23/4/2018, Seyed Mohammad Marandi,* Middle East Eye
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
"A carga do homem branco"[1] – ou talvez, melhor dizendo, "o homem branco que nós carregamos" – foi, provavelmente, o jugo mais pesado de toda a história humana. Perguntado sobre o que pensava sobre a civilização ocidental, consta que Mahatma Gandhi teria respondido que "teria sido boa ideia".
Quando intelectuais ocidentais põem-se a criticar as políticas globais de seus próprios governos, a culpa é sempre descarregada sobre partidos políticos, líderes incapazes, estratégias falhadas, falta de financiamento, de armas ou de "vontade política". Mas avancemos um pouco mais, para considerar se o problema não é mais fundo, mais fundamental – ou se a construção "ocidental" do próprio conhecimento não é, ela mesma, eivada de inadequações as mais lastimáveis.
Poucos intelectuais hoje dominantes são preparados para considerar apenas, que fosse, a possibilidade de que as estruturas sociais ocidentais e a epistemologia de valores que lhes é subjacente sejam tão irremediavelmente falhadas, que convertem os regimes políticos ocidentais numa carga terrível a pesar sobre toda a existência humana.
A hegemonia do ocidente
A ideia de que o ocidente seja gravemente culpável, moral e ideologicamente, é para muitos difícil até de compreender, imaginem se é ideia que o ocidente consiga abraçar. Não é tarefa fácil perguntar se essa geografia imaginada chamada "ocidente" seria realmente excepcional, ou se o mundo dito "livre" ou "civilizado" seria realmente civilizado, principalmente quando a terceira feiticeira de Shakespeare – orientais orientalizados, sahibs [senhores, patrões] de pele escura,[2] os "tocados pelo Ocidente" e os "negros de casa"[3] – reage com fúria ainda maior que a fúria de suas horrendas irmãs, o neoconservador e o neoliberal humanitário intervencionista.
É ideia generalizada que, apesar das falhas e fracassos, a civilização ocidental defenderia ideias, ideais e padrões que seriam componentes indispensáveis de qualquer bússola moral legítima. E assim, nessa narrativa, a hegemonia e a hierarquia ocidentais acabam moralizadas e legitimadas.
Raríssimos intelectuais hegemônicos são preparados sequer para analisar a ideia de que talvez as estruturas sociais ocidentais e a epistemologia de valores que lhes subjaz sejam irremediavelmente imprestáveis.
Apoiando sempre os atores mais brutais e genocidas, "choque e pavor", ocupação, tortura, subjugação, aquecimento global, a sexualização e a conversão da mulher em mercadoria, a injustiça social crescente, Barack Obama diz que essas coisas não são "quem nós somos" – quando isso é precisamente o que são.
A dissonância na cognição é flagrante – valores e ações deixam-se ver completamente divorciados, e desculpas magras fazem sumir o fato de que jamais algum valor elevado ou sublime dirigiu o motor de destruição, o único que anima a "civilização" ocidental.
Anticolonial, antiapartheid
Desde o primeiro dia, a República Islâmica do Irã aplica seu peso como apoio a dois objetivos morais e políticos chaves: aos movimentos de resistência contra o colonialismo e aos movimentos de resistência antiapartheid na África do Sul e na Palestina.
Fato hoje apagado magicamente dos discursos públicos no ocidente, o Congresso Nacional Africano e Nelson Mandela, ao seu tempo, foram declarados terroristas por líderes ocidentais e assim classificados pela lei dos EUA.
Liberais e esquerdistas ansiosos e gaguejantes tolerados pelo establishment – como seus contrapartes contemporâneos hipócritas e oportunistas – jamais "aprovariam" a violência e a "brutalidade" da resistência, e esses, abrigados em suas torres de marfim prodigamente pagas, lá de longe, daquele ponto de vista "moral" privilegiado e seguro, declararam todos os lados igualmente corruptos.
Foram então, e continuam até hoje, acolhidos pelo establishment, frequentemente defensores premiadíssimos de "direitos humanos". Mas na verdade, como autoelogiadores de "mãos limpas", regularmente impediram que se constituísse qualquer resistência efetiva contra um império poderoso. Leões de chácara da probidade, digamos assim.
Contudo, graças à resistência e aos "apologistas" da resistência, o apartheid institucional foi derrubado na África do Sul, e o campo dessa batalha moral vital mudou-se, inteiro, para a Palestina.
Apesar de anos de propaganda ocidental, desinformação jornalística e repetidas ameaças dos israelenses, o Irã jamais ameaçou iniciar confronto militar com Israel.
Por causa dessa independência, e do apoio aos que resistem contra a ocupação na Palestina e no Líbano – chamados de "antissemitismo" e "terrorismo" na metrópole que controla as narrativas –, os iranianos comuns viveram décadas sob interferência ocidental, demonização, sanções, guerra, ataques químicos massivos repetidos organizados e pagos pelo ocidente, e ataques e derrubada de aviões civis, pela Marinha dos EUA e pela Força Aérea de Saddam Hussein.
Think tanks, a mídia-empresa e seus veículos controlados pelo estado no ocidente podem caricaturar e demonizar sem parar o Irã e a República Islâmica. Os iranianos sabem ver, em vasta maioria, que sua independência, sua dignidade e sua segurança dependem de impedir que as impiedosas potências hegemônicas consigam ocupar os postos de controle em nossa região.
Apologistas do império
O apoio a extremistas no Afeganistão, depois invadir o Afeganistão, o apoio a Saddam, depois destruir o Iraque e adiante também a Líbia, matar de fome o Iêmen e Gaza, esmagar o Bahrain, repetir na Síria a mesma política dos anos 1980s contra a Nicarágua, apenas inventando extremismo religioso, onde antes inventaram os Contras, e o golpe na Turquia, todos esses passos são conectados à meta de chegar aos pontos de mando nessa parte do mundo.
Bem depois de organizações estrangeiras de inteligência terem facilitado o surgimento de dezenas de milhares de combatentes estrangeiros na Síria, forças do Hezbollah (2013) e iranianas (2015) entraram na Síria em números significativos, a pedido do governo sírio.
Ignorando os apologistas do Império e também os liberais que se autopromovem e autoelogiam-se, os iranianos compreenderam que o objetivo dos EUA na Síria não é "liberdade e democracia", mas minar a Síria para ferir o Irã e assim ajudar o regime israelense.
Quando o diretor da inteligência militar israelense declara que seu país prefere o Estado Islâmico ao presidente sírio Bashar al-Assad; quando o ex-diretor do Mossad admite tratar militantes da Frente Al-Nusra feridos, porque seu governo não é "alvo específico da Al Qaeda"; e quando o ex-ministro da Defesa de Israel explica como os combatentes do Estado Islâmico que ocupam a fronteira com a Síria tiveram a gentileza de "pedir desculpas" aos israelenses... é claro que Israel escolheu entre a bandeira síria e a bandeira do terror.
Desinformação jornalística
Semelhante ao ataque ilegal dos mísseis de EUA, Reino Unido e França contra a Síria, também o ataque israelense contra a base aérea T4 da Síria e o assassinato de sete soldados iranianos estão conectados à mesma política de fortalecer os extremistas. Os iranianos estavam legalmente onde estavam, para ajudar o Exército Árabe Sírio a liberar os últimos bolsões onde ainda havia terroristas.
Apesar de anos de propaganda ocidental, desinformação jornalística e repetidas ameaças israelenses, o Irã jamais ameaçou iniciar conflito militar com Israel. Mas agora o primeiro-ministro israelense, cercado, desgastado e autoindulgente Benjamin Netanyahu errou a dose e cometeu erro grave.
Os EUA acusam sem apresentar motivo ou qualquer prova, atacam antes de qualquer inspeção por especialistas, destroem sem qualquer explicaçãotodas as provas de que jamais houve naquele local qualquer arma química. Empurrada pelo excepcionalismo ocidental, a lei da selva avança, sem deixar esperanças para qualquer justiça institucional [isso também é a caaaaaaaaaaaara do golpe no Brasil, hoje (NTs)].
Qualquer adiamento ou contenção que evite resposta à agressão cometida por Israel só encorajaria mais crimes e mais violações contra o Irã e os iranianos. O Irã retaliará como ação de autodefesa.
Orientalismo à parte, Voltaire sabia e disse corretamente: "Deus não ajuda grandes batalhões. Deus ajuda quem não perde tiro."[4] *******
* Said Mohammad Marandi é professor de Literatura Inglesa e Orientalismo na Universidade de Teerã.
[1] Orig. "The White Man's Burden", de Rudyard Kipling é título de um dos poemas mais infames da história literária universal. Leva o subtítulo explicativo de "The United States and the Philippine Islands" [Os EUA e as Ilhas Filipinas]. É poema a favor do imperialismo norte-americano. A carga que o homem branco carregaria seria o 'destino' de mandar seus melhores homens para longe, e os próprios filhos para o exílio, para servir sob ordens de cativos. Esses cativos seriam povos "recém-caçados", selvagens, furiosos, ao mesmo tempo infantilizados e demoníacos [NTs, com informações de GradeSaver].
[2] Orig. brown sahibs É termo depreciativo usado em referência a nativos do sul da Ásia que imitam o estilo de vida ocidental – quase sempre britânico. Aplica-se também aos muito fortemente influenciados pela cultura e pelo pensamento ocidental, quase sempre britânico [NTs, com informações de Wikipedia].
[3] Orig. house negroes [literalmente 'negro de casa', 'escravo de casa', em oposição ao 'negro da lavoura', 'escravo do campo']. Eis o que Malcolm X fala deles: "Assim, sempre que esse negro de casa se autoidentificava, ele se identificava como o patrão se autoidentificava. Quando o dono do escravo dizia "Temos boa comida", o negro de casa dizia "Sim, temos muita comida boa". "Nós" temos muita comida boa. Quando o dono do escravo dizia "temos ótima casa para morar", o negro de casa dizia "Sim, nós temos uma casa ótima." Quando o dono do escravo ficava doente, o negro de casa identificava-se tanto com ele, que perguntava "O que foi, senhor? Estamos doentes?" A dor do dono do escravo era a dor do escravo. E doía mais no escravo que o dono estivesse doente, do que se o próprio escravo estivesse doente. Quando a casa pegasse fogo, aquele tipo de negro lutaria mais para salvar a casa do dono dele, do que o dono da casa". Discurso na Universidade Estadual de Michigan, East Lansing, 23/1/1963. [NTs].
[4] Orig. Dieu n'est pas pour les gros bataillons, mais pour ceux qui tirent le mieux (Correspondance, à M. Le Riche, 6/2/1770). The Voltaire Foundation, Oxford [NTs].
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