segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Coletes Amarelos da França: Um mesmo protesto... que durou oito anos, por Ramin Mazaheri

712/2018, Ramin Mazaheri,  para The Saker Blog

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga



O mais importante que se tem de compreender sobre o movimento dos Coletes Amarelos da França é que a mídia-empresa dominante quer que você o veja como incidente isolado que surge num vácuo, quando o que mais nos interessa é considerar o movimento num continuum.

Quando começaram os Coletes Amarelos não fui idiota a ponto de dizer, “sim, mas... e daí?” 

Afinal, o movimento dos Coletes Amarelos é movimento pequeno, se comparado aos primeiros protestos antiausteridade* [antiarrocho, porque se trata de ARROCHO, não de “austeridade” (NTs)] que surgiram na França no outono de 2010. Nicolas Sarkozy desistiu de aumentar a idade mínima para aposentadoria na França, depois de sete marchas em oito semanas com (números conservadores) 1,5 milhão de pessoas na rua, de cada vez. Numa única semana houve três diferentes marchas com talvez 3 milhões de pessoas! As três marchas dos Coletes Amarelos – e todas em sábados, para facilitar o comparecimento – só chegaram a 300 mil manifestantes, uma vez. Estamos falando, pois, de manifestações dez vezes menores por protesto de 2010, e coisa como 30 vezes menores, se se comparam os dois movimentos totais.

Não surpreendentemente, ainda não li uma palavras dessa “história antiga” em nenhuma cobertura que a mídia de língua inglesa dominante tenha oferecido do caso “Coletes Amarelos”. É sempre “vácuo versus continuum”, em termos de abordagem jornalística.

Resumo a abordagem “continuum” numa frase original sobre o jornalismo (eu, pelo menos, acho que seja original): “Jornalista sem experiência é alguém com um notepad e uma caneta.”

Alguns jornalistas dos ‘jornalões’ que nada sabem sobre 2010 – terão, talvez, pelo menos ideia do que está em discussão com os Coletes Amarelos? Porque não há dúvida de que os Coletes Amarelos já estavam presentes lá, em 2010… apenas foram deixados nos carros (o colete amarelo é item obrigatório em todos os automóveis na França: se você tem um pneu furado ou algum problema de motor na rua ou na estrada, você tem de vestir o colete para ser visto de longe e aumentar a segurança).

Assim sendo, se se crê na mídia-empresa dominante, acabaram-se os protestos dos Coletes Amarelos: o presidente Emmanuel Macron acaba de cancelar os aumentos do diesel. Ninguém mais precisa de protestos, ok?

Errado.

A única razão pela qual AFP, AP, Reuters e todos e todas as agências e redações só fizeram repetir “imposto sobre o diesel, imposto sobre o diesel, imposto sobre o diesel” é a seguinte: estão deliberadamente induzindo a população a ver o “imposto sobre o diesel” em total isolamento, separado de todas as políticas anteriores. Ou são um bando de calouros ou estão deliberadamente induzindo o público a ver o imposto sobre o diesel como fenômeno isolado, ou querem que todos demos por comprovada essa ideia absurda de “imposto sobre o diesel” como causa de todos os males. Minha hipótese é que, no mínimo, é jornalismo de péssima qualidade.

Segunda coisa mais importante a compreender sobre o ARROCHO: os efeitos acumularam-se** 

Li e ouvi ‘análises’ sobre a França em 2018 em tudo semelhantes ao que costumava ler sobre a Grécia em 2012 – porque arrocho é cumulativo.

Não se trata de uma taxa / um imposto / uma medida / uma política / uma reforma: tudo isso aparece agora combinado. E estamos falando sobre oito anos de acumulação.

“Ramin, você escreve demais. Você é pago por palavra? Até nas colunas mais engraçadas, que belo serviço lhe prestaria um editor! Será que pode, por favor, explicar o que significaria tal coisa, em termos de mundo real?!”

Certo. Lá vai:

A inflação na França, pelas minhas contas, aumentou 14% desde 2008: assim sendo, as pessoas já sofreram corte de 14% nos próprios salários, em 10 anos. Isso ajuda a explicar por que o “poder de compra arrochado” foi a preocupação número um na França, ano após ano.

Para começar, os salários na França já estão baixos: 1.700 euros é o salário mínimo médio líquido – de longe o mais baixo dos países anglo-EUA-Alemanha.

Ok. Temos salário péssimo, para começar, o qual ainda perdeu 14% de seu valor na última década. Mas a inflação, claro, não é causada pela política de arrocho [não é ‘austeridade’: é ARROCHO] / gotejamento pirâmide abaixo.

Mas a França vive já sob arrocho, de modo que 14% não é só redução: temos de considerar o impacto sobre os salários, de oito anos de cortes nos serviços sociais, porque um dos golpes chaves do arrocho [chamado “austeridade”] é reduzir o tamanho do governo. Implica dizer que VOCÊ tem de pagar a conta de muitos serviços que antes o governo pagava totalmente ou subsidiava.

Assim sendo digamos, em termos conservadores, porque a coisa depende do tamanho de cada família e das respectivas necessidades, que tudo isso reduziu o seu salário em 5% por ano, durante toda a Era do Arrocho [chamado ‘austeridade’]. Hoje o seu salário vale cerca de 20% a menos do que valia em 2008.

Agora, somemos os novos impostos e taxas impostos pelo arrocho [dito ‘austeridade’], porque arrocho significa que o Estado francês taxa os trabalhadores, não o capital. E hoje mais pesadamente que nunca. Você esperava que a alta finança pagaria pelas apostas que perdeu? Ha-ha, que engraçado – é possível que você também ande dizendo coisas como “a França é socialista”. Por exemplo: há dois anos, aumentaram em 60% o imposto que pago por alugar um apartamento (de modo a evitar que me chova na cabeça e assaltado quando estiver dormindo). Não sei como isso seria legal ou moralmente defensável, e fiquei indignado, mas como conseguiria detê-los? Fui de €1,285 [c. R$5.730***] em 2016, para €2,134 [c. R$9.520] em 2017.

Assim, digamos, também em termos conservadores, que os impostos aumentados impostos pelo ARROCHO tenham tomado apenas 5% de seu salário ao longo dos últimos dez anos: seu salário é hoje 25% menor em comparação com 2008.

Claro que ver sumir 25% de seus salários em 10 anos não seria problema SE seus salários tivessem recebido acréscimos de 25%.

Em 2008 o governo argumentava que o salário médio era de €1,580 [c. R$ 7.044] mensais, para trabalhador de tempo integral. Em 2015, e o governo trabalha hoje com dados desse ano (estão tão atrasados, provavelmente porque ARROCHO significa demitir/não substituir funcionários públicos [claro que isso não é ‘austeridade’ (NTs)], o salário médio era €1,692 [c. R$ 7.542]. Tudo isso implica que o salário médio aumentou apenas 7%.

Podemos pois, sempre em termos conservadores, estimar que o cidadão médio perdeu 18% do próprio salário em termos reais desde 2008, tudo porque sempre se seguiram ideias econômicas de ‘austeridade’ [ARROCHO].

Para quem recebia €1,700 [c. R$7.577] mensais em 2018… perder €306 [c. R$ 1.363] ao mês é um grande, enorme problema. Para banqueiros Rothschild sem filhos, que casaram com herdeiras mais velhas de chocolates / estupradoras em sexo consensual com incapaz [ing. statutory rapists]…€306 a menos equivale, no máximo, a racionar o vinho só hoje à noite.

Mas, calma! É pior que isso! 

O arrocho [chamado ‘austeridade’] não extraiu só essa gorda fatia de seu já magro salário: tornou significativamente muito mais provável que você perca esse emprego tão mal remunerado, considerados os níveis praticamente inamovíveis, praticamente já recordes, de desemprego na França.

Essa pressão existe porque outro dos golpes do ARROCHO [chamado ‘austeridade’ é a redução dos gastos do Estado para construção de infraestrutura capaz de gerar empregos (e/ou recusa do governo em incorrer nesses ‘gastos’), que se somam à insistência do mesmo governo em garantir isenções de taxas e impostos às empresas e empresários, absolutamente sem qualquer condicionalidade (por exemplo, o compromisso com criar empregos).

E o golpe de misericórdia: ARROCHO [chamado ‘austeridade’] significa condições degradadas de segurança no emprego, tornando mais fáceis as demissões e afrouxando regras de supervisão – como ‘soluções’ para estimular os empregadores a empregar mais... – de tal modo que os seus empregos mal remunerados tornam-se ainda mais insuportáveis.

E quem teria chegado à cena imune a essas pressões e assim, só deixando rolar a vida? Ele, o velho bom Emmanuel Mackie Macron. Ora, quando o tubarão crava os dentes, babe, e aquela gosma vermelha começa a escorrer – grande Mackie arranja-lhe luvas, e ninguém jamais vê nem sombra de vermelho. Nem uma gota de suor suado para fazer política, tampouco: o homem controla seu partido político, novo em folha, que tem maioria absoluta no Parlamento. A França é o laboratoriozinho onde Macron pode brincar de arrocho [chamado ‘austeridade’]; e ele não dá nenhuma importância à opinião pública nem teria por que dar.

Assim, os “termos de mundo real” na França são: grandes cortes nos salários, combinados com insegurança no emprego, combinados com um cientista maluco neoliberal que não acredita que tenha sido eleito para refletir o desejo do povo, mas, sim, para governar como ele próprio tecnocraticamente ache melhor.

Já estão ouvindo a mídia-empresa dominante aos berros, para não deixar que me escutem: “Problema é a taxa do diesel, só a taxa do diesel, e eu já disse mil vezes, cara!” 

Sejamos jornalistas de verdade, façamos as contas e ofereçamos o contexto, e recontemos a história, desde o começo

Querem ver como desmoralizo as contas de Macron para a taxa do diesel, cuidadosamente colocada no cabeçalho de qualquer matéria da mídia-empresa dominante?

Nos anos 1980s, a indústria automobilística francesa fez uma aposta errada no diesel. Resultado: espantosos 80% dos carros franceses de passageiros são movidos a diesel. Já viram por que a taxa do diesel é tão amplamente impopular, não é?

O diesel é mais sujo que a gasolina normal, mas sempre foi mais barato – até que entrou em cena o bom velho Mackie Macron. A conversa de Macron de “essa taxa é indispensável para pagar por uma necessária transição ecológica” é pura asneira: em vez de taxar acionistas, corporações e donos de revendedoras por todos esses terem apostado tão erradamente (vale dizer, em vez de taxar os que lucraram desde o começo) Macron, capitalistamente, taxa o trabalho (trabalhadores, famílias). Claro que há miríade de outros modos de fazer a necessária transição carro-ecológica, que não seja taxar o cidadão médio... mas não no capitalismo.

Pessoas acham que a França seria “socialista”, porque os franceses têm ampla rede de seguridade social, mas mesmo assim ainda é país capitalista, porque a França taxa o trabalho, não o 1%, para pagar pela rede nacional de seguridade. Essa é a razão pela qual o salário médio é tão mais baixo na França, se comparado ao de outras nações ocidentais. A taxa do diesel não é o único exemplo disso – TODAS as taxas franceses são a mesma coisa. É tão ruim que, em 2018, todos os salários do trabalhador francês médio, de 1º de janeiro até 27 de julho iam direto para o coletor de impostos (para quem ainda queira termos de mundo real. (No Irã, país forte e diretamente inspirado pelo socialismo, 50% da população paga zero de impostos e taxas, incluídos todos os agricultores – o dinheiro vem da renda do petróleo (que socialistamente é propriedade estatal) e dos empresários e comerciantes.

Até aí, algum contexto para a mais recente medida de arrocho [chamado ‘austeridade’], a taxa do diesel – que não é diferente de resgatar um banqueiro, porque Macron quis, capitalistamente, que mais uma vez o francês médio pagasse pelos fracassos e erros da alta finança/autodefinidos tecnocratas/patronato rico.

Mas e quanto às muitas medidas de arrocho [chamado ‘austeridade’] que precederam a taxa do diesel? É uma lista de lavanderia, das bem longas e malcheirosas, mas trago-lhes a versão breve, porque acho que é importante:

– Os primeiros cortes de arrocho [chamado ‘austeridade’] aconteceram ao longo de 2011, com 2012 aparecendo como o ano do primeiro orçamento francês oficialmente de arrocho [dito ‘de austeridade’]. Motivo: a “fada da confiança” [ing. “the confidence fairy”] e o grau AAA da França como mercado seguro para investir. E o povo? Que interesse teria nisso? E Sarkozy foi o primeiro presidente francês que não conseguiu reeleger-se, em 30 anos.

Lembro quando François “O Idiota Perfeito” Hollande chegou em 2012. Era um ex-gordo, esperto, jovial, (autodeclarado) sujeito comum do interior da França. Esse, com certeza compreenderia o desejo popular e faria o que prometia: romper com a linha do Partido do Arrocho [dito ‘austeridade’] imposta por Bruxelas, depois de campanha construída em torno de uma promessa de renegociar o Pacto de Estabilidade e Crescimento (orwelliano) da União Europeia. Eu realmente não saberia mostrar aqui o quanto havia de altíssimo otimismo na França em maio de 2012 – os malditos Sarkozyitas eram traidores; afinal a França realmente lideraria um Bloco Latino – La Résistance  contra os arrogantes alemães, holandeses e banqueiros usurários do norte.

Em vez disso, Hollande quebrou pelo meio o Partido Socialista.

Voltou atrás no quesito pôr fim ao arrocho [dito ‘austeridade’] dia 6/11/2012, quando anunciou mais uma rodada de... arrocho, a qual trazia basicamente todas as medidas neoliberais economicamente regressivas propostas por Sarkozy na campanha presidencial. Espécie de Obama virando ‘Dábliu’ Bush à la française. Dia seguinte, Hollande anunciou a aprovação de um projeto de lei para legalizar o casamento gay e a adoção por casais gays. Engraçado, mas jamais encontrei essa correlação em veículos da mídia-empresa dominante, nunca e, isso, no que pese ser movimento simplesmente atroz de manipulação política e societal da agenda dita ‘jornalística’. Só esse ‘movimento’ bastou para afastar muitos franceses para bem longe da política, por anos.

Os Coletes Amarelos foram então escondidos sob marchas gigantescas contra direitos para gays, quando o país precisava de marchas contra o arrocho [dito ‘austeridade’]. Mas os coletes não saíram da embalagem, dentro dos carros.

Quantas horas temos para discutir protestos incrivelmente repressivos contra o governo durante a era Hollande? E depois de o Estado de Emergência ter sido imposto? Que tal aquele “Há direito à livre manifestação do pensamento na França, exceto pró-palestinos, cujas marchas nós proibimos?” Que tal os meses de protestos, em 2014, liderados pelos ferroviários – atentamente abasteci meu carro com gasolina (carro tão incrível que consegui comprá-lo, inteirinho, com moedas de €1 e €2, RISOS) para contribuir para racionamentos de combustível, que estavam apenas começaram na atual, muito mais frágil interação de bloqueios de postos de combustível? Que tal o Código do Trabalho de reformas de 2016, quando a guerra já era total contra Hollande?

Nunca soube de presidente ocidental no cargo que fosse tão impopular a ponto de não poder sequer concorrer à reeleição. Quem souber de algum caso, mande-me a notícia e responda essa questão crucial, porque até agora Hollande é o alvo de todos os dardos dessa piada, em todas as paredes.

Mas Hollande sem dúvida revidou – contra os manifestantes, quero dizer. Não sei o que fazem as ONGs, que não compilaram esse dado, mas, depois de gastar meus miolos e consultar outros jornalistas, eu diria que, no mínimo, foram presos de 15 mil a 20 mil cidadãos em manifestações durante a era Hollande, com 20 mil a 30 mil feridos (e, sim, incontáveis atacados com gás e cassetetes dos policiais nas ruas). Ah! 4 mil manifestantes foram presos, indiciados e processados pelo governo Hollande, só nos protestos de 2016 – e quantos mais foram detidos, mas não indiciados nem julgados? E quantos mais teriam sido presos, se mais de 600 manifestações não tivessem sido banidas da França “amante da liberté” durante os dois anos de Estado de Emergência, com incontáveis outras estranguladas no berço? O estupro de um jovem negro por vários policiais, que usaram os cassetetes, em 2017, não está diretamente conectado a qualquer austeridade, mas é prova da repressão mais ensandecida praticada por forças do Estado: a manchete que escrevi então resume a era Hollande no que tenha a ver com “o amor da França pela liberdade de reunião”: Cop violence at Paris demo against cop violence. [Violência da polícia em manifestação em Paris contra a violência da polícia].

E quantas horas vocês têm para discutir os protestos antigoverno, enfrentados com repressão violenta, durante os 18 meses de Macron? A reforma que vem com a parte dois do Código do Trabalho, a reforma dos serviços ferroviários, a reforma da educação, a reforma dos hospitais, a normalização da reforma do Estado de Emergência – tudo isso foi enfrentado por oposição direta majoritária feita pelo Povo, atacada pela mesma violência estatal.

Assim, quando 400 pessoas foram presas e mais de 130 manifestantes antigoverno foram feridos nos protestos junto ao Arco do Triunfo semana passada – absolutamente não se pode pretender que seja algo seriamente diferente de outros protestos violentos na França, ao longo dos últimos oito anos!

Admito que nunca antes havia visto, jamais, o Arco do Triunfo coberto de graffiti, mas é a única novidade – a violência é totalmente padrão na vida política da França e quem diga coisa diferente é ignorante ou é mentiroso.

Ou são hipócritas, porque violência contra cidadãos que protestem é aparentemente normal e esperada... em países ocidentais. Desde 2011 digo e repito na PressTV: “Se acontecesse no Irã, em Cuba, China ou Venezuela o que acontece em Paris, o ‘ocidente’ viveria a exigir intervenção humanitária para salvar o povo oprimido por tamanha agressão antidemocrática.”

Verdade é que chegou um dia em que parei de repetir sempre a mesma coisa – cansei, é normal. Ou, vai-se ver, a hipocrisia ocidental apenas virou ‘normal’, perfeitamente aceitável. Jornalismo péssimo, de minha parte.

Acho que também eu parei de me sentir incomodado com tanta gente ferida em manifestações, e pela mesma razão – a coisa virou mundana, natural, esperada. Mas jornalismo péssimo, o meu – além de péssima solidariedade humana e, eu, péssimo cidadão.

Mas, pelo menos, não fiz o que toda a mídia-empresa que publica em inglês simplesmente ama fazer: jamais culpei os manifestantes franceses pela violência. Santo Deus! Anglófonos e o seu tal de “Mantenha a calma e persevere”, o culto da lei e da ordem a qualquer preço... Que bando de ovelhas! Minha avaliação? Gente assim jamais se revolta, não importa o mal que lhe faça o Estado.

Claro que, diferente desses comentaristas sem noção, estive presente em incontáveis protestos violentos e engoli litros de gás lacrimogênio. Fato um: se os policiais não conseguem deter a violência é erro dos policiais, porque essa é a razão de existir polícia. Fato dois: se o governo provoca protestos violentos, é erro do governo, porque é serviço do governo promover políticas que não empurrem os cidadãos à rebelião. Fato três: a polícia francesa antitumultos armada até os dentes é inerentemente provocadora contra os cada vez mais pobres cidadãos franceses que vêm protestar contra o governo e são intimidados pela polícia, de modo que o próprio plano da polícia está condenado a fracassar... e propositalmente – fala-se da violência, não das razões nem do passado. Mais “política num vácuo, não num continuum”.

Futuro dos Coletes Amarelos – sair em férias. Aposto 

Claro que os Coletes Amarelos logo entrarão é férias – já estamos em 6 de dezembro. Os últimos dez anos da história francesa SEMPRE mostram que os manifestantes – mais ou menos quente, azul ou arrogante – preferem fazer férias a manter o momentum político. Nada conseguirá impedir que aconteçam as tradicionais semanas de férias em dezembro-janeiro e agosto!

Por isso mesmo, claro, sempre perdem. 

Assim sendo, eis um teste realmente fácil para descobrir se os Coletes Amarelos são diferentes: se os franceses estiverem ainda empenhados em protesto sério nos poucos dias antes e depois do Natal e do Dia de Ano Novo... então, sim, estaremos numa revolução da ordem política.

Mas eu, que assisto fenômenos semelhantes ano após ano, ano após ano, prevejo que os protestos pararão depois de 16 de dezembro, e recomeçarão em janeiro, mas necessariamente enfraquecido. Fato é que os franceses realmente facilitam a vida dos políticos que os franceses realmente desprezam.

Mas pode acontecer de, ao voltar, o movimento não estar assim tão enfraquecido…

Além do Arco do Triunfo grafitado, tenho visto coisas que nunca havia visto antes – como um motociclista em horário de serviço, usando um Colete Amarelo em que se lia “Greve Geral – Parar tudo”. Não há quem não saiba que greve geral – único tipo de protesto que realmente fere o bolso do 1% – é o único modo de alcançar mudança política real no planeta, e a qualquer hora (além, claro, de revolução e rebelião declaradas).

Quem sabe se em 2018 o Papai Noel deixará de ser prioridade?

Gente fora da França pergunta se haverá revolução. Aí vai a resposta que sempre respondo: Não. 

Enorme percentagem de franceses continuam tão enlouquecidamente comprometidos com o próprio sistema antiquado, do século 19, do qual muito se orgulham, como os norte-americanos. Esse é o real legado do imperialismo – a arrogância completamente injustificável, que protege o sistema ‘ocidental’. Iranianos usamos como termos intercambiáveis as palavras “arrogância” e “imperialismo”, por razões muito lógicas e óbvias.

Mas, repito: depois de oito anos de arrocho [dito ‘austeridade’], é possível que já não sejam tão arrogantes.

A extrema esquerda (verdadeira esquerda) e a extrema direita começam a falar, como nunca antes aconteceu, de novas eleições, referendos, coisas até bastante radicais. Não esqueçamos que no primeiro turno das eleições presidenciais de 2017 19,5% do eleitorado votou em Jean-Luc Mélenchon (apenas 2 pontos percentuais menos votos que Marine Le Pen). E a plataforma do Partido France Insoumise [França Insubmissa] de Mélenchon incluía abolir a 5ª República. Implica dizer que, sim, na França há número dispersa de jingoístas arrogantes cujos pais cresceram na Argélia Francesa, mas, sim, com certeza há parte considerável da população que sabe que as coisas são fundamentalmente erradas na estrutura influenciada pela Democracia Liberal-e-não-Socialista da França.

E o problema é definitivamente estrutural – não é questão só de preço de diesel.

Qualquer “Revolução de Coletes Amarelos” teria de incluir uma drástica reformulação das regras da União Europeia e especialmente da Eurozona, ou, se não, um Frexit. Essas instituições foram construídas no auge do desmonte da URSS, e assim num momento em que o socialismo chegava ao mínimo absoluto. Nos dois casos a certidão de nascimento é significativa, porque as duas instituições são projetadas com escotilhas de segurança pelas quais o 1% sempre consiga escapar de qualquer coisa que se aproxime de alguma verdadeira democracia popular. A estrutura dessas duas instituições é realmente o triunfo do “Norte-americanismo” e do pensamento sociopolítico neoliberal de autocanibalização. Na verdade, os EUA regem um sistema inspirado por ingleses, franceses e a Europa, mas a Europa Continental rege um sistema inspirado pelos EUA. Irônico. E muito infeliz.

Se o movimento dos Coletes Amarelos provar-se diferente, terá sido em grande medida porque não têm líderes nem porta-vozes. O primeiro-ministro admitiu que não tem como se reunir com Coletes Amarelos, porque os que o governo aceite receber continuam a ser ameaçados de morte por outros Coletes Amarelos.

A razão pela qual isso é tão importante é clara: o governo não consegue nem cooptar nem subornar e desmontar o movimento.

Tomem por exemplo os sindicatos franceses – são nove grandes sindicatos. Já são oito anos, de 2010 a 2018, que esses oito sindicatos não se manifestam juntos, nem uma vez, por mais que todos os membros dos oito sindicatos odeiem o arrocho [dito ‘austeridade’]. Obviamente, absolutamente não estão unidos. 

O que vi na França, ano após ano é o seguinte: há greves antiarrocho [dito antiausteridade] e as esperanças são altas... mas então o governo suborna e desqualifica um ou dois dos sindicatos com concessões com alvo determinado. Esses sindicatos dizem “Satisfizemos nossos membros; é o nosso dever” e pulam fora. Assim, as greves têm menor impacto sobre o bolso do 1%; e eles hoje já estão escolados. Os que ainda resistem e fazem greves sentem-se traídos e ressentem-se da falta de solidariedade, e a greve colapsa, porque muitos rapidamente voltam ao trabalho. Tudo é mamão com açúcar, coisa fácil de fazer, para os tecnocratas governantes e o 1%, enquanto tudo que o trabalhador médio, cada vez mais empobrecido, pode dizer esse ano é: “Dessa vez será diferente.” É pouco provável que seja.

Tudo isso está muito longe de explicar por que países socialistas como Irã, Cuba e China não mantêm sindicatos independentes: para esses países o Estado É o sindicato.

Podem todos ter certeza de que os Coletes Amarelos dão-se perfeitamente conta do fracasso da filosofia que subjaz ao sindicalismo ocidental, e assim eles tentam evitar que sejam também cooptados ou subornados. As ameaças de morte e a oposição a qualquer liderança ganham agora um contexto: radicalização e demanda por novos métodos acumularam-se, resultado da acumulação do arrocho [dito ‘austeridade’]; não efeito só da presença do anarquismo francês (politicamente super idealista e de trambolhada). 

O movimento dos Coletes Amarelos tampouco tem programa ou lista clara de demandas que possam ser atendidas... o que me parece certíssimo, perfeito, ótimo.

A lista de demandas do movimento teria de ser tão longa e tão variada, que exigiria meses só para montar... porque as demandas do movimento são as demandas combinadas de oito anos de protestos antiarrocho [dito ‘austeridade’].

Quem afinal são os Coletes Amarelos? São todos aqueles trabalhadores, estudantes, aposentados, funcionários de hospitais, etc. que há muito tempo protestam e, de resposta, só ganham fracassos e gás lacrimogênio. Todos têm demandas ignoradas que têm de ser atendidas, não?

Nessas condições, não precisam de programa resumido e claro que cria remédio rápido para tudo, porque o problema da França – tanto quanto o problema da União Europeia e da Zona do Euro – é estrutural, cultural e endêmico.

Será afinal a Revolução Cultural dos Coletes Amarelos, ou apenas mais um protesto antiarrocho [dito ‘austeridade’] fracassado?

Com certeza vão zombar, mas é claro que faz absoluta falta algo como uma Revolução Cultural Chinesa ou Iraniana: vários anos de fechar e derrubar instituições e com discussões políticas amplas, para, ao mesmo tempo repensar amplamente as estruturas societais e para pôr os rebeldes “Guardas Vermelhos/Coletes Amarelos” em posições locais de poder.

Acham que não? Discordam? OK. Respondam então: por quanto tempo pode durar o que está aí, nas ruas? Não falo dos protestos dos Coletes Amarelos – falo de por quanto tempo os cidadãos continuaram a aceitar, sem luta, esse arrocho [dito ‘austeridade’] antidemocrático.

Tudo, sim, é possível – deem-me um número real, por favor: a Eurozona teve uma Década Perdida (fato que a mídia-empresa dominante jamais admite às claras): cidadãos da Eurozona tolerarão “20 anos Perdidos”, como os japoneses toleraram?

Para mim, não. O Japão é uma ilha, étnica e culturalmente homogênea, são proprietários da própria dívida e não podem ser despejados. Duas vantagens das quais a Eurozona não usufrui.

Eis mais uma pergunta para a qual gostaria de resposta objetiva: Por quanto tempo a França pode manter um presidente e respectivo governo aos quais a opinião pública só interesse a cada cinco anos? Mais uma eleição presidencial? Quem sabe, mais três? Admito: sim, que tudo é possível.

Outra vez, minha resposta é não. O Partido Socialista foi esmagado, o principal partido conservador deu-se quase igualmente mal, e o partido de Macron – ao ritmo que anda – não passará de um pontinho nos livros de história política, porque os macronistas são ainda menos populares que Hollande, no mesmo ponto de seu mandato. Assim sendo, que partido governará a França em 2027? Na França, ninguém tem ideia de quem governará o país em 2027, menos ainda em 2022.

Assim, quando digo que faltam pessoas novas em posições de poder local, é pouco; não é que apenas faltem: é absolutamente inevitável que apareçam.

Outra pergunta, também para resposta real: Onde está o partido político ou movimento de base para tangivelmente implementar o desejo dos Coletes Amarelos, tão logo esse desejo seja conhecido? Não é pergunta obtusa. Estou perguntando por qual via política os Coletes Amarelos podem avançar?

As únicas alternativas hoje não esmagadas (ou que em breve não estejam desacreditadas) e que persistem no reino do possível são Le Pen e a extrema esquerda (esquerda real).

Mas não acho que alguma aliança Nazi-Vermelha possa acontecer na França: o ódio pela Frente Nacional é gigante, e Le Pen perdeu gravemente ao fazer papel ridículo no debate contra Macron em 2017, sem conseguir ver que tinha chance real de ser eleita. Esse sentimento super, mega, Uber-intenso contra Le Pen e seu Rassemblement National [Ex-Front National] é a única explicação de por que os franceses optaram por seis amaldiçoados anos de arrocho [dito ‘austeridade’], nas garras de banqueiro Rothschild de 40 anos. E há na França sentimento gigante contra a esquerda: é a França neoimperialista, a França capitalista, a França islamofóbica, etc. Mélenchon chegou tão perto em 2017, teve contra si toda a galeria midiática; e, para muitos, também o seu passado de membro do Partido Socialista até 2008.

Mas opção política real – mas por óbvia – é que os Coletes Amarelos convertam-se em movimento “5 Estrelas” da Itália, porque não têm nenhuma outra via pela qual traduzir o próprio desejo político, quando o declararem (ou se algum dia o declararem, considerado o anarquismo francês).

Mas o movimento 5 Estrelas demorou oito anos para se constituir e chegar ao poder – e os Coletes Amarelos estão ainda no mês #1.

Contudo, como anotei no título dessa coluna, estamos diante do mesmo protesto, já há oito anos, caminhando para nove. Assim sendo, será que a França como um todo já “está lá”? Quem sabe o tempo foi acelerado, também, nessa era digital? É consideração psicológica interessante, mas a Itália não nos permite acalentar esperanças de velocidade 4G na política francesa.

Dados os 90 mil policiais a serem postos nas ruas no domingo 8/12, parece que os Coletes Amarelos caminham para a via do quebra-tudo, no que fazem muito bem. O arrocho [dito ‘austeridade’] fez acumularem-se perdas sobre perdas, desde a Grande Recessão, o que significa que há muito a ser demolido: a saber, ideias feitas recebidas já prontas de que a França seria democrática, que funcionaria bem, até socialista, soberana, etc. E também as ideias do paneuropeísmo (muito amadas pela elite francesa), segundo as quais aquelas novas instituições foram benéficas e bem-sucedidas, única frente a impedir a 3ª Guerra Europeia, etc. Loucuras às pilhas, para serem derrubadas.

Diz-se que é impossível prever revoluções, mas sabemos, sim, o que acontece antes de revoluções bem-sucedidas: anos (quando não décadas) de discussão política incansável, nacional, daquelas que racham famílias para sempre, e envolvimento profundo, combinados com medidas drásticas de autossacrifício. Aconteceu assim na Rússia em 1917 e no Irã em 1979 – e assim essas revoluções podem ser declaradas, mais corretamente, “Celebrações” sem derramamento de sangue.

A França está muito longe de celebrar seja lá o que for, exceto Natal, mas posso afirmar, porque vi, que todos, em todos os locais e horas do dia e da noite, só falam dos Coletes Amarelos. Mas estamos de fato, apenas, ainda, no 6º dia dessa fermentação nacional. 

Valham o que valerem meus 2 centavos, prevejo que teremos férias, sim, de Natal e Ano Novo. Depois, quando os franceses voltarem, os problemas aí estarão, iguais, sempre os mesmos. Talvez soe deprimente e cínico – quem sabe, depois de dez anos aqui, já virei francês? –, mas esses são os fatos e esse é o padrão histórico.

Também é fato que – os Coletes Amarelos mudem ou não mudem algo –, as coisas têm absolutamente de mudar na França e na Eurozona. E hão de mudar, algum dia. Afinal, não sou tão francês: ainda sou otimista!

E é absolutamente garantido que sou Colete Amarelo, eu e todos com quem falei, o que não é pouca coisa... pelo menos por enquanto.*******



[1] Ramin Mazaheri é correspondente-chefe em Paris de Press TV, do Irã, e vive na França desde 2009. Foi repórter em diários norte-americanos e trabalhou no Irã, Cuba, Egito, Tunísia, Coreia do Sul e em todos os locais. Tem trabalhos publicados em jornais, revistas e websites, e em redes de rádio e TV.
* “Austeridade” é traço que define pessoas austeras; austero é o homem ou mulher capaz de produzir e de gastar com racionalidade o que tenha, de modo a poder manter sempre os recursos essenciais mínimos à sobrevivência digna; austero é quem corta despesas não essenciais, PARA PODER MANTER os itens necessários à própria sobrevivência e à sobrevivência dos que lhes sejam caros, em condições dignas. 

Quem corta despesas essenciais para PAGAR JUROS A BANQUEIROS USURÁRIOS, À CUSTA DA SOBREVIVÊNCIA de cidadãos e famílias e de suas moradias não pratica “austeridade”: pratica ARROCHO contra trabalhadores e cidadãos [NTs].
** Evidentemente o que se acumula é o ARROCHO; austeridade é traço abstrato e evidentemente não se acumula (NTs).
*** Todas as conversões consideram o valor do câmbio hoje, 7/12/2018; é informação pouco significativa, mas não temos como converter por valores dos respectivos momentos (NTs).

Um comentário:

Anônimo disse...

Tenho obsevado esse movimento dos tais "jalecos amarelos" com muita desconfiança. A começar pelo fato citado no artigo de que manifestações anteriores muito mais significativas e com uma participação popular muito mais expressiva não tiveram tanta repercussão. O próprio autor diz que os "enjalecados" já estavam presentes nas manifestações maiores de 2010, porém sem os coletes. Pode ser.
Mas tem duas coisas que nenhum dos artigos publicados no blogue até aqui menciona, salvo engano meu, e que me chamam a atenção. Essas últimas e menores manifestações tem duas características muito típicas dos golpes coloridos: a primeira é que começaram como um protesto contra o aumento do combustível e rapidamente "evoluiram" para uma conclamação em favor da derrubada do governo. Isso praticamente aconteceu em todos os golpes coloridos patrocinadas pelos eua, onde uma manifestação começa por um motivo quase insignificante - vide o caso 20 centavos no brasil - e em seguida transforma-se em rebelião aberta.
Longe de mim defender um piolho dos rotichildes como é o caso desse micron. Mas porque derrubá-lo com um golpe colorido, se ele tem sido um servo fiel do grande capital na frança? Ai entramos na segunda questão que é ou foi a defesa que o micron, justamente ele, a pouco tempo fez da criação de uma aliança militar exclusivamente européia, o que feriria de morte a OTAN, o bastião que os eua encravaram na europa para fustigar a Rússia e se possível fazer uma guerra contra ela circunscrevendo o conflito ao território europeu. Quem lê os artigos frequentemente publicados aqui sabe que os celerados neocons acalentam o sonho de que podem envolver a Rússia num conflito em grande escala e ficar apreciando de longe o circo pegar fogo, sem tomar uma retaliação devastadora.
Não estaria ai o motivo dessas manifestações esteriotipadas nos "jalecos amarelos" e aparentemente "espontâneas" e sem vinculação partidária definida (o que também poderia ser mais uma das característica dos golpes colorido), ou seja dar uma um recadinho ao pinpão afoito para lembrá-lo de que não passa só de um oficebói dos rotichildes?
Mas tomara que eu esteja bem enganado e isso seja realmente o embrião de uma convulsão social pra valer que abale em profundidade toda essa estrutura de poder a serviço do capital parasita. Só o tempo dirá.