4/8/2017, Michael Brenner, Moon of Alabama
In the reproof of Chance
Lies the true proof of men
[Na reprimenda da Sorte
Está a verdadeira prova dos homens]
William Shakespeare (ou David Petraeus)
O to be self-balanced for contingencies,
To confront night, storms, hunger, ridicule, accidents, rebuffs, as the trees and animals do
[Oh, ser autoequilibrado para as emergências,
Enfrentar noite, tempestades, fome, ridículo, reveses, como as árvores e animais]
Walt Whitman (ou Barack Obama)
EMERGÊNCIAS (contingências) são parte da ordem natural da vida. Coisas acontecem sobre as quais não temos controle – ou as quais não podemos nem, pelo menos, determinar. O inesperado acontece – e nos pega desprevenidos. É uma das razões pelas quais "The best laid schemes o' mice an' men gang aft a-gley"[1]. E se acontece de os seus projetos serem também muito mal feitos, então o problema é ainda maior. Se você se instala em castelos no ar, os riscos e custos também aumentam. Isso, precisamente é o que está acontecendo na política exterior dos EUA para o Oriente Médio.
O fenômeno é anterior ao início do recém-chegado governo Trump. A equipe de amadores que Barack Obama reuniu em sua política externa tinha lá as próprias tendências que muito se deve lastimar. Seus antecessores no governo Bush pelo menos sabiam o que queriam fazer, mas não tinham qualquer projeto ou esquema viável para alcançar aqueles seus muito duvidosos objetivos.
Há vários traços de como os EUA fazem e executam política externa que ajudam a explicar por que Washington frequentemente se vê metida em confusão, por efeito de desenvolvimentos não previstos. Muito significativa nesse sentido é uma flagrante linearidade de pensamento e ação. É como se tomassem em sentido literal a noção de que a distância mais curta entre dois pontos é uma linha reta; 'logo', a abordagem mais eficiente para ir de onde estamos para onde queremos estar é andar em linha reta. O que aparecer entre os pontos A e B cederá diante dos saberes norte-americanos, de sua sinceridade de propósitos e força de vontade. Assim combatemos a 2ª Guerra Mundial na Europa.
Foi quase operação em que todos concordavam completamente – especialmente depois da Batalha do Bulge quando Eisenhower ordenou que os exércitos aliados avançassem ao longo de um front único para evitar que os alemães explorassem descontinuidades geográficas. Tentamos seguir um plano de batalha linear no Vietnã (ou o mais parecido com plano linear que as circunstâncias permitiam) e pagamos caro pelo erro. Até na 1ª Guerra do Golfo, o plano inicial de Schwarzkopf ordenava "corrida direta, de defensor que apanhou a bola e viu caminho aberto à frente" (orig. "bull rush"), diretamente sobre Kuwait City.
Nossas intervenções no Oriente Médio Expandido ao longo dos últimos 15 anos mostram padrões semelhantes.
No Afeganistão, nos propusemos o objetivo ousado de limpar o país de toda e qualquer presença ou influência dos Talibã. Em 2002 quase conseguimos – mas não conseguimos, sobretudo por causa do que os próprios norte-americanos fizemos. Os Talibã já estavam simplesmente sumindo, com os membros voltando às respectivas cidades e vilas, levando com eles só armas consideradas utensílios domésticos comuns. Só uns poucos líderes refugiaram-se junto à fronteira, na vaga esperança de que aparecessem pequenos serviços – como exilados desamparados sempre fazem.
Nem o Comando Central nem os guerreiros santos civis avaliaram plenamente a dádiva que lhes caía no colo. Não viram, em parte, porque não era evento que se encaixasse na noção convencional de como se derrota um inimigo e o estado onde ele esteja depois de derrotado. Nenhum pensamento linear pode captar a natureza dos Talibã nem a natureza da sociedade afegã. E na verdade nem os norte-americanos queriam captar coisa alguma. Seria preciso muita imaginação, quantidades descomunais de reajustes intelectuais.
Os norte-americanos só queriam vingar o 11/9 – essa a força motriz naquele momento e em tudo que os EUA fizeram dali por diante.
Então, os EUA decidiram ressuscitar os Talibã: atacaram furiosamente qualquer um que fosse vagamente suspeito de ter sido "do mal" (na maior parte dos casos baseados em inteligência forjada, imprestável, que os norte-americanos nem teriam como confirmar); incontáveis ataques e invasões a prédios e casas; apoio a senhores-da-guerra – grandes e pequenos, novos e velhos – que rastejavam para alcançar as boas graças dos norte-americanos que estavam (nominalmente) no poder; incontáveis negócios com chefões do tráfico de heroína como Haji Bashar em Kandahar, que financiava os dois lados do Afeganistão que estavam na guerra; e reformular a missão, que passava a ser de transformar o Afeganistão em "boa sociedade", que nunca mais produziria jihadistas violentos que odiavam os EUA.
Essa parte final caiu no gosto mental dos políticos e da opinião pública em geral, porque combinava bem com o idealismo norte-americano e com nossos sucessos 60 anos antes, no Japão e na Alemanha.
Num certo, estranho sentido, Washington precisava reviver os Talibã, e os líderes Talibã precisavam dos norte-americanos.
Em resumo, nenhum dos desenvolvimentos que se verificaram no Afeganistão desde 2002 correspondeu ao que os EUA esperavam. Assim sendo, os EUA não tínhamos plano de contingência, plano de emergência, "plano B". E não temos até hoje. Os EUA seguem cegamente aquela linha reta traçada antigamente, para trás, que ligava o ponto aonde queríamos chegar ao ponto em que estávamos. Linearidade.
A verdade brutal é que os líderes norte-americanos – civis e militares – exibiram no Afeganistão menor capacidade para adaptar o próprio comportamento, que um chimpanzé posto diante de circunstâncias igualmente frustrantes. O chimpanzé tentaria rota divergente, ou diria "que se danem!" e daria o fora para comer sua banana, quer dizer: rapidamente faria baixar as apostas.
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O Iraque revela o mesmo padrão. Demonstra com rara clareza a falha intrínseca que há na estratégia linear. O projeto já começava desnorteado, porque designava grande quantidade de objetivos interligados, cuja culminação seria uma reformatação radical de todo o espaço político do Oriente Médio. Cada um dos objetivos intermediários era visto como marcos a serem atingidos na estrada para Xangrilá.
Essa visão antevia um Iraque reconstituído, cuja pujante democracia liberal e vibrante economia seriam como imãs para as sociedades árabes/islâmicas vizinhas. O anseio para reproduzir a felicidade dos iraquianos levaria à disseminação 'natural' de instituições liberais por toda a região. Os descontentes sumiriam, o apelo do Islã fundamentalista secaria e definharia, o militarismo deles se dissiparia, e uma paz kantiana desceria sobre todos, domesticamente e nas relações entre estados.
Como cereja do bolo, lá estaria também a solução para a questão palestina, porque Israel estaria 'automaticamente' cercada por vizinhos bons, e a própria boa-vontade flagrante de tantos povos amistosos, levaria os palestinos a desejar retribuir as gentilezas. Paz na Terra aos homens de boa vontade.
Havia muitos passos intermediários até se chegar "lá" e alguns obstáculos a superar. O plano para lidar com cada um deles também era uma (ou várias) linha reta(s).
Militarmente, tratava-se de esmagar as forças de Saddam e derrubar o ditador. O secretário Rumsfeld e um Estado-maior submisso apresentaram logo uma estratégia simples para completar rapidamente o serviço. Criaram uma força relativamente pequena, explorando ao máximo o formidável arsenal norte-americano de armas de alta tecnologia. O segredo do sucesso? Velocidade e mobilidade. Direto para Bagdá. Força de ocupação? Não precisa. O povo iraquiano será tomado do mais efusivo júbilo por nós os termos salvo de um jugo ditatorial e jogaria flores no caminho de cada norte-americano que vissem. Paris 1944.
Renovar as instituições políticas do país e dar-lhes formato democrático? Bastava mandar para lá uma brigada de especialistas norte-americanos que garantiriam formação e orientação a um povo cheio de gratidão. Organizações e estruturas brotariam por toda parte, em processo semelhante à geração espontânea. Além disso, havia aqueles esplêndidos expatriados como Ahmed Chalabi (preferido do Pentágono) e Ayad Alawi (preferido da CIA) prontos para infiltrar-se dentro das urnas e começar a exercer autoridade ilustrada.
Para pôr a economia em funcionamento, só três coisas bastariam: privatizar todas as propriedades do Estado; um mercado de ações; e liquidez que adviria naturalmente de bilhões de dólares em caixa. Foi carregar os contêineres e embarcá-los em C-5As e depositar os contêineres nas mãos rapinantes de funcionários provisórios e empreendedores em formação.
Ingenuidade? Absolutamente não – foi exatamente o mesmo que os EUA fizeram na Rússia, onde terapia de choque foi 'evidentemente' claro sinal de "sucesso" na cabeça de Washington – mesmo que tenha produzido uma cleptocracia de facto, do tipo que está hoje deitando raízes nos EUA.
O fiasco do Iraque chama a atenção para dois estranhos traços que marcam a estratégia linear. Primeiro, os fracassos políticos causados por desenvolvimentos de ocasião, contingentes, que não são vistos como tais. – Nem, tampouco, os efeitos negativos e o desmanche do plano original por desenvolvimentos não previstos. Assim sendo, ninguém jamais aprende coisa alguma. O método linear e esse tipo de ação substantiva que se empreende conforme esse método só sobrevivem para fracassar na segunda vez que o método for aplicado. A mentalidade nunca muda, sempre intacta.
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Consequência disso, a estratégia para o Afeganistão em nada contribuiu para a estratégia no Iraque, e as duas juntas pouco fizeram para despertar políticos e analistas norte-americanos para os graves reveses que sempre resultam de aplicar noutros pontos o 'método' da linha reta.
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A Síria obviamente oferece múltiplos exemplos de o quanto sai cara a linearidade, em termos de despreparo para enfrentar as contingências que sempre aparecem. A mais notável é a intervenção russa. Esse movimento mudou literalmente tudo. O equilíbrio militar foi invertido como quando a ofensiva jihadista de 2014-2015 foi pela primeira vez estimulada e depois a aliança R+6 ganhou controle decisivo. A campanha organizada pela CIA para usar as milícias da Frente al-Nusra & associados/al-Qaeda como instrumento para desestabilizar Assad foi neutralizada.
Consequência disso, a farsa de apresentar a guerra como se ali se confrontassem um 'tirano' (Assad) e rebeldes 'moderados' de bom coração, foi exposta como o que realmente era, pura farsa, e sempre fora desde o início; ficou claro, para quem tivesse coragem para perguntar, que o interesse dos EUA, supostamente de combater terroristas, subordinava-se a outros objetivos e interesses (os quais eram (i) o objetivo de Israel, sempre interessada em incapacitar completamente qualquer estado árabe na região; e (ii) o objetivo do bloco dos sunitas sauditas/turcos/qataris, de isolar o Irã, ao mesmo tempo em que enfraqueceriam todas as formações políticas dos xiitas); a reentrada da Rússia, como grande ator diplomático Oriente Médio; e o grave embaraço para os norte-americanos de se verem completamente superado, em cada manobra e a cada passo, por Putin.
Impressionante é que, sim, a intervenção russa veio como total surpresa. Essa contingência absolutamente radical, que mudou todo o jogo, não apenas não estava prevista para aquele momento como, e mais que isso, jamais fora sequer cogitada.
Num primeiro nível, tem-se aí impressionante falha de inteligência.* É falha que zomba das muito propagandeadas capacidades de uma Comunidade de Inteligência que gastou quase um trilhão de dólares durante a "guerra ao terror". Em outro sentido, a falta de qualquer planejamento de contingência faz perfeito sentido no quadro do pensamento linear. Porque o pensamento linear opera com visão limitada – e imaginação ainda mais limitada.
Se a estratégia a ser seguida tem de limitar-se ao plano geral – andar sempre em linha reta para um determinado objetivo –, nesse caso o trabalho de identificar problemas concentra-se exclusivamente em quem já esteja presente no caminho demarcado. Porque assumir a possibilidade de que haja outros que ninguém vê implicitamente põe em questão a própria abordagem linear – da qual todos dependem como viciados.
Washington jamais, nunca, teve qualquer plano para a Síria. Lá estava a linearidade – mas era descontínua e tática, exatamente o contrário de qualquer estratégia. Deliberar, em tempos de Obama, significava exclusivamente tratar de microquestões de como ir de (a) até (b) amanhã. Nunca se tratava de decidir que peças poderiam juntar-se de modo significativo num projeto inteligente para alcançar objetivo possível. Nunca houve sequer projeto simples, primitivo. Para piorar, cada componente do aparelho de segurança do país tinha suas próprias prioridades e seus próprios objetivos.
A CIA dedicava-se a provar o quão espertamente conseguiriam linkar depósitos de armas líbias, compras de armas nos bazares mundiais e embarques clandestinos para os rebeldes, via Turquia e Arábia Saudita. O Pentágono preocupava-se com não ser envolvido em outra guerra tão cara quanto sem sentido (isso, sob o comando do general Martin Dempsey) ou, noutros tempos, preocupava-se com demonstrar a incompetência das Forças Especiais, lançando assim as bases para assegurar bases permanentes no Iraque e, quem sabe, também na Síria.
Quanto ao Departamento de Estado, Hillary Clinton e depois John Kerry viviam fixados em derrubar Assad, como finalidade em si. Pouco pensavam sobre o que viria depois. Depois que a Rússia pulou na frigideira, Kerry passou a só pensar, como seu único foco, em gerar algum feito, qualquer feito, modesto que fosse, à altura de seus talentos diplomáticos. Foi tempo perdido, porque Pentágono e CIA já se dedicavam aplicadamente em minar os esforços de Kerry e a indiferença arrogante do presidente Obama.
A que objetivos estratégicos visaram essas ações fragmentadas? A que interesses nacionais dos EUA serviram? Como se relacionam a uma pletora de outras questões combustíveis no Oriente Médio? Não há respostas – porque essas perguntas jamais foram feitas – nem pelo presidente Obama nem por qualquer outra pessoa.
Apesar de tudo, vista em perspectiva, a Síria é diferente do Afeganistão e do Iraque, porque na Síria lá não havia qualquer estado final almejado a partir do qual pensar 'para trás'. No caso da Síria portanto, o que se viu foi linearidade tática coexistindo com a mais completa incoerência estratégica.
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Linearidade tem efeitos colaterais que são, pode-se dizer, patológicos:
1.
Impedimentos não previstos são tratados não como surpresas problemáticas, mas como algo ilegítimo, ofensivo. São declarados ilegítimos como no caso de rotular de "Forças Anti-Iraque" os insurrecionista iraquianos." Ou os Houthis do Iêmen, como peões do Irã (sendo o Irã definido como o mal absoluto sem remissão possível). E, isso, vindo de uma potência invasora, cuja capital está a quase 10 mil quilômetros de distância!
Mesmo assim, nessa mentalidade, as chamadas "Forças Anti-Iraque" absolutamente NÃO TÊM O DIREITO de oporem-se aos EUA. Se atiram contra norte-americanos cometem crime de "terrorismo". Daí que tenham de ser tratados como terroristas, i.e., como força combatente não regular. O insulto que fizeram aos EUA justifica as medidas mais extremas, até medidas indiscriminadas.
2.
Outros recorrem ao "bode expiatório". Alguém com certeza fez algo errado, para que o fator 'X' surgisse do nada para estragar completamente NOSSO (dos EUA) plano. Exemplo perfeito disso é o mecanismo de culpar Obama pelo crescimento do ISIS; essa acusação sempre vem acompanhada de outra, de que Obama também seria culpado pela influência que o Irã tem em Bagdá. Aqui, um exemplo do New York Times do domingo passado. Tim Arango escreve de Bagdá:
[D]epois da abrupta retirada de tropas dos EUA em 2011, ainda se questiona por aqui se os norte-americanos são confiáveis – [consequência disso, contata-se] amplo fracasso da política exterior dos EUA.
Pressuposto aí implícito é que a retirada é resultado de erro de julgamento em Washington –, e que a retirada permitiu o surgimento do ISIS e a ampliação da influência política iraniana entre as elites iraquiana. De fato, o governo iraquiano de al-Maliki nos pôs de lá para fora – para grande surpresa do general Petraeus e do embaixador Crocker que ainda apostava nos objetivos deles, mas absolutamente não davam nenhuma atenção às circunstâncias políticas.
A verdade é que os EUA nem poderiam ter escolhido ficar. Foi em dezembro de 2008 – três anos antes de nossa retirada "abrupta" e no governo do presidente Bush. Tudo que Arango conta é história falsificada carregada de Trumpismos. Em outras palavras, nonsense.
3.
Especialmente interessante é que desenvolvimentos inteiramente naturais e lógicos dadas as circunstâncias são declarados não naturais e surpreendentes porque perturbam a linearidade do pensamento norte-americano. Qualquer um que conhecesse a situação no Iraque em 2008 percebia que o Irã seria a presença estrangeira dominante no país. Mas essa realidade não se enquadrava no mapa do caminhos dos EUA, todo ele composto só de linhas retas.
A intervenção dos EUA no Iraque criou condições que puseram na posição de reféns da contingência todos os interesses residuais dos norte-americanos. O governo de al-Maliki continuaria a sustentar as forças tribais que derrotaram a al-Qaeda na Mesopotâmia? Tomaria medidas para reconciliar os sunitas com o governo xiita? Conseguiria Maliki impedir que o Exército Nacional do Iraque voltasse a ser nada além de máquina de reciclar corrupção? Quem emergiria para explorar a revolta anti-Assad na vizinha Síria? Que influência exerceriam Turquia, Arábia Saudita e Qatar? Nada disso estava sob controle dos EUA. Essa é a típica situação que o pensamento linear é absolutamente despreparado para enfrentar – muito menos consegue lidar com os desdobramentos, quando novos fatores surgem para nos acossar.
Agora, Washington declara que remediará erros passados mantendo força militar substancial no Iraque, enquanto vai estabelecendo uma rede de bases também na Síria. Nenhuma referência à verdade elementar de que esses são países soberanos que podem não querer em seu território uma presença militar norte-americana permanente. (O governo sírio internacionalmente reconhecido, que clara e evidentemente não será derrubado, disse veementemente que a presença dos EUA lá é ilegítima).
Em outras palavras, o pensamento linear bloqueia e impede que se vejam quaisquer realidades que não confirmem só o que o pensamento linear define no presente e os raros elementos contingentes que tenham sido já considerados. Tampouco dá qualquer atenção a como a realização daqueles objetivos, ou alguma aproximação considerável, pode provocar reações que gerem novos perigos e novas ameaças adiante, pela estrada.
Do mesmo modo, o treinamento iraniano para milícias xiitas no Iraque que tiveram papel decisivo na operação para extrair o ISIS das cidades do Vale do Rio Tigre é tratado como ilegítimo. Aconteceu porque o governo de Bagdá solicitou ajuda; não faz diferença. Continua a ser considerada prova preocupante da interferência perniciosa do Irã em assuntos do Iraque. Por quê? Porque atrapalha os planos dos EUA para fazer do Iraque uma 'instalação' dos EUA e acabar com a influência do Irã na região. Quando poderosos políticos xiitas, apoiados por aquelas milícias pressionam o governo Abadi para que resista contra as demandas dos norte-americanos, a surpresa é geral. O provável sucesso daquelas pressões é terrível choque.
4.
Outra via sempre tomada pelos pensadores lineares para evitar qualquer confronto real com as totais implicações das próprias limitações do pensamento linear é insistir em "mais uma tentativa." Fracassaram no Afeganistão? Voltem e tornem a voltar lá muitas e muitas vezes, na esperança de que a persistência seja recompensada. Mas persistir nada tem a ver com determinar refletidamente, cabeça fria, a importância de cada objetivo. Nem a persistência obcecada justifica-se sob o argumento de que a mosca no unguento (a chave de fenda na engrenagem) que deu cabo dos esforços anteriores teria sido identificada e removida.
Diferente disso, a persistência obcecada é expressão de uma crença irracional primitiva no triunfo final da vontade. É atitude que se encaixa bem no espírito norte-americano tão fundamente enraizado, do "hei de conseguir fazer". E indício de que "fracasso" não é palavra aceitável no léxico norte-americano.
Vimos acontecer assim repetidas vezes no Oriente Médio Expandido ao longo dos últimos 15 anos. O Afeganistão é um exemplo, dentre muitos. A insistência em implantar bases militares permanentes no Iraque (repito: sem que tenham qualquer objetivo estratégico óbvio) é outro exemplo. Podemos acrescentar a tentativa estúpida de fazer quadrado o círculo na Síria, onde os norte-americanos conjuramos forças fantasmas e onde só há duas possibilidades: ou Assad ou os salafistas.
O mesmo se pode dizer sobre os incontáveis, infinitos gestos de subserviência diante da família real saudita. Isso, porque Washington meteu-se na própria cabeça desprovida de espírito crítico que os sauditas fazem o que fazem, que encorajam e sustentam organizações terroristas 'só porque' sentem-se ansiosos, inseguros quanto ao comprometimento dos EUA com a segurança deles – embora a fonte declarada dessas ameaças mude conforme as conveniências deles – da Fraternidade Muçulmana do Egito, para os movimentos desencadeados pela Primavera Árabe, para os iranianos.
O mesmo se pode dizer dos acertos entre norte-americanos e Israel – em proporção máxima.
5.
Segmentar é valiosa ajuda para manter políticas lineares – por mais autodestrutivas que sejam as consequências. Porque segmentar estreita o âmbito dos interesses que possam ser afetados pelas repercussões da estratégia errada em que alguém persiste – impedindo que sejam levadas na devida conta. A visita de Trump a Riad para abençoar com fervor a declaração de guerra das potências sunitas contra o xiismo e o Irã é a mais perfeita ilusão.
Focados exclusivamente em demonizar o Irã, os estrategistas de Washington definiram para os EUA e seus aliados uma rota com viseiras dos dois lados. Trump caiu numa armadilha preparada pela hábil exploração das ânsias dos seus comparsas, pelo trio de conspiradores – ânsia de pompa, de sociedades secretas, de demagogia amplificada. Então, como os Três Reis Magos, o general Sisi, o rei Salman da Arábia Saudita e o presidente Trump curvaram-se sobre a ogiva mágica iluminadajurando devoção à santa causa. Ninguém lembrou que os Reis Magos eram persas – muito provavelmente, a guarda avançada do soft power da Parthia.
Ao isolarem a cerimônia de Riad de outros assuntos importantes no Oriente Médio, os norte-americanos não levaram em conta a reação que viria dos círculos governantes xiitas – do governo do Iraque, principalmente. Em Bagdá, Haider Abadi, excessivamente exposto e já sob as vistas de rivais políticos xiitas, sentiu-se traído. Sua reação imediata foi dar luz verde às milícias Hashid patrocinadas por Teerã para correr rumo à fronteira síria onde se conectaram a unidades do Exército Árabe Sírio para impedir que os norte-americanos avançassem para o norte.
Estavam em disputa os elos territoriais a partir do Irã via Iraque para Síria e Líbano, para o Hezbullah. A dedicação obcecada, a ideia fixa (e reta) de aplacar os sauditas unindo-se à cruzada sunita deles contra os xiitas acabou por reforçar o lado oposto. Os interesses declarados dos EUA na Síria (por mais que, sim, sejam muito duvidosos) foram de fato sabotados pelas políticas lineares fragmentadas da Casa Branca.
6.
O método mais extremo utilizado pelos que só sabem pensar linearmente, para impedir que fatores construtivos ou ambíguos perturbem planos feitos para não serem jamais alterados é negar todos os fatores que possam ser construtivos, mesmo que ainda ambíguos – ignorar que existem. O exemplo que mais se destaca tem a ver com o compromisso que Washington assumiu de se estabelecer no Iraque pós-ISIS (e em partes da Síria) militarmente e politicamente. Isso, apesar de enfrentar feroz oposição de elementos importantes da elite política xiita. A principal figura dessa oposição é Muqtada al-Sadr. Al-Sadr é o mais popular político xiita capaz de quebrar a maioria que o governo Abadi tem no Parlamento. Por 14 anos sempre lá esteve, como espinho no pé dos norte-americanos. Agora, declarou já repetidas vezes, que os EUA têm de sair. (O aiatolá Sistani, também ele, manifestou os mesmos sentimentos).
Pois ninguém jamais sequer cita, nos EUA, a ameaça que al-Sadr representa contra o sucesso dos planos dos norte-americanos, enquanto o Pentágono prossegue, saltitante, com o esquema para conseguir agora o que não conseguiu em 2008. Não há plano de contingência, para a eventualidade possível de Bagdá, outra vez, nos mandar passear: "Não, obrigado, não precisamos disso."
Uma variante desse enredo psicológico particularmente imaturo envolve fazer desaparecer a importância de eventos não previstos. Aqui, o grande exemplo é a intervenção russa. Dado que não foi coisa que se pudesse simplesmente ignorar ou declarar que não aconteceu, o presidente Obama declarou que não tinha importância alguma, nem teria qualquer consequência. Na verdade, Obama falou em tom arrogante-condescendente, ao avisar Putin de que o resultado seria mais uma humilhação para a Rússia, como o Afeganistão, que a Rússia sairia chutada da Síria – o rabo entre as pernas:
Uma tentativa de Rússia e Irã para promover Assad e tentar pacificar a população só conseguirá metê-los num atoleiro.
O regime de Assad e a Rússia aliada dele não podem abrir caminho com massacres, até a legitimidade (...) (...) O sangue dessas atrocidades mancha as mãos deles.
Uma tentativa da Rússia para promover Assad e tentar pacificar a população só conseguirá metê-los num atoleiro e não funcionará.
[Putin] está sempre interessado em ser visto como nosso igual, e que estaria trabalhando conosco, porque não é completamente estúpido. Ele compreende que a posição geral da Rússia no mundo está significativamente reduzida. E o fato de que está (...) tentando promover Assad não o converte, de repente, em ator significativo.
Os russos já estão lá há várias semanas, mais de um mês, e acredito que repórteres equilibrados e isentos que analisaram a situação diriam que a situação ainda não mudou significativamente (...).
Muitos outros dentro e fora do governo papaguearam as falas de Obama para ridicularizar o movimento do Kremlin. Mas logo se viu que o movimento fora sucesso retumbante, que virou a maré da guerra e fez da Rússia ator muito mais influente no drama da Síria, que os EUA.
Essas cenas patéticas, de comportamento infantiloide demonstram o quanto são poderosos os impulsos dos homens e mulheres de pensamento linear para evitar, a qualquer custo, qualquer desvio das linhas simplórias de planos e projetos que tão bem se adaptam ao próprio temperamento deles e delas e respectivos modos de pensar.*****
[1] É verso do poema "Para um rato" (1786), de Robert Burns (que dá título também ao romance "De ratos e homens", de John Steinbeck, de 1937). O poeta narra como, ceifando um campo, destruiu o ninho de um rato. Todo o poema é um pedido de desculpas ao rato [NTs e traduções tentativas, sem ambição literária, só para ajudar a ler, com informações de Phrases Finder]:
(...) of mice and men...
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(...) de ratos e homens...
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But, Mousie, thou art no thy lane [you aren't alone]
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Mas, Ratinho (...) [não estás sozinho]
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In proving foresight may be vain:
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No saber que antever pode ser vão
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The best laid schemes o' mice an' men
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Os melhores planos que ratos e homens fazem
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Gang aft a-gley, [often go awry]
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(...) [quase sempre dão em nada]
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An' lea'e us nought but grief an' pain,
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E nos deixam nada além de sofrimento e dor,
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For promised joy.
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Em vez da alegria prometida.
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* Falhas de inteligência, grandes e pequenas, tornaram-se norma para as inchadas e apodrecidas agências de inteligência dos EUA. Há algo de absurdo em instituições que sabem nos dizer qual a cobertura de pizza que Angela Merkel prefere quando pede pizza pelo telefone celular privado, mas absolutamente nada sabem de um grande movimento de força militar multitarefas, com deslocamento de materiais, armas e soldados da Rússia para a Síria – precisamente para o país no qual se concentram todas as atenções dos EUA. A profundidade desse problema sistêmico aparece com clareza no fato de que ninguém riu nem ninguém chorou.
Com certeza, qualquer reles bilhão de dólares, por aí, bastaria para convencer algum Ivã ou Inessa a passar a informação de que o primo Igor, da Marinha, vira noites debruçado sobre um livro de língua árabe, preparando-se para nova visita à Síria e pergunta às moças se querem que lhes traga uma caixa de tâmaras. – Ou o cunhado Sergei, da Força Aérea, que avisou que não virá jantar na 6ª-feira, porque fará hora extra coordenando o carregamento de um esquadrão de jatos de combate que acabaram de ser pintados com cores de camuflagem para o deserto.
Se é boa ideia manter agências mais capazes de inteligência no atual ambiente estratégico de Washington é outra questão.
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