domingo, 9 de outubro de 2016

The Saker: Se EUA atacarem a Síria, esperem resposta assimétrica

06/10/2016, The SakerUnz Review








As tensões entre Rússia e EUA alcançaram nível sem precedentes. Concordo integralmente com os participantes dessa edição de CrossTalk –, para os quais a situação e pior e ainda mais perigosa que durante a Crise dos Mísseis Cubanos. Os dois lados estão partindo para o chamado "Plano B"que, dito em termos simples, significa, no melhor dos casos, fim das negociações; e, no pior, guerra entre Rússia e EUA.

O dado chave a compreender na posição dos russos nesse conflito, como em outros conflitos recentes com os EUA é que a Rússia ainda é muito mais fraca que os EUA e, assim sendo, a Rússia não quer guerra. Não implica dizer que o país não esteja preparando-se ativamente para a guerra. Sim, é isso, precisamente, que a Rússia faz muito e muito ativamente. O significado desse dado chave é que, no caso de que chegue a haver conflito, a Rússia se empenhará muito, o mais possível, em mantê-lo o mais limitado possível.

Em teoria, eis, em linhas muito esquemáticas, os possíveis níveis de confronto:

1) Impasse militar à la Berlim em 1961. Pode-se dizer que é isso que já está acontecendo hoje, embora em maior distância e com menor visibilidade.
2) Incidente militar único, como aconteceu recentemente quando a Turquia derrubou um jato SU-24 russo, e a Rússia optou por não retaliar.
3) Série de confrontos localizados, semelhante ao que já está realmente acontecendo entre Índia e Paquistão.
4) Conflito limitado ao teatro de guerra sírio (como, pode-se dizer a guerra entre Reino Unido e Argentina pelas Ilhas Malvinas).
5) Confronto militar regional ou global entre EUA e Rússia.
6) Guerra termonuclear total entre EUA e Rússia.

Durante meus anos de estudante de estratégia militar, participei de muitos exercícios de escalada e desescalada e posso atestar que, por mais que seja muito fácil vir com cenários de desescalada, ainda estou por ver cenário crível para desescalada. Possível, isso sim, é a chamada "escalada horizontal", ou "escalada assimétrica", na qual um dos lados escolhe não subir a aposta, ou escalar diretamente, mas escolhe, em vez disso, um alvo diferente contra o qual retaliar, não necessariamente alvo mais valioso, apenas diferente no mesmo nível de importância conceitual (nos EUAJoshua M. Epstein e Spencer D. Bakich fizeram a maior parte do trabalho de abrir a trilha, nesse tópico).

A principal razão pela qual podemos esperar que o Kremlin tente encontrar opções assimétricas para responder a ataque dos EUA é que no contexto sírio, a Rússia está inapelavelmente inferiorizada, na relação armada contra EUA/OTAN, pelo menos em termos quantitativos. As soluções lógicas para os russos estão em usar a própria vantagem qualitativa, ou visar "alvos horizontais" como opção para retaliação possível. Essa semana, aconteceu algo interessante e absolutamente não característico: o major-general Igor Konashenkov, Diretor do Diretorado do Serviço de Mídia do Ministério da Defesa da Federação Russa mencionou abertamente essa opção. Eis o que Konashenkov disse:

"Quanto às ameaças de Kirby sobre possíveis perdas de aeronaves russas, e o envio de soldados russos em sacos de cadáveres, de volta à Rússia, gostaria de dizer que sabemos onde e quantos "especialistas não oficiais" operam na Síria e na província de Aleppo e sabemos que estão envolvidos no planejamento operacional e que supervisionam as operações dos terroristas e militantes. Claro, pode-se continuar a repetir que não conseguem separar terroristas da [Frente] al-Nusra e as forças "da oposição". Mas se alguém tentar cumprir essas ameaças, absolutamente nada assegura que esses militantes tenham tempo para se escafeder de onde estão."



Boa, hein? Konashenkov parece estar ameaçando só os "militantes", mas faz clara menção a muitos "especialistas não oficiais" entre aqueles militantes e que a Rússia sabe exatamente onde estão e quantos são. Claro, oficialmente Obama declarou que há umas poucas centenas desses conselheiros especiais norte-americanos na Síria. Fonte russa bem informada sugere que sejam cerca de 5.000 'conselheiros' estrangeiros ao lado dos Takfiris incluindo cerca de 4.000 norte-americanos. Suponho que a verdade seja algo entre um e outro número.


Assim sendo, a ameaça russa é simples: ataquem os russos e os russos atacamos forças dos EUA na Síria. Claro, a Rússia negará veementemente ter alvejado soldados norte-americanos e insistirá que só atacou terroristas, mas os dois lados compreendem o que se passa aqui. Interessante também que ainda na semana passada a agência de notícias iraniana noticiou que esse ataque, pelos russos, já aconteceu:

30 oficiais de inteligência estrangeira de Israel mortos nem ataque com míssil Caliber russo, em Aleppo

"Os navios de guerra russos dispararam três mísseis Caliber contra a sala de coordenação de operações de oficiais estrangeiros na região de Dar Ezza na parte ocidental de Aleppo próximo à montanha Sam’an, matando 30 oficiais israelenses e ocidentais", lia-se na edição em árabe da Agência de Notícias, em Sputnik da Rússia, citando fonte no campo de batalha em Aleppo, na 4ª-feira. A sala das operações estava localizada na parte ocidental da província de Aleppo, em antigas cavernas, a meia altura das altíssimas montanhas Sam’an. A região está abrigada no fundo do vale de uma cadeia de montanhas. Vários oficiais dos EUA, sauditas, cataris e britânicos também foram mortos, além de oficiais israelenses. Os oficiais estrangeiros que foram mortos nas operações contra a sala de operações em Aleppo dirigiam dali os ataques dos terroristas contra Aleppo e Idlib."

Se isso realmente aconteceu, ou se os russos estão vazando essas histórias para indicar que isso poderia ter acontecido, permanece o fato de que forças dos EUA na Síria podem tornar-se alvo óbvio de retaliação operada pelos russos, seja com mísseis cruzadores, bombas de gravidade ou operação de ação direta pelas forças especiais russas. Os EUA também têm várias instalações militares clandestinas na Síria, incluído pelo menos um campo de pouso com a aeronave tiltirotor V-22 Osprey multimissão.


Outro interessante desenvolvimento recente foi a notícias, distribuída pelo canal Fox News, de que os russos estão estacionando o S-300V (também chamado "sistema antimísseis e antiaéreo SA-23 Gladiator") na Síria. Vejam nesse excelente artigo uma discussão detalhada das capacidades desse sistema de mísseis. Resumo o que lá se lê, se disser que o S-300V pode engajar mísseis balísticos, mísseis cruzadores, aeronaves de muito baixa altitude RCS ("invisíveis" a radares, chamados stealth) e aeronaves AWACS (Sistema Aéreo de Alerta e Controle [embarcado]; ing. Airborne Warning and Control System). Trata-se de sistema de defesa aérea de nível Exército/Exército, bem capaz de defender grande parte do espaço aéreo sírio, mas também capaz de alcançar a Turquia, Chipre, o Mediterrâneo ocidental e o Líbano. Os poderosos radares desse sistema não só conseguem detectar e acompanhar aeronaves dos EUA (inclusive as "stealth") em grandes distâncias, mas, também, podem dar tremenda ajuda aos poucos jatos de combate russos, por que lhes dão imagens claras das suas e das aeronaves inimigas, servindo-se de datalinks encriptados. Finalmente, a doutrina aérea dos EUA é extremamente dependente de aeronaves AWACS equipadas para guiar e dar apoio aos jatos dos EUA. O sistema S-300V forçará os AWACS de EUA/OTAN a operar a uma distância muito desconfortável. Entre os radares de mais longo alcance dos Sukhois russos, os radares dos cruzadores russos ao largo da costa síria, e os radares S-300 e S-300V em terra, os russos terão muito melhor clareza informacional da situação que seus contrapartes norte-americanos.

Parece que os russos estão tentando muito empenhadamente compensar a própria inferioridade numérica, instalando na região sistemas finais de alta qualidade, dos quais os EUA não têm equivalentes reais, nem contramedidas eficazes.

Há basicamente duas opções de contenção [ing. deterrence]: negação, quando se impede que o inimigo atinja os alvos definidos; e retaliação, quando se tornam os custos de um ataque inimigo inaceitavelmente altos para ele. Os russos parecem estar trabalhando as duas trilhas ao mesmo tempo. Pode-se resumir a abordagem russa, nos seguintes termos:

1) Adiar o mais possível qualquer confronto (ganhar tempo).

2) Tentar manter qualquer confronto no nível mais baixo possível de escalada.
3) Se possível, replicar com escaladas assimétricas/horizontais.

4) Em vez de "prevalecer" contra EUA/OTAN – tornar altos demais, os custos de qualquer ataque.

5) Tentar pressionar os "aliados" dos EUA, para criar tensões dentro do Império.

6) Tentar paralisar os EUA, no plano político, tornando altos demais os custos políticos de qualquer ataque.

7) Tentar criar gradualmente as condições em campo (Aleppo), para tornar fútil qualquer ataque dos EUA.
Para os educados por filmes de Hollywood e que ainda assistem à TV, essa estratégia só gera condenações e frustração. Há milhões de estrategistas de poltrona que têm certeza de que eles, sozinhos, fariam melhor trabalho que Putin, na reação contra o Império Norte-americano. Essa pessoas já há *anos* dizem que Putin "entregou" [orig. "sold out"] os sírios (e os novorrussos), e que os russos teriam de fazer X, Y e Z para derrotar o Império Anglo-Sionista. A boa notícia é que nenhum desses estrategistas de poltrona sentam no Kremlin e que, ao longo dos anos os russos nunca se afastaram da estratégia que traçaram, um dia de cada vez, mesmo quando criticados pelos que querem soluções rápidas e "fáceis". Mas a principal boa notícia é que a estratégia russa está funcionando. Não só a Ucrânia ocupada por nazistas está literalmente ruindo, caindo aos pedaços, mas os EUA, basicamente, já não têm opções na Síria (vejam essa excelente análise construída por meu amigo Alexander Mercouris, publicada no Duran).


Os únicos passos lógicos que restam para os EUA na Síria são: aceitar os termos que os russos oferecem; ou partir. O problema é que eu absolutamente não estou convencido de que os neoconservadores que governam a Casa Branca, o Congresso e a mídia-empresa norte-americana sejam "racionais", nem perto disso. Essa é a razão pela qual os russos empregaram tantas táticas de adiamento; e razão pela qual atuaram com tal e tamanho cuidado: estão lidando com ideólogos profissionais incompetentes, que simplesmente não jogam pelas regras não escritas, mas claras, das relações internacionais civilizadas. Eis o que faz a crise atual tão pior, até, que a Crise dos Mísseis Cubanos: uma superpotência, claramente, enlouqueceu.



Os norte-americanos são doidos o suficiente para correr o risco de mergulhar na 3ª Guerra Mundial por causa de Aleppo? Talvez sim, talvez não. 



Mas e se reformularmos a mesma pergunta e perguntarmos:

Os norte-americanos são doidos o suficiente para arriscar uma 3ª Guerra Mundial para manter o próprio status como "única nação indispensável", "líder do mundo livre", "cidade no alto da colina" e todo o resto desse nonsense pró-imperialismo?

Nesses termos, eu diria que sim; e podem até já estar fazendo exatamente isso.


Afinal, os neoconservadores acertam ao sentir que, se a Rússia conseguir safar-se, tendo desafiado abertamente e derrotado os EUA na Síria, ninguém nunca mais levará muito a sério os anglo-sionistas.



Como vocês supõem que os neoconservadores sentem-se, quando veem o presidente das Filipinas, chamar Obama, publicamente de "filho de uma puta" e, na sequência, dizer que a União Europeia "que se foda"?



Claro, os neoconservadores ainda podem encontrar algum consolo na abjeta subserviência das elites políticas europeias, mas mesmo assim – eles sabem o que está escrito no muro e que o Império deles está ruindo rapidamente, não só na Síria, Ucrânia e na Ásia, mas também dentro dos EUA. O maior perigo aqui é que os neoconservadores podem tentar arregimentar a nação, seja encenando mais um ataque sob falsa bandeira ou disparando uma crise internacional real.


Nesse ponto do tempo, tudo que podemos fazer é esperar e contando com que haja resistência suficiente dentro do governo dos EUA para impedir que os EUA ataque a Síria antes da posse do próximo governo. E, por menos que eu apoie Trump, tenho de conceder que Hillary e a escória de neoconservadores russofóbicos que a cerca são tão horrendas, que Trump dá-me alguma esperança, pelo menos na comparação com Hillary.

Assim sendo, se Trump vence, nesse caso a estratégia dos russos estará basicamente justificada. Uma vez que Trump esteja na Casa Branca, há pelo menos a possibilidade de uma redefinição ampla das relações EUA-Rússia, a qual, é claro, começa por uma desescalada na Síria: enquanto Obama/Hillary categoricamente recusam-se a livrar-se do Daech (quero dizer: al-Nusra, al-Qaeda e suas várias denominações), Trump parece determinado a combater seriamente contra eles, ainda que isso signifique que Assad permanece no poder. Há aqui com muito maior probabilidade uma base para diálogo. Se Hillary for eleita, nesse caso os russos terão de encarar uma questão absolutamente crucial: o quão importante é a Síria no contexto da meta de ressoberanizar a Rússia e pôr abaixo o Império Anglo-sionista? Outro modo de formular a mesma questão é: "a Rússia prefere confrontar o Império na Síria ou na Ucrânia?"

Um modo de aferir os humores na Rússia é observar a linguagem de uma recente lei proposta pelo presidente Putin e aprovada na Duma e que trata da questão da Acordo Rússia-EUA para Gestão e Disposição do Plutônio [orig. Russia-US Plutonium Management and Disposition Agreement (PMDA)]. Nesse caso, mais uma vez, os EUA não cumpriram obrigações geradas por tratado; e a Rússia agora cancelou o acordo. Interessante é a linguagem escolhida pelos russos para listar as condições sob as quais aceitariam voltar a participar nesse acordo e, basicamente, aceitariam retomas qualquer tipo de negociação que envolva armamentos:

– A redução da infraestrutura militar e do número de soldados dos EUA estacionados no território de estados-membros da OTAN que se uniram à aliança depois de 1º/9/2000, que devem voltar aos níveis em que estavam quando o acordo inicial foi firmado e se tornou vigente.

– O fim da política hostil dos EUA em relação à Rússia, que deve ser confirmada pela abolição da Lei Magnitsky de 2012 e das condições da Lei de Apoio à Liberdade da Ucrânia de 2014 que foram dirigidas contra a Rússia.

– A abolição de todas as sanções impostas pelos EUA contra pessoas físicas e jurídicas legais da Federação Russa.

– A compensação por todos os danos sofridos pela Rússia, por efeito da imposição de sanções.

– E os EUA que apresentem, o mais rapidamente possível, um plano claro para disposição de plutônio, coberto e aprovado pela PMDA.

Ora... os russos não são doidos. Sabem muito bem que os EUA jamais aceitarão tais termos. Assim sendo, do que se trata aqui, realmente? Trata-se de um modo diplomático, mas absolutamente sem ambiguidades, muito claro, de dizer aos EUA exatamente o que disse o presidente filipino Duterte (e que Victoria Nuland disse – ao telefone – à União Europeia).


Melhor os norte-americanos começarem a prestar atenção. Tomem tento.*****

Um comentário:

Anônimo disse...

Mesmo que a Rússia tenha menor poder quantitativo não justifica que ela não consiga combater o EUA. A história nos mostra que a qualidade vale muito mais do a quantidade. E também a China apoiaria em números. Os EUA que se preparem.