quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Aconteceu o im-pen-sá-vel: Uruguai rejeitou o TISA, 'tratado' da dinheirocracia privateira global



22/9/2015, Don Quijones, Wolf Street

A empresa-imprensa fingiu que nem viu essa decisão histórica.




Traduzido perlo Coletivo Vila Vudu











Frequentemente citado como a "Suíça da América Latina", o Uruguai tem importante tradição de fazer as coisas à sua moda. Foi a primeira nação na América Latina a estabelecer um estado de bem-estar. Tem também uma classe média maior que a que se vê, proporcionalmente, em outros países da região e, diferente nisso de seus vizinhos gigantes ao norte e a oeste, Brasil e Argentina, o Uruguai não sofre sob o peso de grave desigualdade de renda.



Há dois anos, durante o governo de José Mujica, o Uruguai tornou-se o primeiro país a legalizar a maconha na América Latina, continente que continua a ser destroçado pelo tráfico de drogas, pela a violência e pela corrupção das instituições do estado associada à violência.

Agora, o Uruguai fez algo que nenhuma outra nação semialinhada do planeta jamais se atreveu a fazer: rejeitou, como estado, os avanços da dinheirocracia privateira global.[1]



O tratado cujo nome é proibido pronunciar/escrever 

No início de setembro em curso, o governo do Uruguai decidiu pôr fim à participação do país nas negociações secretas para o Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA)



Depois de meses de intensa pressão feita por sindicatos e outros movimentos de base, que culminaram numa greve geral nacional de resistência – a primeira greve de trabalhadores em todo o planeta que incluiu a exigência de que o respectivo governo retire-se das negociações do TISA[2] – o presidente do Uruguai, Tabaré Vazquez aceitou a demanda da opinião pública; e o Uruguai deixou as discussões para o acordo e o acordo comercial proposto e propagandeado pelos EUA.



Apesar da – ou, melhor dizendo, mais provavelmente por causa da – importância simbólica da decisão do Uruguai, nenhum veículo da grande mídia-empresa noticiou o evento além das fronteiras uruguaias. Jornais, jornalismo e jornalistas da mídia-empresa global noticiaram simplesmente nada.

Não chega a ser surpresa, uma vez que a opinião pública global nada pode saber sobre o TISA, a começar pela existência dele, embora – ou, outra vez, por causa disso – esse seja o tratado mais dramaticamente importante para a nova geração de acordos globais de comércio. 

Segundo WikiLeaks, o Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA)] "é o principal componente do triunvirato de tratados estratégicos ditos 'comerciais' dos EUA", triunvirato que também inclui a Parceria Trans-Pacífico [orig. Trans Pacific Partnership (TPP)] e a Parceria Trans-Atlântico para Comércio e Investimento [orig. TransAtlantic Trade and Investment Pact (TTIP)].



O Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA) envolve mais países que as Parcerias Trans-Pacífico e Trans-Atlântico somadas: os EUA e todos os 28 membros da União Europeia e Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Hong Kong, Islândia, Israel, Japão, Liechtenstein, México, Nova Zelândia, Noruega, Paquistão, Panamá, Paraguai, Peru, Coreia do Sul, Suíça, Taiwan e Turquia. 

Mancomunadas, essas 52 nações formam o grupo conhecido sob o nome sedutor de "Verdadeiros Bons Amigos dos Serviços", que representam quase 70% de todo o comércio de serviços em todo o planeta. Até a recente saída do Uruguai, que deu as costas a esses "VBASs", o país era contado como o 53º "VBAS".

Trailer do TISA 

O Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA)] passou os últimos dois anos sendo construído atrás de portas hermeticamente fechadas de altíssima segurança em diferentes locais do mundo. Conforme o texto provisório, o documento deve permanecer confidencial e 'reservado', longe da opinião pública por pelo menos cinco anos, depois de assinado. Até a Organização Mundial do Comércio foi descartada e impedida de participar das negociações.

Porém, graças a sites de sentinelas contra abusos da boa fé dos cidadãos como WikiLeaks, a Associated Whistleblowing Press e Filtrala, já se conhecem alguns detalhes cruciais. Aqui, adiante, ofereço um breve resumo do que já se sabe (para conhecer mais detalhes, ver aquiaqui e aqui):


1. O Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA) "blindará" a privataria no setor de serviços – até casos em que a entrega de serviço privado contratado tenha falhado – o que significa que nenhum governo conseguirá nunca mais devolver ao patrimônio público serviços de água, energia, saúde, educação e outros que tenham sido privatizados.


2. O Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA)] restringirá o direito dos governos signatários para impor padrões ou medidas mais fortes para proteger patrimônio público e o interesse público. Isso, por exemplo, afeta leis de proteção ao meio ambiente, licenciamento para instalação de laboratórios, instalações hospitalares, centros de disposição e reciclagem de dejetos, usinas de produção de energia, credenciamento de escolas e universidades e licenças para uso de cabos e frequências de rádio, televisão e internet.

3. O Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA) limitará a capacidade dos governos para regular a indústria de serviços financeiros, num momento em que a economia global ainda luta para se recobrar da crise causada, basicamente, por não o estado não regular suficientemente o setor financeiro. Mais especificamente, se for assinado; o acordo TISA do comércio de serviços:



• Restringirá a capacidade dos governos para impor limites ao comércio de contratos de derivativos – a arma de destruição financeira em massa, praticamente não controlada, que ajudou a disparar a Crise Financeira Global de 2007-08.

• Impedirá que os estados aprovem novas leis de regulação das finanças que não sigam rigorosamente as leis de desregulação ampla, geral e irrestrita. Estados signatários simplesmente se comprometerão a não aplicar novas medidas de política financeira que, seja como for, contradigam a ênfase nas providências, leis e medidas de desregulação.

• Proibirá estados nacionais de usar controles sobre capitais para impedir ou mitigar crises financeiras. Os textos que vazaram proíbem restrições a influxos financeiros – usados para prevenir rápida apreciação da moeda, bolhas de ativos e problemas macroeconômicos – e a saídas de dinheiro (restrições a saída de dinheiro são usadas para impedir a repentina fuga de capitais em tempos de crise).

• Exigirá que os estados aceitem produtos financeiros que ainda não foram inventados. Apesar do papel de aceleradores que complexos produtos financeiros desempenharam na Crise Financeira, o Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA) exigirá que os estados aceitem que todos e quaisquer novos produtos financeiros (inclusive produtos financeiros ainda não existentes) sejam comercializados dentro dos respectivos territórios.

4. O Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA) cancelará toda e qualquer restrição aos fluxos de informação e à localização de itens e instalações consideradas necessárias pelos provedores de serviços e de tecnologia da informação e das comunicações [Information and communications technology (ICT). Cláusula proposta pelos negociadores norte-americanos pretende proibir todo e qualquer impedimento que haja para a transferência de dados pessoais a terceiros países (atualmente há leis que protegem dados, vigentes na União Europeia). Em outras palavras, corporações multinacionais terão carta branca para vasculhar e usar à vontade dados relacionados a todas as facetas da vida pessoal e da vida profissional dos habitantes de quase ¼ das cerca de 200 nações que há no mundo.

Como escrevi em LEAKED: Secret Negotiations to Let Big Brother Go Global, se o Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA) for assinado na forma que tem hoje – e ninguém saberá realmente que forma tem até que se passem, no mínimo, cinco anos depois de o acordo ser assinado – nossos dados pessoais serão livremente comprados e vendidos no mercado sem que nós mesmos saibamos; empresas e estados poderão armazenar dados da vida pessoal e profissional [e política] de cada um de nós, pelo tempo que desejar, e usá-los livremente para praticamente qualquer finalidade.

5) Por fim, o Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA), acompanhado dos tratados comerciais gêmeos Trans-Pacífico e Trans-Atlântico – TPP e TTIP – estabelecerá sistema global absolutamente controlado – depois de ter imposto aos 52 governos signatários um quadro duríssimo de leis comerciais internacionais concebidas para proteger e 'legalizar' praticamente todas as práticas das empresas privadas que, hoje, são consideradas criminosas, ao mesmo tempo em que os acordos cancelam toda e qualquer lei que haja nas legislações nacionais e que ainda protegem os direitos/interesses do cidadão, da pessoa, da humanidade e/ou de povos ou nações. 

O mundo passará a ser regido por legislação que só protege o direito das empresas ["direito das empresas", em mundo do capital, no qual reina a privataria, é direito-de-prender-matar-arrebentar-poluir-apodrecer-envenenar tudo e todos, em todos os casos em que essas ações gerem mais lucro, mesmo que só no curtíssimo prazo (NTs)]. Para mais bem proteger o direito das empresas em mundo capitalista privateiro, o Acordo para Comércio de Serviços [orig.Trade in Services Agreement (TISA)] cuida de livrar as empresas de qualquer risco financeiro e de qualquer responsabilidade humana, social ou ambiental. Resumindo, o Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA) meterá o derradeiro prego no esquife já em frangalhos da soberania nacional.

Perigosíssimo precedente 

Dadas as modestas dimensões territoriais (3,4 milhões de habitantes) e influência geopolítica ou geoeconômica limitada, o fato de o Uruguai ter-se retirado do grupo clandestino que está redigindo o Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA) dificilmente provocará qualquer adiamento no avanço das conversas. Governos de todas as grandes nações que comerciam em todo o globo[3] continuarão suas conversas secretar, bem escondidos dos olhos e ouvidos dos povos e pessoas que eles, supostamente, estariam representando. 

O Congresso dos EUA já assegurou ao governo Obama o regime de "fast-track" [lit. "trilha rápida", equivalente a "tramitação de urgência"] para aprovar acordos como o  Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA)], e a Comissão Europeia, com total certeza, fará exatamente o que a dinheirocracia privateira mandar.

Contudo, como diz Glyn Moody, especialista em temas de tecnologia, a retirada do Uruguai, afastando-se daquelas negociações – como fez o povo da Islândia, que se recusou a assumir dívidas de seus bancos e banqueiros bandidos – tem tremenda importância simbólica: "A saída do Uruguai diz que, sim, é possível retirar-se de negociações ditas 'globais'; e que as aparentemente irreversível decisões daquele acordo também podem ser desfeitas. Assim, o Uruguai oferece importante precedente a outras nações que têm dúvidas crescentes sobre o TISA – ou, mesmo, sobre a Parceria Trans-Pacífico: que vejam o que fez o Uruguai e, talvez, que o sigam." 

Evidentemente, representantes das grandes empresas uruguaias concordaram, todos, em discordar do governo uruguaio. Para Gabriel Oddone, analista de uma empresa de consultoria financeira, CPA Ferrere, o movimento do governo do Uruguai foi "um dos seus maiores erros dos últimos anos". Baseou-se em "análise superficial das implicações do tratado."

O que Oddone convenientemente não diz é que precisamente o Uruguai é o único país em todo o planeta onde há ALGUMA discussão pública, superficial ou não, não importa, sobre Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA) e suas implicações aterrorizantes. Talvez essa coisa esteja começando a mudar.*****







[1] ATENÇÃO: O Uruguai está agora SAINDO do grupo dos países que integram o TISA, ao qual o país integrou-se ainda durante o governo de Mujica. Sobre toda a história da ENTRADA do Uruguai no grupo do TISA, do qual o país está agora SAINDO, ver "Por que o Uruguai integrou-se secretamente ao Acordo de Comércio de Serviços?", Antonio Elias, 6/4/2015, SEPLA, Uruguay [NTs]


[2] A greve, que aconteceu 5ª-feira, dia 6/8/2015, foi (des)noticiada pelo portal G1 da Rede Globo, como se vê em "Presidente uruguaio enfrenta primeira greve geral de seu mandato", sem NENHUMA referência à demanda, pelos grevistas, de que o país retire-se das negociações para implantação do TISA [NTs].


[3] MUITO IMPORTANTE ANOTAR que "Nenhum dos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – participa das conversas do Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA)" (in Operamundi).  Sobre a posição do Brasil e da Fiesp [e quem mais seria?!] há matéria interessante, em português, aqui). 

Assim sendo, a saída do Uruguai daquele bloco pode estar sinalizando que o país movimenta-se para alistar-se com outro bloco – aspecto que não é considerado nesse artigo. Então, nós consideramos que


É absolutamente necessário combater contra o Acordo para Comércio de Serviços [orig. Trade in Services Agreement (TISA), porque põe sob ameaça direitos humanos, sociais e políticos cuja proteção por lei foi conquistada com muita luta ao longo de séculos e cuja conquista e consagração deram consistência à civilização humana em todo o planeta, sim. 

Mas também é preciso opor-se ao TISA porque é operação acionada pelos EUA para ampliar o próprio controle sobre o 'bloco' TISA-TPP-TTIP, na disputa q os EUA tanto fazem para inventar contra o 'bloco' BRICS, no que já está sendo chamado de "Projeto 3a. Guerra Mundial em parcelas" (aproveitando a expressão do Papa Francisco em Cuba [NTs].

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