Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Precisamos de Berlin. Reações a esse ponto são excelente barômetro, então repetirei sem parar. A tática do Kremlin para a Europa é simples e clara para qualquer um que conheça a história do século 20. Testemunhamos hoje a terceira (!) tentativa de usar a Europa continental como aríete contra a Rússia, e Washington mais uma vez espera completar uma 'mágica' simples, cuja essência é a seguinte: os russos devem morrer, e os EUA – que se deixarão ficar, bem-sucedidos, sentados à margem, do outro lado do oceano – devem extrair o máximo ganho possível, de um suposto conflito intraeuropeu e fazer muitos filmes sobre como derrotar o mundo inteiro.
Todos a quem esse esquema pareça interessante podem ser descartados, ou como idiotas ou porque estão na lista dos mercenários do Departamento de Estado. Felizmente, o esquema não interessa a ninguém no Kremlin. A consistente política que a liderança russa constrói, apesar de não agradar aos "esquizo-patriotas", está gerando resultados visíveis, os quais parte significativa da audiência prefere simplesmente não ver, porque não se enquadra na imagem que pintaram do mundo ou porque trata de questões que, aos olhos deles, são esotéricas.
Os resultados de trabalhar com a facção independente, da elite europeia, que não gosta da perspectiva de uma Europa reduzida a colônia e manipulada pelos norte-americanos para fazer dela um aríete contra a Rússia, manifestam-se, em primeiro lugar, no plano mais importante: o econômico. Vale a pena lembrar que o principal conflito geopolítico hoje não é a Síria e, sobretudo, não é a Ucrânia, mas, sim, o conflito em torno do acordo do Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP) [Acordo da Parceria Trans-Atlântico para Comércio e Investimento], que os EUA estão impondo à União Europeia. Essa 'parceria' inclui literalmente milhares de elementos relacionados às interações econômicas, técnicas e até jurídicas entre EUA e União Europeia.
Esse TTIP é apresentado aos públicos como uma espécie de versão inflada de uma zona de livre comércio, mas, na verdade, um dos elementos chaves do 'acordo' que está sendo proposto implica liquidação total da soberania europeia. Sob o pretexto de defender os interesses de investidores corporativos norte-americanos, o TTIP sugere que tribunais privados de arbitragem tenham capacidade para bloquear leis aprovadas por parlamentos europeus, no caso de alguém entender que aquelas leis ameacem interesses de companhias norte-americanas.
E aqueles interesses são sempre interpretados muito amplamente. De fato, se o TTIP for assinado na forma que tem hoje, a União Europeia passará a ser colônia dos EUA, com menos direitos que a Costa Rica. Claro, os norte-americanos estão usando todos os meios para influenciar, com o objetivo de conseguir que o tratado seja assinado o quanto antes.
Os fãs da teoria de que a Europa não passa mesmo de colônia sem espinha dorsal da União Europeia sofreram uma ruptura no seu padrão de pensamento, porque a UE, representada por Alemanha e França, tem conseguido escapar de assinar o tratado já há dois anos; todas as tentativas para empurrar o documento diretamente para o Parlamento Europeu têm dado em nada; e o mesmo tem acontecido nas negociações diretas entre EUA e UE.
Já por dois anos, com notável regularidade, aqueles especialistas e 'formadores de opinião' nas mídias sociais que creem na onipotência dos EUA, repetem que o TTIP seria inevitável e que, no instante em que Obama exigir que seja assinado ele será assinado, e a Europa dará em nada. Para esses, ainda ter esperanças na parte independente e influente da elite europeia seria acalentar sonhos irrealistas.
Mas não é que o TTIP apenas ainda não foi assinado: o acordo está moribundo, especialmente desde que Washington reconheceu publicamente que havia uma data limite: o acordo teria de ser assinado antes do final do mandato de Obama, ou a assinatura passaria a ser adiada indefinidamente, por razões políticas objetivas.
A sorte dos norte-americanos começou a virar imediatamente depois que o Parlamento Europeu adotou um conjunto de demandas relacionadas ao TTIP; dentre essas demandas estão que se eliminem os tribunais supranacionais e que as companhias norte-americanas sejam subordinadas à lei e ao sistema judicial europeus. Mas agora a parte independente da elite europeia decidiu impor mais uma exigência aos EUA.
O primeiro-ministro Manuel Valls disse que a conclusão do acordo TTIP entre UE e EUA é impossível, se a proposta de acordo não levar em consideração interesses da UE. Disse ele:
"Daqui para a frente, nenhum acordo de livre comércio deve ser assinado, se não atender interesses da UE. A Europa tem de ser firme. A França estará vigilante. E digo-lhes francamente que não acho que algum dia venha a existir esse acordo de comércio trans-Atlântico. O texto do documento caminha na direção errada."
A mídia-empresa nos EUA está dizendo, com lástima, que a saída da Grã-Bretanha da UE reduz ainda mais as chances de o acordo vir a ser assinado, porque Londres era uma das mais empenhadas apoiadoras do TTIP dentro da própria UE.
É significativo que, nesse contexto, Angela Merkel tenha decidido reintroduzir na infosfera a ideia de um espaço econômico comum "de Vladivostok a Lisboa". Apesar do ceticismo dos comentaristas russos, é gesto que se tem de considerar com muita seriedade, como um passo, pelo menos, na bem conhecida estratégia política que consiste em ir habituando gradualmente a opinião pública e, também, parte da elite, a alguns cenários futuros que ainda parecem dos mais inacreditáveis.
As resoluções de parlamentos regionais italianos que reconheceram a Crimeia (e interessante que essas resoluções foram adotadas em regiões nas quais se concentram a influência política e muitos quadros da velha aristocracia europeia e banqueiros venezianos-lombardos); as declarações do ministro Steinmeier de Relações Exteriores da Alemanha, que protestou contra manobras da OTAN nos Estados do Báltico; e a visita do presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker ao Fórum Econômico Internacional de S.Petersburgo, apesar dos protestos do Departamento de Estado dos EUA, todos esses eventos movimentam-se nessa nova direção.
O trabalho conjunto dos presidentes de Rússia e China, que tentam oferecer aos europeus uma imagem de futuro alternativo, que não implique subordinação universal aos EUA, também se encaixam nesse contexto. Essa tentativa de 'separar' a Europa dos EUA, ou, mais precisamente, de tentar ajudar a parte independente da elite econômica europeia a separar-se dos EUA, é projeto conjunto de russos e chineses, que atende a necessidades dos dois lados, de Moscou e de Pequim.
Não se deve esquecer que o principal projeto geopolítico da China, o Cinturão Econômico da Rota da Seda, é projeto que nada significa se a Europa não for incorporada a ele; mas as regras do jogo no continente europeu ainda são impostas pelos EUA.
É fácil compreender porque a Rússia precisa desse desenvolvimento. Por um lado, o Kremlin pode atuar como avalista da segurança europeia; por outro lado, pode atuar como administrador da "ponte logística" entre Europa e China, ponte que não pode ser interrompida por nenhum navio ou frota de navios de guerra.
A julgar por eventos recentes, as chances de conseguir 'separar' com sucesso Europa e EUA estão aumentando, e se tudo correr bem, nesse caso os novos tempos encontrarão o 'hegemon' norte-americano distanciado do maior continente do planeta. É cenário que valoriza a tentativa.*****
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