terça-feira, 27 de novembro de 2018

Erdogan, MBS, liderança do Islã e o preço do silêncio, por Pepe Escobar


21/11/2018, Pepe Escobar, Asia Times

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga



Os elos que ligam a Casa de Saud e o massacre de Khashoggi estão sendo explorados ao máximo pelo presidente turco, para seu máximo benefício, em plena discussão sobre a liderança do mundo Islâmico e sobre como a crise pode afetar a estratégia dos EUA e dos sauditas para o Oriente Médio.

Chegou como recado claro, explícito, que ecoou por toda a Eurásia: os presidentes Erdogan e Putin, numa sala lotado em Istanbul na 2ª-feira, cercados de notáveis, celebrando o término da construção dos 930 km da parte submarina do gasoduto Ramo Turco [ing. Turk Stream], por baixo do Mar Negro.

Nada menos do que um marco chave naquele terreno minado que chamei de “Oleogasodutostão” [ing. ‘Pipelineistan’] lá nos primeiros anos 2000s. Foi construído pela Gazprom em apenas dois anos e meio, apesar da violenta pressão de Washington, que, antes, conseguira fazer gorar Ramo Sul, predecessor do Ramo Turco.

O Ramo Turco está projetado com duas linhas, cada uma capaz de transportar 15,75 bilhões de metros cúbicos de gás por ano. A primeira linha abastecerá o mercado turco. A segunda passa a 180 km da fronteira ocidental da Turquia e abastece o sul e o sudeste da Europa; as primeiras entregas devem chegar no próximo ano. Grécia, Itália, Bulgária, Sérvia e Hungria são clientes potenciais.

Pode-se dizer que a Gazprom dobrou a aposta. Ramo Norte 1 e 2 abastecem o norte da Europa, enquanto o Ramo Turco abastece o sul da Europa. Gasodutos são cordões umbilicais de aço. Representam o auge da conectividade líquida e, ao mesmo tempo, reduzem conclusivamente os riscos de atrito geopolítico.

A Turquia já está sendo abastecida pelo gás russo via Blue Stream [Ramo Azul] e o gasoduto Trans-Bálcãs. Significativamente, a Turquia é o segundo maior mercado exportador da Gazprom, depois da China.

A fala de Erdogan, enfatizando os benefícios da segurança da energia da Turquia, foi ouvida e repercutida por todas as esquinas e cantos dessa chuvosa ultra congestionada Istanbul. Para ilustrar o quanto esse avanço geopolítico e geoeconômico foi particularmente esclarecedor, mergulhei fundo na discussão da geopolítica turca com membros da Esquerda Turca progressista.

Até a oposição ao que na Europa é definido rotineiramente como a grife ‘Erdogan’ do “iliberalismo asiático” concede que a conectividade comercial Turquia-Rússia – na energia, no domínio militar mediante a venda do sistema S-400 de mísseis, na construção de usinas nucleares – foi conduzida com impressionante competência por Erdogan, que é sempre cauteloso ao enviar mensagens diretas e indiretas a Washington, de que os interesses nacionais turcos não serão comprometidos.

O grande prêmio: liderar o Islã 

Agora, justaponha essa entente cordiale em construção entre o Urso e o (aspirante a) Sultão e o emocionante drama em Istanbul. Ibrahim Karagul – nunca se acanha de se servir de um toque à Rabelais – é sempre útil como espelho que reflete o estado atual dos círculos do Partido da Justiça e Desenvolvimento (tur. Adalet ve Kalkınma PartisiAKP) em torno de Erdogan.

Para essa elite política, é iminente esse avanço no processo, conduzido por Erdogan – “Morte pelos Mil Cortes” – supostamente provando que Mohammed bin Salman (MBS) deu diretamente a ordem para matar e massacrar Jamal Khashoggi.

O consenso dentro da liderança do AKP – confirmado por especialistas acadêmicos independentes – é que o eixo EUA-Israel-Casa de Saud-Emirados Árabes Unidos está trabalhando ativamente em negociações para extrair MBS de qualquer acusabilidade.

Nessa negociação está incluído o robusto “pacote” de Erdogan contra o eixo para essencialmente comprar o silêncio de Ankara – objetivo do bloqueio saudita contra o Qatar e a extradição de Fetullah Gulen, descrito em todo o espectro político turco como líder da Fetullah Terrorist OrganizationFETO (Organização Terrorista Fetullah).

O Kremlin e o Ministério Russo de Relações Exteriores sabem muito bem que esse jogo de apostas altíssimas vai muito além desse ‘Pulp Fiction’ em Istanbul e do processo de paz em Astana – atenta e cuidadosamente microadministrado por Putin e Erdogan ao lado de Rouhani do Irã. O grande prêmio é nada menos que a liderança do mundo Islâmico.

Não há melhor lugar que uns poucos pontos em locais chaves do poder imperial Otomano, ou conversa viva no Antigo Bazar do Livro (Old Book Bazaar) em Istanbul, para relembrar que ali esteve instalada a Umma [Comunidade] Islâmica, durante séculos – papel que foi usurpado por aqueles desertos árabes do andar de cima.

Alastair Cooke capturou com perfeição o íntimo envolvimento da Casa de Saud no massacre de Khashoggi e como o processo levantou questões sobre o status da Arábia Saudita como “nada além de um inepto Guardião de Meca e Medina”. É o que se lê em linhas e entrelinhas de toda a mídia – alinhada com Erdogan – turca. E Cooke observa como aquele status “tira do Golfo muito do significado e do valor que tem para Washington”.

Minhas conversas com acadêmicos turcos Kemalistas progressistas – sim, são minoria – revelaram um processo fascinante. A máquina de Erdogan farejou um oportunidade raríssima, única, para simultaneamente enterrar a já muito abalada credibilidade Islâmica da Casa de Saud, ao mesmo tempo em que se solidifica o neo-otomanismo turco também em contexto Ikhwan.

Esse é o argumento por trás da incansável denúncia promovida por Erdogan e pela mídia turca, do que é interpretado como um complô urdido por MBZ (Mohammed bin Zayed, mestre que comanda o fantoche MBS), Telavive e o governo Trump.

Ninguém pode adivinhar o que acontecerá. Mas há aí real possibilidade de que surja uma Turquia liderada por Erdogan e dominante sobre todas as terras do Islã, aliada ao Qatar e também aliada ao Irã. E com todos os acima listados gozando de relações geopolíticas e econômicas muito íntimas com a Rússia. Há pela frente muitas comemorações e fogos de artifício.*******

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