terça-feira, 19 de julho de 2016

Qual a verdadeira missão de Fethullah Gülen?

06.02.2014, Osman Softic, Open Democracy


Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu


Em que medida, conscientemente ou não, o líder do "Hizmet " – movimento mundial religioso, social e político – é parte de um mecanismo que visa a desestabilizar e talvez derrubar o governo turco de Recep Tayyip Erdoğan?

Primeiro, o primeiro-ministro turco apenas sugeriu que Fethullah Gülen e seus apoiadores e 'fiéis' estariam tentando desacreditar seu governo; depois, disse claramente [art. é de 2014 (NTs)].

Recep Tayyip Erdoğan imediatamente acusou Fethullah Gülen e seu movimento Hizmet  ("Cemat") como principais conspiradores, autores do golpe silencioso que tentou derrubar seu governo, para assim minar o importante sucesso econômico que a Turquia alcançou ao longo da década passada sob governo do Partido Justiça e Desenvolvimento [tu.AKP].

Quem é Fethullah Gülen? Qual a real missão de seu movimento? Que papel têm seus seguidores (que Erdoğan acusou de "montar um estado dentro do estado") na vida política da Turquia? Como terminará esse conflito que se arrasta há tempos, e que agora irrompeu entre o [movimento] Hizmet  (palavra que significa "obra"/"serviço", em turco) e o governo Erdoğan?

Formação da nova elite turca 

Muhammad Fethullah Gülen, um imã obscuro e controverso, nasceu em 1941 em Korucuk, pequena vila na Anatolia. Serviu como imã em Izmir até 1981, quando se retirou oficialmente da atividade de pregador. Embora não tenha qualquer credencial de formação educacional islâmica formal, é frequentemente citado no ocidente como uma das personalidades islamistas mais influentes.

Gülen admite que Said Nursi, o reformador islâmico turco, é quem mais o influenciou intelectualmente. E de Nursi Güllen recebeu forte sentimento anticomunista e a propensão ao empreendedorismo capitalista, dois traços importantes que, adiante, lhe valeram muitos amigos e muitos favores da Agência Central de Inteligência Americana, CIA.

Hakan Yavuz biógrafo de Gülen descreve-o como pensador muçulmano cujas ideias vêm carregadas de calvinismo, por causa da empenhada pregação a favor do capitalismo neoliberal. Mas, por causa da absoluta falta de transparência, da secretude e da desmesurada influência que seus seguidores têm sobre as instituições do estado na Turquia, melhor seria comparar o movimento de Güllen à Opus Dei.

Gülen até aqui já recrutou 3 milhões de seguidores na Turquia, nos EUA e no resto do mundo. Sua ideia é oferecer alfabetização em massa às classes médias baixas da Anatolia, permeada por valores morais supostos do Islã e ciência, especialmente matemática, química e física, com o objetivo de que constituam uma nova elite turca, capaz de erradicar o secularismo kemalista [regime de Kemal Ataturk, 1923-1938 (NTs)] da sociedade e das instituições do estado da Turquia, substituindo-o por valores islamistas.

Embora não houvesse ameaças ou riscos claros de que pudesse ser preso pelas autoridades turcas de então, Gülen imigrou para os EUA em 1999, sob o pretexto de um tratamento médico. Dali em diante se declarou em exílio autoimposto.

Durante 15 anos Gülen administrou seu império global de escolas secundárias, universidades, conglomerados empresariais, empresas de finanças e de mídia, membros do movimento Hizmet  na Turquia e em todo o mundo, quase que por controle remoto de sua propriedade em Saylorsburg, pequena cidade na Pennsylvania.

Depois de ter deixado a Turquia em 2000, Gülen foi julgado à revelia por conspiração contra a ordem constitucional turca, para estabelecer um estado Islâmico na Turquia. Foi absolvido. O procurador apelou, mas a absolvição foi confirmada na Corte Superior da Turquia em 2008. Gülen nunca mais voltou dos EUA para sua Turquia natal.

Líder pragmático 

Embora Gülen seja pintado no ocidente como protagonista do Islã "moderado e homem de paz que promoveria o diálogo inter-religioso, seu movimento de certo modo se assemelha a uma espécie de culto religioso dominado como é pelo Hoca Efendi ("respeitado professor") como os seguidores referem-se a Gülen.

Sua interpretação do Islã, aparentemente inspirada na tradição sufi, é frequentemente sugerida como a mais aceitável e maleável do modelo islâmico, do ponto de vista que mais interessa ao ocidente. Em alguns centros acadêmicos influentes e centros políticos poderosos, o "Islã de Gülen" é apresentado como digno de louvor e admiração pelos muçulmanos no mundo árabe, em países muçulmanos da Ásia Central e por comunidades muçulmanas da diáspora pela Europa, América e Austrália.

Por tudo isso, descrever Gülen como "dissidente" não é absolutamente correto. Mais adequado seria descrevê-lo como líder pragmático de um movimento religioso que oportunistamente escolheu uma base segura de onde supervisionar a rede de escolas e negócios de multibilhões de dólares, e império global financeiro e de mídia.

Além do mais, no passado Gülen cultivou relações amistosas com os primeiros-ministros Tansu Ciller e Bulent Ecevit, o que minou ainda mais a noção de que seja 'um dissidente'. Mas Gülen jamais teve contatos próximos com líderes de partidos islâmicos na Turquia nem algum dia condenou publicamente o banimento do Partido Islâmico Refah, fundado por Necmettin Erbakan, cujo governo foi abruptamente derrubado pelo regime de Kemal Ataturk.

Dado que advogava a favor da reabilitação do Islã conservador e o expurgo do rígido secularismo das instituições do estado turco, Gülen, em eleições passadas, orientou seus seguidores a votarem em candidatos do partido AKP, porque os apoiadores do movimento Hizmet  e do AKP são muçulmanos de classes baixas e médias na Anatolia, marginalizados durante décadas pelas elites turcas seculares. Além disso, o movimento Hizmet  de Güllen e o AKP favorecem o capitalismo liberal como o modelo mais efetivo para o desenvolvimento econômico.

Ao longo da última década, o governo de Erdoğan venceu consecutivas eleições, com maioria absoluta. Esses resultados foram alcançados graças, em grande medida, ao movimento Hizmet. E por sua vez, o movimento Hizmet  de Güllen gozou de plena liberdade para manobrar, e suas atividades floresceram nos governos do AKP.

Apesar de haver quem fale de certa interdependência e complementaridade entre o movimento Hizmet de Güllen e o AKPbaseadas em interesses e valores comuns, permanece o fato de que de que também sempre houve diferenças políticas e ideológicas reais entre eles. Essas diferenças cresceram com o tempo, até se converterem no conflito declarado que irrompeu recentemente [2014].

Com simpatizantes do Hizmet habilmente infiltrados em algumas das mais sensíveis estruturas do Estado, como Polícia, Inteligência, o Judiciário e a Procuradoria Pública, é muito plausível que esse movimento possa ter servido como mecanismo conveniente para a desestabilização e até para uma eventual derrubada do governo de Erdoğan, por atores internacionais muito mais poderosos e sinistros.

O próprio Gülen tornou-se peão útil na tentativa para desestabilizar a Turquia, precisamente quando o país alcançara sucesso econômico impressionante e fizera amplas reformas orientadas para uma real democratização e emancipação cultural. Dentre elas, movimentos promissores na direção de resolver os padecimentos da minoria curda, num momento em que a Turquia também tomava importantes decisões sobre uma política externa independente, para se libertar da tutela pelos EUA e andar na direção de começar a atuar como força considerável, respeitável e movida por princípios, além de independente – um dos mais novos fenômenos nas relações internacionais contemporâneas.

EUA desapontados 

Erdoğan acerta quando diz que a rápida ascensão da Turquia incomodou seus inimigos. Daí que é provável que tenham fundamento as acusações do governo contra Gülen e seus apoiadores, de que estariam auxiliando inimigos da Turquia.

No mínimo, é preciso reconhecer que as acusações que Erdoğan fez contra o movimento Hizmet não se resumem a mera teoria conspiracional, como alguns veículos da mídia-empresa turca e internacional querem fazer crer aos EUA.

Michael Koplow, diretor de programa no Israel Institute em Washington diz que nenhum país pode substituir, para os EUA, o papel estratégico que tem a Turquia. Mas os EUA preocupam-se, porque não é certo que a liderança turca seja confiável e se a Turquia voltará algum dia a ser aliada confiável. Há dúvidas em Washington sobre se permaneceria intacto o status da Turquia como país aliado.

O governo dos EUA não esconde o desagrado com o rumo da política externa turca no passado recente. Os EUA acusaram o governo do AKP de estar promovendo seus próprios interesses de curto prazo, à custa dos objetivos de longo-prazo dos EUA na região. Os EUA referiam-se à política da Turquia para Egito e Síria, especialmente o apoio incondicional à oposição síria e as piores relações bilaterais de todos os tempos, com Israel.

O que o governo dos EUA não perdoa à Turquia é a recente decisão de assinar contratos para pesquisa de um sistema de defesa antimísseis com a China, rival dos EUA, não com algum país integrante da OTAN.

Para os EUA, a política turca seria imatura e egoísta. Claro que a Turquia tem pleno direito de fazer o que considere melhor, mas, como Koplow disse recentemente em entrevista publicada por Strategic Outlookthink-tank turco de pesquisas em Konya, o governo Obama não pode simplesmente ignorar esse tipo de movimento.

Os EUA não aceitam a independência da política externa turca, temendo que ela venha a pôr em risco seus objetivos estratégicos de longo prazo e a hegemonia global norte-americana. Também criticaram a Turquia; a Turquia, em reação,serviu-se daquelas ameaças veladas para expulsar o embaixador dos EUA em Ankara. Tudo isso gerou confusão e graves preocupações em Washington, sobre o que Erdoğan pensa e planeja e sobre se é necessário para os EUA alterar o modo de abordar aquele país.

É perfeitamente possível que os EUA tentem extrair vantagem de estruturas paralelas às do estado constituídas por apoiadores de Gülen com vistas a desestabilizar o governo do AKP e talvez forçar uma mudança na liderança do regime turco, de modo a que um novo líder do AKP seja parceiro mais maleável.

A missão de Gülen

Em 1953, os EUA ajudaram clandestinamente a derrubar o governo nacionalista de Mossadiq no Irã; participaram da derrubada de Sukarno na Indonésia em 1965, e do presidente Salvador Allende no Chile em 1973. Em lugar desses líderes populares, os EUA implantaram nesses países alguns dos ditadores mais cruéis do século 20: Xá Reza Pahlavi, Suharto e Pinochet.

Em conexão com essa analogia, vale a pena mencionar também outro conjunto de acusações que também circularam, de que algumas das escolas de Gülen na Ásia Central serviram, no passado, como cobertura conveniente para 130 agentes operadores da CIA no Uzbequistão e Quirguistão, que espionavam para os EUA, ao mesmo tempo em que trabalhavam como professores de inglês.

Em suas memórias, Osman Nuri Gundes, ex-chefe do ramo Istanbul do Serviço de Inteligência Turco (MIT) até fala de "Pontes de Amizade", que seria o codinome daquelas operações. Esse caso especial de uso abusivo, pela CIA, das escolas de Gülen, foi mais tarde elaborado por Cibel Edmonds em suas memórias: Classified Woman: Sibel Edmonds Story. Ex-tradutora do FBI, ela adiante seria uma das mais bem conhecidas 'vazadoras' norte-americanas de informação, no domínio da segurança nacional.

Edmonds disse que o elo chave entre Fethullah Gülen e seu movimento, com a CIA, era Graham Fuller, destacado analista de inteligência na RAND Corporation, ex-chefe do escritório da CIA em Kabul e vice-presidente do Conselho Nacional de Inteligência.

Embora tenha desmentido as acusações contra Gülen e a versão de que suas escolas abrigariam agentes da CIA, Fuller admitiu que ofereceu referências a Gülen em 2006, quando autoridades da imigração dos EUA planejavam expulsá-lo. Fuller escreveu cartas ao FBI e ao Departamento de Segurança Nacional dos EUA, em defesa de Gülen. Fuller escreveu que acreditava que Gülen não era ameaça aos EUA. Graças a esse apoio, Gülen pôde permanecer nos EUA. Outro que também escreveu carta semelhante em defesa de Gülen foi Morton Abramowitz, ex-agente da CIA na Turquia e que adiante serviu como embaixador dos EUA naquele país.

Por mais que Gülen diga e insista que a missão de seu movimento não era política, mas exclusivamente educacional, os eventos recentes [2014] na Turquia mostram que seu objetivo sempre foi estabelecer controle político sobre as instituições do estado turco, mas sem a transparência inevitável no processo de formar um partido político e bem longe da política eleitoral. Güllen organizou-se para infiltrar-se nas estruturas do estado.

Alguma indicação de suas intenções já se via no apelo de Gülen aos seguidores, ainda no final dos anos 1990s:

"Convidamos nossos amigos que ocupam altos cargos no legislativo do governo e em instituições do estado para que se capacitem nas habilidades exigidas para a administração, de modo que, quando chegar o momento, possam reformar o estado turco e torná-lo mais frutífero em todos os níveis, em nome do Islã. Temos de ser pacientes e aguardar pelo momento e pela oportunidade cerca. Não devemos fazer isso cedo demais."

Esse tipo de infiltração prejudicou a reputação da Turquia no mundo, como se viu pela prisão de muitos inocentes, ao que tudo indica presos por apoiadores de Gülen infiltrados na Polícia, na Procuradoria do Estado e no Judiciário. Uma organização turca para defesa da liberdade de imprensa informa que os jornalistas Ahmet Sik e Nedim Sener foram presos em 2011 exclusivamente por serem jornalistas, não por terem algum envolvimento em atividades subversivas ou elos com elementos ultranacionalistas, os crimes que lhes foram atribuídos.

Em seu livro Iman's Army, Ahmet Sik não apenas oferece provas da interferência de Fethullah Gülen no trabalho da Polícia e do Judiciário turcos, mas também revela algumas das atividades ocultas de Gülen que visam a ajudar seus apoiadores a firmar-se em postos de poder e influência política na Turquia. Há indicações de que 95% dos funcionários da Polícia turca são simpatizantes do movimento Hizmet. Mas alguns especialistas refutam as acusações de infiltração. O professor Mucahit Bilici, da University of New York, diz que Gülen é legitimamente apoiado e seguido por cidadãos turcos, e que o movimento Hizmet não é organização secreta.

Diferente de Erdoğan, que no passado moveu ataques sérios contra políticas de Israel, Gülen sempre cultivou relações íntimas com Israel e membros do lobby judeu nos EUA, criticando severamente a flotilha Mavi Marmara quando seus ativistas tentaram entregar ajuda ao povo sitiado em Gaza. Gülen alertou que ações daquele tipo não deveriam acontecer sem que, antes, se obtivesse autorização das autoridades israelenses.

O sucesso e a habilidade de Erdoğan para fazer a Turquia se fortalecer e prosperar, além da decisão de promover política exterior autêntica e independente, parecem já estar [2014] causando graves preocupações em Washington e Israel. Não seria portanto surpresa se a infraestrutura do movimento Hizmet de Güllen vier a ser identificada como mecanismo adequado para promover mudança de fundo na política turca. O "império do medo" de Gülen, como disse Erdoğan recentemente, pode bem ter sido escolhido, pela mais hegemônica das potências globais, para impor na Turquia algum modelo de secularismo reciclado.*****






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