano claro sobre o que, exatamente será implementado (...), nesse caso será absolutamente necessário avançar além das sanções [contra a Rússia]".
Evidentemente, a temperatura já glacial das relações EUA-Rússia caiu mais uns bons 10ºC abaixo de zero. Nem no auge da Guerra Fria, quando a União Soviética[1] era habitualmente tratada como um 'império do mal', Washington sequer cogitou de julgar, por crime de guerra, as autoridades do Kremlin.
Tampouco a União Soviética algum dia cogitou de tal 'punição' contra os EUA. Mesmo depois de os norte-americanos terem matado centenas de milhares de civis iraquianos, líbios e afegãos, e de terem promovido destruição generalizada, sem critério ou limites, daqueles países, ao longo da última meia década e pouco, e apesar de os EUA ainda hoje participarem ativamente da guerra contra o Iêmen, Moscou nunca 'exigiu' que George W. Bush ou Barack Obama – ou, que fosse, Hillary Clinton – fossem julgados como criminosos de guerra.
O que aconteceu? Que 'entidade' escatológica teria baixado sobre o espírito de Kerry, que fala hoje como homem tão frustrado que já perdeu o autocontrole e a fleuma? É que Kerry já sabe que foi derrotado, na disputa diplomática, pelo brilhantíssimo embaixador russo Serguey Lavrov, que Karry tratou como se fosse alguma espécie de imbecil que "a América" engambelaria facilmente.
Os EUA acalentaram a esperança de, de algum modo, conseguir preservar a frente afiliada da al-Qaeda, al-Nusra, para usá-la como ponta de lança para um ataque final que, ninguém em Washington tinha qualquer dúvida, consumaria a 'mudança de regime' na Síria.
A qual, se não acontecesse ainda no governo Obama, com certeza aconteceria no governo de quem o sucedesse.
Fato é que Lavrov percebeu o que Kerry tentava urdir e viu além. Afinal, Kerry, que não passa de político esperto com alguma experiência de diplomacia, de modo algum seria adversário à altura de Lavrov, diplomata de carreira e intelectual de vastíssima experiência. Lavrov jogou e deixou jogar, sem alterar sua poker face. E 'John' acabou preso num acordo de paz que o Pentágono jamais aprovaria, e cujo objetivo era fazer picadinho dos terroristas da al-Nusra.
Por outro lado, Kerry também se sente frustrado com o presidente Barack Obama, que não mostrou disposição para abrir trilha paralela de intervenção militar na Síria, a qual, pensava Jerry, daria considerável impulso à trilha diplomática e ao próprio Kerry. Kerry é homem da velha escola de agentes do poder em Washington, para os quais os Marines existem para limpar o campo para os diplomatas, que vêm depois (Kerry foi Marine).
O que Kerry não percebeu foi que o chão onde os EUA pisam hoje no Oriente Médio já não é o mesmo de antes. As relações de EUA com Turquia e também com a Arábia Saudita, as duas grandes potências regionais que garantiram lenha e combustível para manter ativo o fogo do conflito sírio, estão hoje tão amarguradas, a ponto de Washington estar obrigada a tocar solo naquele teatro, depois que toda a orquestra levantou-se, deu as costas ao maestro e saiu do palco (vide Sabah).
O que mais me intriga é por que Kerry só quer que líderes russos e sírios sejam acusados de ter cometido crimes de guerra.
Por que não incluiu na lista o Supremo Líder do Irã Ali Khamenei, comandante-em-chefe do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica? É que (Kerry esbraveja, mas não pode nem 'declarar' que "F*da-se o Irã") a reaproximação com o Irã está embalada para permanecer na história como o mais importante legado do governo Obama. Contudo, não fosse a luta incansável do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica e o preço altíssimo que aquela luta custou ao Irã em sangue e dinheiro, o governo sírio jamais teria chegado à posição atual, de controlar os combates (Times of Israel).
O terceiro aspecto fascinante da apocalíptica declaração de Kerry é que ele parece estar sugerindo que os EUA ainda estariam considerando o objetivo de vencer a guerra na Síria. Sim, porque é traço histórico repetido que o vencedor mande o derrotado para tribunal de crimes de guerra – seja Slobodan Milosevic ou Saddam Hussein.
Dito de outro modo, será que Kerry quis-dizer que os EUA contam com derrotar a Rússia, em guerra? Estaria 'prognosticando' que a 3ª Guerra Mundial estaria logo ali, virando a esquina? Será que não vê que a destruição total de seu próprio país num confronto nuclear com a Rússia, tornaria completamente irrelevante toda essa conversa sobre 'crimes de guerra'?
Kerry deve estar ainda mais frustrado, agora que o prêmio Nobel já foi para o presidente da Colômbia! Que patético fim de carreira na política e na diplomacia, sem ninguém que reconheça o seu belo trabalho! O Kerry que deixa o palco da diplomacia internacional é homem muito amargurado.
Dificilmente Lavrov responderá. Afinal, o que poderia dizer? Kerry deu passo maior que as pernas, no esforço para inverter a maré da história. Apesar de tantas valorosas tentativas, não conseguiu apagar a realidade geopolítica de que os EUA são potência em retirada. Não só no Oriente Médio, mas também no Pacífico Asiático.
Ver pelas costas uma superpotência que caminha rumo ao horizonte jamais é visão agradável. Aconteceu com Roma, Bizâncio, Espanha, Portugal, França, Grã-Bretanha. Basta ver quem já levanta a cabeça e põe-se a ameaçar os EUA, lá do longínquo Mar do Sul da China (Wall Street Journal).*****
* Epígrafe acrescentada pelos tradutores (NTs).
[1] No orig. "the former Soviet Union". Esse coletivo NÃO ESCREVE "extinta União Soviética". Afinal, se ninguém pensa, diz ou escreve, "os extintos EUA-colônia", "a extinta Alemanha Nazista", "a extinta Espanha Fascista" ou o "extinto Consenso de Washington", referindo-se propriamente àquelas entidades nacionais ou supranacionais contemporâneas, mas também, impropriamente, às entidades que sucederam aquelas sempre repetidas "extintas", mas nem tão "extintas", nós NÃO ESCREVEMOS "extinta União Soviética". Resistimos assim contra o esforço organizado no/pelo 'ocidente' para fazer-esquecer a experiência comunista da União Soviética, a mesma que os próprios russos quiseram fazer-lembrar ao mundo, bem recentemente, na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi [NTs].
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