sábado, 19 de setembro de 2015

“Alteram-se as tendências, na disputa por recursos vitais” - Pepe Escobar entrevistado por Lars Schall

"Recuperando" (relembrado e enviado pelo Grupo Beatrice)


27/12/2011, Pepe Escobar (entrevistado por Lars Schall) Consortium News 






(traduzido originalmente por Vila Vudu em redecastorphoto

A disputa por petróleo, água e outros recursos intensifica-se, as relações globais mudam, criando o pano de fundo para uma cadeia de conflitos, do Iraque à Líbia. Pepe Escobar, jornalista nascido no Brasil e um dos mais sensíveis analistas dessas tendências, fala aqui, em entrevista ao jornalista alemão Lars Schall.






Lars Schall: Pepe Escobar, dada sua experiência nesse campo, qual, em sua opinião, o principal mal-entendido que se constata na opinião pública em geral, relacionado à chamada “Guerra ao Terror”?

Pepe Escobar: A “Guerra ao Terror” foi história-de-capa e cobertura para um “Choque de Civilizações” e uma guerra fria oculta, mas que talvez ‘esquente’, entre os EUA e seus dois concorrentes estratégicos, China e Rússia. Os EUA não poderiam atacar diretamente nenhum desses dois países membros do grupo BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os países emergentes].

Lembremos que antes da “Guerra ao Terror” e depois da queda do Muro de Berlim, os norte-americanos tentavam definir quem seria seu próximo inimigo. Fazia falta um inimigo externo pré-fabricado – antes, foram a União Soviética, a Cortina de Ferro e o demônio do comunismo. Depois que o demônio foi derrotado pela realpolitik – OK, quem é o próximo?

Primeiro, pensaram na China, mas disseram “não, não podemos tomar a China, é uma grande potência, tem armas nucleares. Com a Rússia, a mesma coisa. E os russos estão agindo bem, há lá um fantoche, no Kremlin, Boris Yeltsin, privatizando tudo feito louco e saqueando os recursos da Rússia, hipoteticamente a favor das corporações ocidentais”. Foi assim, até que [Vladimir] Putin virou tudo isso de ponta cabeça.


Assim, a “Guerra ao Terror” pareceu perfeita, porque o Islã pôde ser rotulado como o inimigo. E o 11/9 não poderia ter sido mais conveniente, porque então, embora o conceito já existisse desde antes, havia o “fator Pearl Harbor”. A “Guerra ao Terror” foi conceito que pôde ser vendido não só ao público norte-americano, mas, também, à opinião pública mundial. Mas a agenda oculta, por baixo da “Guerra ao Terror” global, que o Pentágono chama de “A Longa Guerra” – guerra infinita – é, de fato, a emergência de duas potências que são ameaça real e grave aos EUA, Rússia e China.

A Rússia, basicamente porque tem armas atômicas. Naquele momento, sequer pensavam na Rússia como grande exportador de petróleo e gás – foi antes de Putin ter reorganizado a Gazprom, que viria a tornar-se a principal empresa internacional de petróleo e gás.

E a China, a qual, naquele momento, há 10 anos, os americanos viam como ainda desorganizada, talvez enfrentando alguma revolta camponesa, sabe-se lá! Fato é que os EUA não pensavam na China, naquele momento, como concorrente de peso. Hoje, claro, a China tem 3,2 trilhões de dólares norte-americanos nas suas reservas, além dos papéis do Tesouro do EUA etc.

11/9 foi pretexto perfeito, mas, por baixo, oculta, intensificou-se a disputa para chegar às reservas de energia do Golfo Persa e da Ásia Central. E os EUA tinham o plano máster dos neoconservadores. É o mesmo plano que – por difícil que seja acreditar –, está sendo implantado hoje. Esse plano implica desestabilizar esse “Arco de Instabilidade” – expressão cunhada, claro, pelo Pentágono –, do Maghreb pelo norte da África pelo Oriente Médio e direto até a Ásia Central via Afeganistão/Paquistão – que é a intersecção entre a Ásia Central e o Sul da Ásia – até a fronteira da China, em Xinjiang.

Eles precisavam implantar sua estratégica, que foi concebida em sua forma final, depois do 11/9. É a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” do Pentágono, tema sobre o qual você jamais lerá na imprensa dominante nos EUA ou na Europa.

Desde 2002, a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” é doutrina oficial do Pentágono. É intrinsecamente ligada à Segurança Nacional dos EUA: temos de ser principal potência, não só em terra, mar e ar, mas também no ciberespaço e no espaço sideral. Essa é a essência da doutrina da doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”.  [Ver, por exemplo, GARAMONE, Jim (American Forces Press Service): “Joint Vision 2020 Emphazises Full Spectrum Dominance”, 2/6/2000, Departamento de Defesa dos EUA].

Está sendo aplicada agora, depois da “Primavera Árabe”. E é inacreditável que ninguém, absolutamente, fale sobre isso. Todos se puseram a falar de uma “Primavera Árabe”, que é termo impreciso, porque faz crer que os árabes tenham estado adormecidos ao longo dos últimos cem anos, e estivessem ‘despertando’ – o que não é verdade. A palavra “Primavera” não é a palavra certa. Eu diria que estamos assistindo a um processo de maior consciência das classes trabalhadoras e classes médias na Tunísia, no Egito, no Bahrain e também em outras partes do Oriente Médio.

E, em seguida, veio a contrarrevolução, e esse processo contrarrevolucionário está levando diretamente à implantação de outras etapas da doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”. Adiante, podemos voltar a falar sobre isso.

O que estou querendo dizer, basicamente, é que a contrarrevolução, orquestrada pelos EUA e, especialmente, pela Casa de Saud, reinstrumentalizou o que aconteceu na Tunísia e no Egito. Dispararam a contrarrevolução no Golfo Persa e hoje tentam subornar a ditadura militar no Egito para mantê-la lá como ditadura militar. Já deram quase 4 bilhões de dólares à junta militar chefiada por Tantawi, e mais dinheiro virá da Arábia Saudita. Enquanto isso, os EUA, na Ásia Central, tentam reorganizar-se, porque se deram conta de que estão perdendo terreno – e para quem seria? – para China e Rússia.

Isso está acontecendo ao ritmo de novos negócios de petróleo e gás que estão sendo construídos entre China e Rússia, entre o Turcomenistão e a China, e também entre todos esses atores e o Irã – Rússia e China já mantêm cooperação bem próxima com o Irã nos campos de petróleo e gás. Então, disseram os americanos, “OK. Como, então, reorganizamos a coisa toda?”

Do modo como o Pentágono vê o mundo, a “Guerra ao Terror” está mais ou menos acabada para todas as suas finalidades práticas. E volta a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro”: “os EUA temos de controlar tudo”. Significa controlar o Mar Mediterrâneo como “lago da OTAN”, projeto que já implementaram na Líbia e hoje tentam implementar na Síria; controlar o resto da África, enviar tropas para Uganda, como Obama fez há poucas semanas. Mas não se trata só de Uganda; trata-se de todo o coração da África Central, Uganda, Sudão do Sul, República Centro-Africana e Congo – muito petróleo, muitos minérios, muitas terras raras, todos esses recursos extremamente valiosos.

O Ocidente não pode estar ausente, e os EUA têm de manter-se no controle (“esqueçam a China”). Tudo isso implica ampliar o Comando dos EUA na África (AFRICOM), cuja sede está ainda em Stuttgart, Alemanha, mas logo, provavelmente, será transferida para Benghazi, Líbia.

Há poucos dias, conversei com gente da União Europeia em Bruxelas, dissidentes inteligentes que não concordam com o que está sendo feito lá. Disseram-me off the Record que, sim, haverá uma base militar na Líbia; e que o plano sempre foi esse, desde o início.

Haverá muitos “coturnos em terra”, coturnos europeus, turcos, do Qatar, dos Emirados Árabes Unidos, aqueles mercenários que estão sendo treinados pela empresa Blackwater – hoje, empresa Xe – nos Emirados Árabes Unidos. Todos esses farão parte daquela base, que será a base que a OTAN e o AFRICOM desejavam implantar no norte da África.

Em minha opinião, a principal resposta à sua pergunta é: a “Guerra ao Terror” foi cortina de fumaça que durou mais ou menos dez anos. Hoje, todos eles – o Pentágono, a CIA, o FBI, a Agência de Segurança Nacional, o governo Obama, todos eles – já dizem aos quatro ventos: “a al-Qaeda está operacionalmente desativada” (palavras deles).

Praticamente morreram todos, exceto al-Zawahiri e o novo chefe nomeado para o comando militar, mas nem lembro seu nome, e muda a cada semana. Morreram praticamente todos, já não estão no Afeganistão, têm poucos instrutores nas áreas tribais nos Waziristões, não estão operativos no resto do mundo. Mas, sim, estão no poder, hoje, em Trípoli, porque foram usados pelo ocidente. O pessoal de Benghazi foi treinado num campo militar ao norte de Kabul.

Estive lá no início de 2001; havia muitos líbios. E, sim, aqueles líbios são o Grupo de Combatentes Líbios Islâmicos [orig. Libyan Islamic Fighting Group, LIFG]. Foram treinados naquele campo ao norte de Kabul (e nem foi difícil chegar até lá). Hoje, estão no poder na Líbia. O comandante militar de Trípoli, Abdelhakim Belhadj, e seus homens, muito bem armados, militarmente muito bem treinados, não arredarão pé de lá. Esses jihadis ligados à al-Qaeda deixaram-se manipular pelo ocidente, sem oferecer qualquer resistência.

Lars Schall: Você diria que a al-Qaeda, hoje um fantasma da força real que teve ‘nos bons velhos tempos’, foi usada como instrumento da política exterior dos EUA?

Pepe Escobar: Sim, sem dúvida foi! Foi a desculpa perfeita, porque não se afastaram do plano para tentar implementar a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” em todos os pontos nos quais conseguissem implementá-la. Estiveram muito ativos na Ásia Central – até há cerca de dois anos –, desde o governo Bush.

Não esqueça que Cheney visitava a Ásia Central a cada dois, três meses, naquela época. Os EUA tentaram negociar diretamente com os cazaques, com os turcomanos e, especialmente, com o Azerbaijão – a elite do Azerbaijão tem muitos laços com os Republicanos nos EUA. Dick Cheney esteve lá muitas vezes.

E o embaixador especial do governo Bush, que ainda trabalha para o governo Obama, Richard Morningstar, “embaixador do petróleo”, a serviço de Washington na Ásia Central, conhece muito bem todos os personagens. Os EUA tentaram pressioná-los para que não negociassem com os russos, nem com a China, para que deixassem de lado o Irã e negociassem com os norte-americanos. E está acontecendo o quê? Eles negociaram com a Rússia, negociaram com a China, não deixaram de lado o Irã e absolutamente não estão negociando com os EUA.

Lars Schall: Em geral, as pessoas esperam, se você faz guerra, que você deseje vencer a guerra. Mas não é o que se vê na Ásia Central, cenário de guerras perpétuas. Manter esse cenário naquela região traria algumas vantagens para o “complexo petróleo-militar” (expressão do economista James K. Galbraith), em relação a China e Rússia? [Sobre a expressão “complexo petróleo-militar”, ver GALBRAITH, James K., “Unbearable Costs of Empire”, orig. The American Prospect magazine, Nov. 2002, inThird World Travelor].

Pepe Escobar: Sim, mas o problema é que o “complexo” não conhece os atores com os quais está lidando. O ‘complexo’ não considera fatores culturais, esquece, por exemplo, que os turcomanos são muito independentes e sempre preferirão negociar com interlocutores que falem a língua deles – o russo. Se Medvedev vai a Ashgabat, para conversar com o presidente Berdimuhamedov, e fala russo, a probabilidade de que se fechem negócios é muito maior.

Quanto aos chineses, vão a Ashgabat e dizem: construiremos qualquer coisa que vocês queiram que seja construída; construímos, nós mesmos, os gasodutos e oleodutos. Façam-nos um bom preço pelo gás de vocês e amanhã nós construiremos esse gasoduto, do leste do Turcomenistão ao oeste da China. Foi exatamente o que já fizeram e, há dois anos, o gasoduto já foi inaugurado. Aplica-se também aos africanos: a China negocia sem pré-condições e sem qualquer interferência na política interna dos outros países.

Durante algum tempo, os norte-americanos tentaram essa via, como com o Uzbequistão e aquele presidente que cozinha o próprio povo, Islam Karimov. Estiveram em negociações bem íntimas, com o governo Bush, e os EUA tiveram uma base militar em Karimabad, cidade próxima da fronteira afegã, e que foi muito útil para os norte-americanos. Mas depois se puseram a criticar os direitos humanos no Uzbequistão. O que disseram os uzbeques? Adeus base militar! Os uzbeques são parte do óleo-gasoduto que vai do Turcomenistão à China, via Uzbequistão. Os EUA mudaram um pouco de tática, mas, no fim, perderam a disputa.

Até que, afinal, os EUA começaram a perceber que perderam terreno para a Rússia e para a China, para ambos os países, na Ásia Central. Então trataram de se reposicionar no Golfo Persa, no norte da África e também dentro da África. A Líbia terá grande serventia para novas explorações de gás e petróleo. Os líbios dizem que manterão os contratos vigentes com os italianos – há um oleoduto do norte da Líbia até a Sicília, e há o óleo exportado para a Itália. Mas os novos contratos irão todos para a empresa Total, para a British Petroleum (BP) e para os norte-americanos, não para russos e chineses.

A Líbia foi, é e continuará a ser muito lucrativa para as majors ocidentais, as empresas ocidentais gigantes da energia. Na Ásia Central, a única esperança dasmajors é o Azerbaijão, porque as majors mais ou menos controlam os negócios de energia no Azerbaijão e, como já disse, as elites do Azerbaijão operam, basicamente, como satrapias de Washington. O problema é que as majors não controlam o Turcomenistão.

Estão pressionando o Turcomenistão, para construir o oleogasoduto Nabucco. Mas Nabucco custará uma fortuna, cerca de 20 bilhões de euros, e ninguém sabe de onde virá esse dinheiro, sobretudo agora, com a crise europeia.

Os turcomanos dizem que podem fornecer gás suficiente, mas ninguém sabe se eles têm de fato todo esse gás, porque estão fornecendo gás ao Irã, vendem muito gás para a China e continuam a vender gás pelo velho gasoduto soviético. Nabucco precisará de muito gás, e ninguém sabe se o Turcomenistão terá tanto gás. E os turcomanos dizem: vocês têm de provar que já reuniram os financiamentos necessários para o gasoduto, que pode ser construído nos próximos três ou quatro anos; enquanto não mostrarem o dinheiro, não podemos comprometer, nesse gasoduto, as nossas reservas de gás.

Isso significa que, se o Turcomenistão não tiver gás suficiente, os europeus terão de buscar o gás noutro lugar, e não poderá ser no Azerbaijão, a menos que gastem mais de 22 bilhões de dólares em novos investimentos.

Enquanto todos estão emperrados em negociações difíceis, os russos já construíram dois oleogasodutos: o North Stream e o South Stream. Putin está vencendo a guerra contra o projeto Nabucco, porque começou antes e negociou antes com os governos de Gerhard Schröder na Alemanha, para a construção doNorth Stream; e com o governo de Silvio Berlusconi na Itália, para a construção do South Stream. Esses dois oleogasodutos, um no norte e outro no sul, estão derrotando o projeto Nabucco, para o qual o dinheiro ainda não apareceu; não se sabe de onde poderá vir; não se sabe se o projeto encontrará todo o gás de que precisa para ser comercialmente rentável; e não se sabe onde encontrarão esse gás, se não for nem no Turcomenistão nem no Azerbaijão. A Turquia também quer para ela boa parte do gás, além dos impostos que poderá arrecadar pelo trânsito do gás por território turco. A confusão é completa, por ali.

Lars Schall: Continuo a ler os pronunciamentos oficiais sobre Nabucco (o consórcio tem sede em Viena). A cada um, dois meses, aparece novo comunicado: que vai começar, que já têm os 20 bilhões de euros, que estará construído em 2017, a construção começará no próximo ano, mas é o mesmo que dizem há cinco anos, se não me engano com as datas.

Outro problema central é o tráfico de ópio/heroína no Afeganistão. O que você tem observado, o que pensa desse problema? Quem são os principais players desse comércio? Você também entende que todo esse caso é uma vergonha para o ocidente?

Pepe Escobar: Ah, sim. Um dos principais players nesse comércio sempre foi Ahmed Ali Karzai, irmão do presidente Hamid Karzai do Afeganistão. Encontrei-o depois do 11/9 em Quetta – ele sempre viveu em Quetta, sua base perfeita. Quetta é cidade fascinante. Costumo dizer que é a capital do contrabando e do tráfico de drogas de todo o oriente – e não é dizer pouco, porque Quetta compete com Hong Kong; de fato, compete com todos, com os russos, com a máfia ucraniana.

Em Quetta há uma máfia de transportes, uma máfia de heroína e, a partir de Quetta todas aquelas redes começam a diversificar-se. Uma rede atravessa o norte do Paquistão e chega ao Tadjiquistão; outra rede bifurca-se no Tadjiquistão e avança na direção da Ásia Central e, dali, avança até a Turquia.

E há as redes do ópio paquistanesas/afegãs e outra rede no Tadjiquistão que só cuida do refino. Todos, na região, sabem que essa é a rede da CIA. O que ainda não se conhece precisamente é o traçado, a trajetória, dessa rede. O mais provável é que parta do Afeganistão pelo Uzbequistão para chegar à Turquia, ou, talvez parta do Uzbequistão. Naquela parte do mundo, cada grupo tem sua rede de tráfico.

Lars Schall: Que eu saiba, as máfias chinesas não têm rede no Afeganistão, mas, provavelmente, logo terão. Mas esse já é um problema terrível para os russos. Se se pergunta a funcionários russos qual o principal problema em relação ao Afeganistão, todos dizem a mesma coisa: a droga está em guerra contra nós; a origem dessa guerra é o ópio afegão. O número de russos mortos por causas associadas à heroína já é maior que as baixas que os russos sofreram na guerra do Afeganistão, nos anos 1980s.

Pepe Escobar: Você tem toda a razão. Os russos falam muito sobre isso na Organização de Cooperação de Xangai. Não se trata só de manter as bases norte-americanas fora daquela área – como os chineses também desejam manter. Os russos precisam também encontrar um modo de desmontar essas máfias do ópio, de drogas. É grave problema para a Rússia – como, aliás, também é grave problema para o Irã.

Para o Irã, por causa dos refugiados afegãos. Os refugiados afegãos moveram-se para o leste do Irã, basicamente. Se você vai a Mashhad, no leste do Irã, e visita os subúrbios de Mashhad... Ali é o centro do ópio; é o centro do contrabando do ópio. Atravessam o Afeganistão, via Herat, de Herat a Mashhad, hoje as estradas são excelentes, uma viagem de no máximo sete horas; e de Mashhad distribuem o ópio por todo o Irã. O problema das drogas também é grave no Irã. O Irã já é membro observador da Organização de Cooperação de Xangai e uma das principais razões pelas quais o Irã interessou-se pela OCX é tentar criar um mecanismo regional capaz de combater eficazmente o tráfico de drogas, uma real guerra ao tráfico naquela região. Aqueles países estão sofrendo terrivelmente.

Lars Schall: Sendo assim, a heroína já está sendo processada no Afeganistão, não apenas plantada e colhida ali. Uma pergunta que sempre faço a mim mesmo: e quem fornece os materiais químicos necessários ao refino e processamento? Que eu saiba, não há fábricas de anidrido acético no Afeganistão, há?

Pepe Escobar: Honestamente, não sei. Mas acho que, sim, pode haver, provavelmente há, ajuda externa envolvida nessa produção. É verdade. No Afeganistão o refino é simplesmente impossível. As refinarias costumavam ser instaladas no Tadjiquistão ou no Paquistão, em Quetta, por exemplo, ou em Dushanbe no Tadjiquistão. O povo do vale do Panjshir tem contato com o tráfico, tudo está concentrado em Dushanbe, 40 minutos ao norte do Afeganistão, por helicóptero (e eles têm seus próprios helicópteros). Portanto, sim, eu diria que recebem ajuda externa. E, claro, a especulação sempre aparece: o ocidente estará ali, ajudando o tráfico? 

Lars Schall: Não é acaso, que tantos especulem na mesma direção: onde há recursos energéticos e/ou tráfico de drogas ilícitas (p.ex. América do Sul, Ásia Central, Sudeste Asiático), os militares e a inteligência dos EUA nunca estão longe...

Pepe Escobar: É, estão, sim, por toda a parte. Embora, hoje, já não possam andar como antes pela América do Sul, em função do que acontece por lá, digamos, desde 2002. 

Foi um terremoto geopolítico, de fato: os sul-americanos, pela primeira vez na história do continente (depois da eleição, primeiro do presidente Chávez na Venezuela, e depois do presidente Lula no Brasil em 2002, depois no Equador e até no Uruguai e até com a eleição de Kirschner na Argentina), afinal decidiram. “OK. Agora, vamos agir juntos, agora que tantos governos eleitos por aqui são de centro-esquerda ou são, pelo menos nominalmente, governos progressistas.

Vamos pôr “ordem na casa”, disseram os sul-americanos; “vamos nos organizar através da UNASUL, por exemplo, a União dos Países Sul-Americanos; e do MERCOSUL, que é uma união de trocas e comércio regional. E vamos tentar resistir diretamente à interferência dos norte-americanos”. E isso, precisamente, é o que hoje se vê. Lembre que, em 2002, o presidente Chávez da Venezuela escapou de um golpe, organizado diretamente de Washington (e há muitas provas disso, até na Internet. Eva Golinger, advogada venezuelana-norte-americana, escreveu livros excelentes sobre aquele golpe). Em 2007, os EUA tentaram desestabilizar a Bolívia; e houve mais um golpe fracassado no Equador, há pouco mais de um ano.

Quero dizer: não está acontecendo como acontecia antes na América do Sul, porque agora, ali, há unidade política, econômica e geopolítica.

Mas que ninguém duvide: se o Pentágono encontrar uma abertura pela qual possa outra vez tentar intervir diretamente na Venezuela, eles tentarão de novo. O problema é que, agora, há especialistas russos na Venezuela, há empresários e especialistas chineses, e iranianos com interesses locais, na Venezuela. A Venezuela deixou de ser país que só negociava na América do Sul, embora, sim, tenham muitos negócios com Brasil, Argentina etc. Mas hoje a Venezuela vende também ao outro lado do mundo; e negocia diretamente com os dois principais concorrentes estratégicos dos EUA, além de o presidente Chávez ser amigo muito ativo da nêmesis dos EUA, o Irã. São mudanças muito significativas, que explicam muita coisa.

Desde 2002, a América do Sul está transformada em problema gigante para o Pentágono. Não surpreende que aqueles doidos que disputam a indicação a candidato dos Republicanos, tenham dito, no último debate televisionado, que o Hamás e o Hezbollah estão infiltrados por todos os cantos na América do Sul; que os EUA têm de precaver-se contra a América do Sul, porque os EUA já esqueceram que há muitos comunistas e terroristas na América do Sul. Mas o quadro mudou muito na América Latina, e não há nada de novo no que os EUA dizem.

Lars Schall: Mas você diria que é coincidência, essa conexão histórica entre recursos energéticos e drogas ilícitas? Por exemplo, na guerra do Vietnã.

Pepe Escobar: É verdade, com a Air America. A Air America não estava só defendendo civis no Laos e no Vietnã. Basicamente, foi uma operação de contrabando de heroína, que a CIA dirigia. – Mas a coisa não é necessariamente assim. 

Eu lembraria o caso da Colômbia, que foi completamente diferente. A Colômbia foi um caso de cartéis locais, que lutavam entre eles, pelo monopólio de exportar cocaína para os EUA. Nesse caso, eu diria que havia poucos interesses norte-americanos envolvidos nisso – vender equipamento e armas, sim, mas os norte-americanos não estavam à frente da batalha contra os cartéis. E quando os cartéis se fragmentaram, espalharam-se por todos os cantos. Agora, nos últimos três ou quatro anos, são peruanos que controlam a distribuição de cocaína na América do Sul, já não são os colombianos.

Deslocalizaram-se, por exemplo, também para o Brasil, como centro de refino e de exportação. Eu diria que, semana a semana, aumenta a apreensão de cocaína no Aeroporto Internacional de São Paulo, por exemplo. Se você multiplica isso pelo que realmente entra por ali, é incrível. Hoje, o aeroporto de São Paulo é um dos principais portos de embarque de cocaína para a América do Norte e para a Europa. Antes, foi a heroína que vinha da Ásia Central via Europa, e que desembarcava também no Brasil.

Engraçado: houve um tempo, nos anos 1980s, lembro bem, que havia uma conexão italiana: as pessoas traziam heroína de Milão para São Paulo, e levavam cocaína de São Paulo para Milão (risos). Isso há quase trinta anos.

O caso da Colômbia é muito diferente. Não há relação direta entre drogas e energia. E o mesmo acontece na Venezuela: ali, o único jogo em andamento tem a ver com energia: é uma batalha por energia. Hugo Chávez – e pense-se o que se pensar sobre ele – tem agido com muita inteligência, porque [pensou ele]... OK. Minha saída é negociar com outros players. E a Venezuela fez logo negócio gigante com a China. Hoje, é um dos maiores fornecedores de petróleo para a China.

Em breve estarão vendendo 1 milhão de barris de petróleo por dia, à China. E podem aumentar para dois milhões, facilmente, se os chineses investirem na região do Orenoco, explorando novos campos, o que os chineses farão. Não é prioridade agora, porque, no momento, os chineses estão concentrados na Sibéria, Ásia Central e África. Mas os chineses ainda têm esse plano C ou D para eles: a Venezuela.

Lars Schall: E contam com o Brasil, como exportador de petróleo?

Pepe Escobar: Sim, com toda a certeza, por causa dos depósitos do pré-sal, no Brasil, que são uma espécie de “benção” complexa, de fato. A Petrobrás é vista em todo o mundo como das mais competentes empresas estatais de petróleo. O problema é que a Petrobrás tem de desenvolver tecnologia específica para perfurar a camada de sal, para extrair o petróleo. É operação extremamente complexa e extremamente cara. Dizem que a extração começará em 2017, mas duvido.

O último número que vi, em termos do investimento necessário, faz alguns meses, era algo como 220 a 240 bilhões de dólares de investimentos ao longo de poucos anos, para começar a extrair o petróleo do pré-sal. Todos querem participar. A Chevron já está lá, a Exxon Mobil, a Gazprom quer vir e, claro, os chineses. E tenho certeza de que, quando os brasileiros começarem a lançar projetos, os chineses estarão na primeira fila, com todas as suas empresas,CNPC, CNOOC, todas elas.

Mas é projeto de longo prazo para os chineses, é claro, porque, se se analisa a coisa com realismo, não haverá petróleo do pré-sal antes de 2019/2020. Os chineses estão pensando à frente.

Lars Schall: Ouvimos falar muito dos BRICS. Você entende que seja só um bom nome, inventado por Goldman Sachs, ou há mais sob esse nome, uma estratégia abrangente, alguma coisa desse tipo?

Pepe Escobar: Ainda não há uma estratégia abrangente. Foi só um bom nome, em 2001/2002. Agora já é mais que isso, porque eles se reúnem com regularidade, não só no encontro oficial anual, mas os ministros de Relações Exteriores trabalham juntos, os vice-ministros encontram-se, como encontraram-se recentemente em São Petersburgo. Todos têm interesses semelhantes. Para Rússia e China, trata-se de manter os EUA longe de seus quintais, quer dizer, basicamente, longe da Ásia Central e das ex-repúblicas soviéticas.

Ao Brasil, o que interessa é manter os norte-americanos fora da América do Sul, o mais que seja humanamente possível, considerando que Brasil e EUA mantêm relações muito, muito próximas, e os EUA ainda vêem o Brasil como aliado-chave na América Latina. O jogo das relações exteriores entre Brasil e EUA é extremamente complicado.

À Índia, o que interessa é manter-se no mesmo grupo das demais nações emergentes, sem antagonizar demais os EUA. A Índia também tem de jogar um jogo difícil.

A África do Sul só foi incluída, basicamente, porque os demais precisavam dar um salto continental, queriam estar representados em três continentes. Do ponto de vista dos BRICS, eu diria – e, de fato, já discutiram isso em Brasília, no ano passado – que o quinto BRIC seria a Turquia, seria o grupo BRICT. Mas, no último momento, incluíram a África do Sul. Entenderam que precisavam acrescentar ao grupo a maior economia da África, e porque Brasil, África do Sul e Índia já comerciavam entre eles, muito mais, nos últimos quatro anos, que nos 400 anos anteriores. Brasil e África do Sul estão-se integrando muito bem. E a África do Sul é a ponte entre o Brasil e a Índia. Encaixava-se bem aos outros trêsplayers.

Mas acho que, em breve, os BRICS talvez incluam – digo “talvez”, porque começaram a discutir, mas ainda não sabem como fazer, em termos formais – a Turquia, a Indonésia e a Coreia do Sul. Que são candidatos naturais, não há dúvidas. Dois na Ásia e um no Oriente Médio, na intersecção entre Europa e Ásia.

Começaram a conversar sobre maior integração em termos das suas economias, trocas culturais, todo esse blá-blá-blá. Agora, estão pensando: OK. Temos de dar um soco no mesa, mesmo que, no começo, seja um soco soft. Já agiram juntos no caso da Líbia, quando se abstiveram de votar a Resolução UN 1.973 – o que já foi um grande passo. Foram condenados por isso, mas sem alarido, por europeus e pelos EUA. Mas raciocinaram que aquela não podia ser uma linha vermelha; no máximo uma suave linha amarela. Nenhum deles pode antagonizar muito os EUA.

Depois, veio a mais recente proposta para que o Conselho de Segurança da ONU votasse o caso da Síria. Os BRICS imediatamente perceberam que “não, não, isso não pode ser: aí está a linha vermelha”. E isso, por várias razões. Porque Rússia e China têm muitos bons negócios com a Síria. Brasil e Síria são muito próximos. Milhões de sírios vivem no Brasil, além de sírio-libaneses. No Brasil se diz sírio-libaneses. São quase indistinguíveis para muitos brasileiros, porque começaram a chegar nos anos 1920s, 1930s e também depois da II Guerra Mundial. Todos vivem perfeitamente integrados na sociedade brasileira, e há muitos negócios entre Brasil e Síria. Essas razões são algumas das que explicam também porque todos aqueles países têm posição comum.

Quanto à África do Sul, é evidente. Na primeira votação, da Resolução da ONU, foram pressionados por Obama. Obama telefonou ao presidente Zuma, falaram por duas horas, e Obama disse: você tem de votar conosco, ou vão ter problemas. Zuma votou contra vontade. Adiante, participou da delegação da União Africana para tentar negociar a paz entre Gaddafi e os “rebeldes”. Gaddafi aceitou tudo; os “rebeldes” disseram não. Por quê? Porque a OTAN mandou que dissessem não. Quer dizer, a África do Sul também tinha seus motivos. 

A Síria é a linha vermelha. Por isso estão agora começando a organizar a abordagem conjunta, do grupo, em relação ao ocidente atlanticista, de modo muito mais bem coordenado. E em termos econômicos, estão pressionando o Fundo Monetário Internacional, para que dê mais peso aos votos do Brasil e da China.

O FMI tem três nomes na posição de diretores regionais com direito a voto, e China e Brasil dizem, há anos, que precisam de mais diretores, para que seus votos pesem mais. Tudo isso está em discussão. Lembre que o ministro das finanças (Fazenda) do Brasil disse “e se, talvez, encontrássemos um meio para ajudar as economias europeias?” Foi como dizer: “O problema é do FMI. Nós queremos participar, queremos ter mais votos, mais peso nas votações. Depois, decidiremos se vamos ajudar ou não. Mas terá de ser feito pelo mecanismo do FMI”.

Não há dúvidas de que, sim, estão agindo de modo muito mais coordenado do que há, digamos, dois anos. Não demorará, e os BRICS serão BRICTS, BRICTIISS, BRICS expandidos. Mas hoje o grupo está configurado como um contrapoder, em termos geopolíticos, em termos de atrair o mundo em desenvolvimento; porque os BRICS exercem enorme fascínio sobre o Movimento dos Não Alinhados [orig. Non-Aligned Movement, NAM], por exemplo; e sobre outros países latino-americanos, vários países do Oriente Médio, vários países do Sudeste Asiático, um fascínio imenso... E contra uma “liga” atlanticista, EUA-OTAN (é praticamente uma coisa só, porque os EUA controlam a OTAN).

A OTAN aliou-se às monarquias do Golfo Persa, ultrarreacionárias e ultrarrepressivas. O realinhamento do tabuleiro de xadrez é algo hoje muito suspeito, porque hoje esses países, especialmente o Qatar e os Emirados Árabes Unidos são subseitas da OTAN. Escrevi recentemente que começava a considerar a possibilidade de falar sempre de OTANCCG ou CCGOTAN. CCG é o Conselho de Cooperação do Golfo, que costumo chamar de Clube Contrarrevolucionário do Golfo, porque é o que o que é. [23/11/2011, Pepe Escobar, “A pedregosa estrada de Damasco” (Asia Times Online), em português].  


De fato, a fusão entre OTAN e CCG já é total, hoje. Se se inclui a fusão entre o complexo industrial-militar ocidental nos EUA, e o sistema de defesa dos sauditas, que também já é fusão total, pode-se dizer que o Pentágono e o CCG já são uma e a mesma coisa.

Os BRICS veem tudo isso. E para alguns daqueles países é extremamente complicado. Para a China, por exemplo, porque seu principal fornecedor de petróleo é a Arábia Saudita. Atualmente, a Arábia Saudita está ultrapassando Angola. A Venezuela já está entre os cinco maiores. A Líbia não estava entre esses cinco maiores fornecedores, motivo pelo qual disseram ‘OK, agora, não. Quem sabe, adiante.’ Mas como eles organizam o relacionamento entre Pequim e Riad? Os chineses veem que Riad está completamente alinhada com a agenda do Pentágono. E, ao mesmo tempo, os chineses dependem do petróleo dos sauditas. Isso explica, dentre outros fatores, por que os chineses estão tão ansiosos para conseguir depender cada vez menos no petróleo do Oriente Médio.

Tudo isso implica mais negócios com o Irã. Meu palpite, mais ou menos bem informado, é que, em breve, os chineses irão a Teerã e perguntarão: ‘De quanto dinheiro vocês precisam para ampliar muito suas instalações de gás e petróleo? Nós pagamos, desde que vocês negociem conosco.’

Isso explica o oleogasoduto do Turcomenistão à China; isso explica os dois oleogasodutos da Sibéria à China; e isso explica a China estar em Angola e também na África Central; e isso explicará que a China chegue ao Brasil e diga: De quanto dinheiro vocês precisam? A relação sauditas-China é muito complicada para Pequim, o que significa que, por hora, a China não pode antagonizar a Arábia Saudita em nenhum campo.

Lars Schall: Ainda sobre os BRICS: você observou o fato de que os bancos centrais da Rússia, da China e da Índia, e também alguns bancos centrais da América do Sul, estão comprando muito ouro?

Pepe Escobar: Sim, claro! Estão agora comprando ouro, e ainda têm o Plano B, que é uma cesta de moedas, em termos de um sistema internacional de moedas. Os russos e chineses querem, os brasileiros querem, e a cesta incluirá provavelmente o dólar, o euro, o yuan, talvez o rublo e também o real, talvez o yen, mas os japoneses não entraram, até agora, na conversa. Por enquanto, se trata, é claro, de comprar ouro, inclusive os que não estão no jogo, mas estão conectados a ele, como a Venezuela. Não esqueça que a Venezuela está repatriando todo o ouro que o país tinha depositado em bancos europeus. Uma primeira remessa de ouro repatriado já está em Caracas.

Lars Schall: Você acredita que possa vir a haver algum tipo de conexão, entre a cotação do petróleo e do ouro, no futuro próximo?

Pepe Escobar: Sinceramente, não sei. E sabe por quê? Eu diria que essa conexão dependerá de um movimento ligado a abandonar o petrodólar. É movimento que já começou há alguns anos. O Irã quer muito fazer, hoje como antes. A Rússia já disse que quer. A Venezuela já disse, na América do Sul, sim, nós também queremos. Mas acho que é solução “bomba atômica”. Pergunto: você consegue imaginar o dia em que os grandes produtores de petróleo dentro da OPEP digam: “Chega de petrodólar. A partir de agora negociaremos com nossas próprias moedas ou com as moedas de uma cesta de moedas”?. Basicamente, é o fim da hegemonia dos EUA.

Lars Schall: O país que tentar, estará frito.

Pepe Escobar: É. O mundo todo estará frito. Vejo essa opção como opção ‘bomba atômica’. Há poucos anos, quando o Irã estava implantando uma Bolsa de Energia, de fato, a ideia já estava presente lá, desde 2008 [18/2/2008 “Oil Bourse Opens in Kish”, Fars News Agency, em inglês].   Lembro que, em 2005, entrevistei o sujeito encarregado de organizar e implantar essa Bolsa de Energia em Teerã. Foi uma entrevista fantástica. E, logo depois, tive uma briga terrível com o então editor de Asia Times, porque ele disse “Se publicarmos isso, amanhã os EUA bombardeiam nosso website.

Os iranianos disseram: é nosso primeiro passo, para que as pessoas comecem a comprar contratos de petróleo aqui, na nossa Bolsa, não em New York ou em Londres. E eu disse a ele: E vocês sabem o que estão fazendo, se a coisa evoluir? Dia seguinte os EUA bombardeiam Teerã. E ele me disse: “Sabemos dos riscos. O homem que está construindo esse mecanismo para nós é um ex-corretor que operava em Londres.” Foi negócio extremamente complicado, essa é a verdade.

Depois da minha entrevista, ainda se passaram três anos. Como você disse, a Bolsa só foi implantada em 2008. É uma Bolsa muito pequena, mas, do ponto de vista dos iranianos, é só um começo. Eles gostam dessa Bolsa. Começaram só com petroquímicos e querem, no futuro, negociar petróleo e gás. Estavam especialmente interessados em atrair compradores do mundo em desenvolvimento, além de Rússia e China, que poderão comprar produtos da energia iraniana diretamente do Irã. Tenho certeza de que Rússia e China também adoraram a ideia. Mas, no momento, é só um embrião de algo muito maior, que virá depois.

Lars Schall: Você usa as expressões “Oleodutostão  do Grande Oriente Médio” e “Grande Jogo 2.0” na Ásia Central. É útil conhecer o bom velho Halford Mackinder (geógrafo britânico, chamado de “o pai da geopolítica”), para pensar o “Oleodutostão”?

Pepe Escobar: Não. Quem conhece bem Mackinder é a turma de Brzeziński e o pessoal das agências de segurança nacional em Washington. Só eles acham que podem “aplicar” Mackinder e vencer (risos). Os russos e os chineses diriam: “Não na nossa região, caríssimos. Aqui, a coisa é diferente. Nós temos os recursos. A Rússia é potência continental. A China, sozinha, é um reino e uma civilização. Aqui não admitimos interferência externa, vocês nunca controlarão nossa parte da Eurásia. Podem controlar a parte “euro” da Eurásia, mas ela acaba no Bósforo. À direita do Bósforo, a Turquia tem ambições regionais, o Irã tem ambições regionais, nós temos nossas ex-repúblicas soviéticas, que ainda vemos como nossos satélites.”

O sudeste da Ásia está hoje ligado à China, em termos de comércio, negócios. Eu diria até que partes do sudeste da Ásia já se estão convertendo em subseitas da China.

Lembre que, durante o Milagre Asiático, quando o Banco Mundial lançou aquele famoso livro, em 1993, O Milagre Asiático, o Japão estava à frente, com os quatro tigres asiáticos atrás, depois os subtigres, e a China estava muito atrás, na fila. Hoje, em 2011, a coisa inverteu-se completamente: a China vem à frente, imensíssima, e atrás da China vêm os ‘sub’, tentando manter o passo e obter negócios. A diáspora chinesa é essencial em todos aqueles países.

Eles controlam a maior parte da economia na Indonésia, controlam quase toda a economia na Tailândia, casamentos mistos, tai-chineses, controlam quase toda a economia nas Filipinas, controlam grande parte da economia na Malásia, controlam toda a economia em Cingapura. Tigres? Não. Minigansos. A coisa está completamente invertida.

Por tudo isso, não vejo como se possa “aplicar” Mackinder. Pensaram nisso, no governo Bush, tomado de húbris, e porque diziam, lembra-se, diziam isso dia sim, dia também: “Nós criamos nossa própria realidade e vocês, resto do mundo, que nos acompanhem.” Supuseram que conseguiriam implementar sua estratégia de grande jogo na Ásia Central, construindo aquele oleogasoduto no Afeganistão, o TAPI – Turcomenistão, Afeganistão, Paquistão, Índia, contornando o Irã, a Rússia e a China.

Supuseram que pudessem forçar os turcomanos a vender gás a empresas ocidentais, não à China, ou a ligarem-se à rede russa de oleogasodutos. Estavam ainda embriagados pelo sucesso que obtiveram com o oleogasoduto BTC (Baku-Tbilisi-Ceyhan) e diziam que seria o começo de vários dutos que contornariam o Irã.

Mas tudo isso foi no começo do governo Bush até 2003/2004, depois do “sucesso” da guerra do Iraque. Hoje, poucos anos depois, como já conversamos, os americanos já não conseguem ganhar coisa alguma. De fato, a Organização de Cooperação de Xangai, que é mecanismo para conter essa proliferação de iniciativas dos EUA na Ásia Central, fortalece-se dia a dia.

Em termos de negócios de energia, a Rússia, o Irã, a China, o Turcomenistão, todos estão negociando entre eles. Obviamente, há espaço com a Europa, mas eles não podem negociar com a Europa, no caso do Irã, por causa das sanções; e no caso do Turcomenistão, porque construir um oleogasoduto como Nabucco, de mais de 20 bilhões de dólares, é inexequível. Para dar-lhe uma ideia, o custo do BTC, 4,5 bilhões de dólares naquele tempo, e naquele tempo todos diziam: é ridículo construir um oleogasoduto como esse, quando podemos ter rota mais curta a partir do Irã, que custará dez vezes menos que aquilo. E constroem, mesmo assim. Hoje, já é 500% mais caro que o BTC.

Verdade é que os EUA não estão vencendo coisa alguma; no Afeganistão, estão atirando no próprio pé, porque agora já antagonizaram não só o Paquistão, o que fizeram ao bombardear o país, nos últimos anos, na guerra dos drones; já antagonizaram os próprios afegãos, que realmente queriam acertar alguma coisa com os americanos. Os líderes tribais já diziam “vamos conversar com os norte-americanos sobre o tipo de base que querem depois que se retirarem, em 2014”. Queriam discutir o assunto.

Hoje? Esqueça, porque o Paquistão não quer mais discutir, estão fartos; e o Paquistão e a China estão cada vez mais próximos, mais próximos. Os chineses vão explorar essa ravina entre Washington e Islamabad. No Afeganistão, a confusão será total. Eles não querem saber de bases norte-americanas, tenho certeza, depois de 2014. O Pentágono, assim, tem de impor as bases, contra o Afeganistão; não se conhece ainda o mapa do caminho, tampouco, para fazer isso. 

Assim sendo, se você analisa em termos de sucessos do novo grande jogo ao estilo dos EUA na Eurásia, já depois de quatro ou cinco anos, não se vê grande coisa (risos).

Lars Schall: Se consideramos a questão: “Por que as guerras acontecem?”, você diria que o fato de os bancos estarem no topo da lista dos que se beneficiam com as guerras é parte importante da resposta, por exemplo, até agora?

[Nota do editor: para conhecer o contexto, ver J.S. Kim:“Inside The Illusory Empire Of The Banking Commodity Con Game”, in The Underground Investor, 19/10/ 2010, em inglês”: 


“O Federal Reserve dos EUA cria dinheiro para financiar a guerra e empresta o mesmo dinheiro ao governo americano. O governo americano, por sua vez, tem de pagar juros pelo dinheiro que toma emprestado do Banco Central para custear a guerra. Quanto maiores as apropriações de guerra, maiores os lucros dos banqueiros.”]

Pepe Escobar: Concordo, mas só se houvesse grandes apropriações de guerra, se o butim fosse alto. No Iraque não foi. O butim a ganhar no Iraque seria o petróleo que pagaria a guerra e, mais que isso, garantiria fornecimento de petróleo para os EUA pelos próximos mil anos, o novo Reich Americano, baseado no petróleo do Iraque. Não funcionou.

O que aconteceu no Iraque foi uma fascinante lição histórica. No começo, os neoconservadores pensavam, obviamente, porque nada sabem, absolutamente nada, sobre o Oriente Médio, sequer viajam, não conhecem; mas pensaram: “Ora, vai-nos custar praticamente nada; faremos os iraquianos pagar por tudo; e depois, quando o petróleo começar a chegar, pagarão o que não tiverem pagado antes”. Lembre-se do que diziam: “Somos a nova OPEC”. Isso, no final de 2002, começo de 2003. Também não funcionou. 

Hoje, vemos uma variante, digamos, do modelo: guerras pagas por potências estrangeiras. A China está financiando as guerras no Iraque, no Afeganistão, parte da guerra na Líbia (não custou muito, mas, de qualquer modo, sim, a guerra na Líbia), a guerra na Somália, a guerra no Iêmen, a próxima guerra em Uganda ou no Sudão, que os EUA resolvam começar. Basicamente, todas essas guerras são financiadas pelos chineses, quando compram bônus do Tesouro americano. É uma variante do modelo.

Lars Schall: Em artigo para a al-Jazeera [“Why the US won't leave Afghanistan”, Al Jazeera, 12/7/2011, em inglês]  , você citou um estudo sobre o custo da Guerra ao Terror, publicado pelo projeto Eisenhower da Brown University. Lembra? 
Pepe Escobar: Sim, lembro.

Lars Schall: E o custo era quatro bilhões?

Pepe Escobar: Era, dependendo das variáveis do cálculo, dependendo dos custos médicos para tratar nos EUA os veteranos feridos, que só aumenta, e aumenta sempre, porque eles ainda têm de pagar pensões a eles. O custo varia hoje entre quatro e seis trilhões de dólares. Quer dizer: o que os EUA ganharam desses de quatro a seis trilhões de dólares, até agora? Até agora, pode-se dizer, só ganharam a Líbia, que não é, exatamente, prioridade para os EUA.

Era parte do plano original dos neoconservadores – começaria com o Iraque, depois Líbano, Síria, especialmente o Irã. Mas, até aqui, só ganharam a Líbia.

Por isso, precisamente, a Síria é tão importante: porque a Síria é passagem para o Irã, e isso ainda é o mesmo que diziam os neoconservadores em 2002, e ainda é parte da doutrina da Dominação de Pleno Espectro. Volta-se sempre aos mesmos temas, porque esses são os temas básicos do que vemos hoje.

Lars Schall: Você acha que a guerra na Líbia deve ser incluída entre as Guerras por Recursos, não só por causa do petróleo e, talvez, também, por causa da moeda-ouro que Gaddafi queria lançar, mas também por causa do projeto Grande Rio Feito pelo Homem [orig.Great Man Made River]?

Pepe Escobar: Sim, sim, eu ia falar exatamente sobre isso. Já é Guerra pela Água. Já é. Há alguns meses, comecei a escrever uma longa matéria sobre as futuras guerras pela água. Mas vi que já não são “futuras guerras”: já estão aí, já são presentes. Se se examina bem, a guerra da Líbia foi a primeira grande guerra pela água. Haverá muitas outras no Oriente Médio, no sul da Turquia, Israel-Palestina. Mas a guerra da Líbia foi a primeira. E é terrível, por causa do ProjetoGreat Man Made River – mais de 20 bilhões de dólares, financiados integralmente pelo estado líbio de Gaddafi, com muita tecnologia canadense.

Lars Schall: E nem um vintém do Fundo Monetário Internacional.

Pepe Escobar: Isso, sobretudo! Nem um vintém do FMI, nem um vintém daqueles esquemas do Banco Mundial, pelos quais você é condenado a pagar juros até morrer, vezes três. Gaddafi construiu o projeto com recursos líbios, importou toda a tecnologia de que precisou, e os dutos lá estão, enterrados no subsolo do deserto do sul, para levar a água, do subsolo do deserto, até as áreas habitadas no litoral da Líbia. É projeto e realização absolutamente fantásticos, porque há reservas gigantescas de água potável no subsolo do sul do deserto líbio, suficiente para mil anos, segundo estimativas. Mil anos de água potável. Imagine!

O projeto não está totalmente completo; mas acho que 80% já está pronto. As três gigantes da água no planeta são empresas francesas. Em minha opinião, aí estão 99% dos motivos pelos quais os franceses envolveram-se na guerra da Líbia: querem privatizar, só para eles, aqueles mil anos de água potável e, depois, revenderão a água. E lá estão Sarkozy e os interesses do complexo industrial-militar francês: queremos mais gás e mais petróleo para a Total. Eles reclamam há muito tempo. Sempre quiseram a parte do leão das exportações de energia da Líbia.

Há uma aliança entre o Qatar, o complexo industrial-militar na França e Sarkozy – que não passa de lacaio; e o Qatar queria sua parte nos negócios e no comércio no norte da África. E havia também os interesses da OTAN e do AFRICOM, que queriam fixar uma cabeça de praia. Havia ali muitos interesses! Gaddafi não teve qualquer chance de vencer, em disputa contra tantos interesses, o eixo do Pentágono, a OTAN, países europeus chaves, França e Inglaterra, as monarquias do Qatar, Emirados Árabes Unidos e a Casa de Saud... que também queriam derrubar Gaddafi, de fato, desde 2002, quando Gaddafi e o rei Abdullah desentenderam, antes da invasão do Iraque.

Gaddafi não teria meios para derrotar todas essas forças, todos esses poderosos interesses que se mobilizaram contra ele. Queriam renegociar contratos, queriam novos contratos de gás e petróleo, só para as empresas europeias e norte-americanas, talvez também algumas empresas turcas, e absolutamente nada para os países BRICS. Gaddafi foi entrevistado por jornalistas alemães dois ou três dias antes da resolução “humanitária” ser aprovada. E disse claramente: “Se vocês nos atacarem, todos os futuros contratos irão para os países BRICS”. Resultado? Três dias depois, a Líbia foi atacada e o resultado está aí. Resultado óbvio.

Lars Schall: Você também citou, também muito importante: o dinar de ouro, de Gaddafi. Porque o dinar de ouro poderia vir a ser uma moeda africana, poderia financiar projetos de desenvolvimento na África Subsaariana. Gaddafi já estava trabalhando nisso, financiando muitos projetos em países subsaarianos. E já deixara para trás, completamente, o sistema de Bretton Woods. Do ponto de vista de Washington, do Banco Internacional de Compensações [Bank of International Settlements], essa gangue toda... Decidiram que nada daquilo era admissível. Gaddafi foi condenado ali. E não esqueçamos que Saddam também já estava vendendo petróleo em euros no Iraque, no final de 2002. Essa foi das principais causas da invasão do Iraque.
Você acha que os “rebeldes” de Benghazi acertaram, ao criar um banco central em harmonia com os bancos centrais ocidentais?


Pepe Escobar: Era o que queriam fazer. Aquele pessoal do Conselho Nacional de Transição, de fato um saco de gatos – oportunistas, ex-funcionários de Gaddafi, islamistas ligados à al-Qaeda da Cirenaica, exilados que viviam no estado de Virginia, nos EUA. Tenham a santa paciência! Aquilo lá é uma trágica, sangrenta piada. E, claro, desde o início houve uma conexão-Qatar: um dos conselheiros de Sheika Moza, esposa do Emir do Qatar, fazia a ligação entre o Qatar e o Conselho Nacional de Transição.

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