domingo, 17 de julho de 2016

Narrativa liberal ocidental, bloco atlanticista e russofobia

15/7/2016, J. Trefz, SouthFront  (ed. Desislava Tzoneva)


Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu



Hoje, muitos, ou pode-se dizer, a maioria dos leste-europeus acreditam na narrativa liberal ocidental, incansavelmente promovida pelo bloco atlanticista (que quer 'integrar-se' com o 'ocidente', a saber, com os EUA[1]). É narrativa caracterizada pela ideia de progresso ininterrupto, movido por 'valores', na direção de liberdade (liberal) cada vez maior, por um lado; e alimentada, por outro lado, por crescente russofobia – com a Rússia apresentada como antítese suposta autoevidente do que seria o progresso liberal. Narrativas, ideologias e ethos repousam na congruência, que tem de ser implícita, invisível, sem emendas, com os fatos; e num sólido alicerce econômico. Quando algum desses fundamentos começa a rachar, toda a correspondente visão de mundo também começa a ruir. Que características tem o liberalismo ocidental e quais suas ramificações para a Europa Oriental?

Na narrativa ocidental liberal, os EUA e seus aliados e vassalos mais próximos são pintados como faróis da liberdade, do progresso e da democracia; e a Rússia, como diametralmente oposta a tudo isso, como fonte de todo o atraso e de todo o mal, na encenação de imaculada moralidade dos Atlanticistas. As falhas, os fracassos e os crimes, dos quais os próprios Atlanticistas são responsáveis, são projetados sobre a Rússia: por exemplo, a incansável (e ilegal) intromissão em assuntos internos de outros países. As falhas da Rússia são amplificadas, e falhas iguais ou até piores dos próprios Atlanticistas são varridas para baixo do tapete. E apagam-se para sempre: Guantánamo, Abu Ghraib, 'entregas especiais' de prisioneiros para serem torturados fora dos EUA, revelações de Snowden e Assange, violência policial contra cidadãos, preconceitos e perseguição por motivos de religião ou etnia, julgamentos e execuções sumárias, oligopólios no campo da informação e comunicação, dívidas impagáveis que pesam sobre os jovens recém-formados, apoio ao apartheid israelense, apoio à disseminação global, pelos sauditas, do wahhabismo – para nem falar de apoio a ditaduras como as de Pinochet, Marcos e Suharto. 

Reza a narrativa liberal que os EUA e seu bloco Atlanticista creem, de todo o coração, em direitos humanos, liberdade e democracia. E todos os erros deles e todos os crimes deles, são 'purgados' pelo crime 'dos russos', que detiveram por algumas horas as militantes do grupo Bucetas em Tumulto (Pussy Riot).

A narrativa dos estados-vítimas do Leste Europeu, escapados da Rússia totalitária para os braços do bloco atlanticista movido a valores democráticos, é longa e bem conhecida. Mas, ante o Brexit, a ascensão de Órban e do Partido Lei e Justiça da Polônia, e o fracasso do golpe de Maidan em Kiev orquestrado pelos Atlanticistas ucranianos, que só gerou mais e mais declínio, toda aquela narrativa começa a rachar, numa só e vasta confusão de dissonância cognitiva. E já se veem as fissuras em pelo menos um dos pilares da narrativa de autodefinição e autoafirmação liberal: a congruência com os fatos em campo.

Verdade é que as fissuras não são novas: sempre estiveram lá. O liberalismo clássico foi a ideologia da escravização de negros e índios, do genocídio de povos indígenas em toda a América e das condições de miséria Dickensianas das massas trabalhadoras. 

Os únicos princípios que esses liberais sempre preservaram são os que protegem a liberdade do proprietário para dispor de sua propriedade (inclusive os escravos, "bens semoventes"), sem que nenhum monarca pudesse impor-lhes qualquer restrição: é o direito à ampla, geral e irrestrita acumulação de capital. O voto universal, leis de proteção aos direitos civis e sociais, como educação para todos, assistência à saúde e horário limitado de trabalho são efeito, completamente, da luta dos oprimidos e perseguidos, que se organizam, lutam e muitas vezes morrem na luta de oposição ao liberalismo nu e cru. 

Vez ou outra, regimes liberais, mesmo que sob governo de facção conservadora do liberalismo, instituíram reformas preventivas, para evitar levantes violentos de grupos oprimidos e bem organizados.

No início do século 20, a sociedade industrial ainda engatinhava, e ainda não se conhecia bem o meio mais efetivo de administrá-la – e pode-se até dizer que pouco mudou até hoje. Com os governos liberais obcecados pela mais brutal exploração colonial, a grande depressão, a persistência de condições Dickensianas de miséria e a Grande Guerra inter-imperial (que só passou a ser chamada 1ª Guerra Mundial depois que houve a 2ª Guerra Mundial; antes, era "Grande Guerra"), é realmente difícil decidir qual, entre liberalismo, fascismo ou marxismo-leninismo, teria mais a oferecer, numa lista de custo-benefício. 

Mas uma coisa é clara: graças aos sistemas de exploração mantidos desde o colonialismo (até hoje!) e à enorme riqueza do Novo Mundo, o liberalismo impôs-se contra seus oponentes, em fundos e em recursos. Os EUA, especialmente, beneficiaram-se por ser país temperado, continental, a ser explorado, virgem, com segurança de Estado impecável, cercado de oceanos e vizinhos fracos. Para nem falar aqui da riqueza que os EUA extraíram da exploração neocolonial mediante, por exemplo, a Doutrina Monroe. Graças a tudo isso, os EUA sempre contaram com muito maior quantidade de recursos que a vasta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). E usaram esses recursos para intervir na 2ª Guerra Mundial, depois que ficou suficientemente claro que a aniquilação da URSS pelos exércitos de Hitler, que os EUA tanto esperavam que acontecesse, não aconteceria; e para estabelecer um império liberal na Europa. 

Estabelecer esse império envolveu gastar quantidade vastíssima de dinheiro no Plano Marshall de Ajuda, mas, também, criar instituições, como Bretton Woods, o Banco Internacional de Compensações, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, e todas as instituições que adiante viriam a ser a União Europeia (UE) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). 

Essas instituições, vastas transferências de fundos coloniais e do Novo Mundo (especialmente via o Plano Marshall de Ajuda), petróleo barato e estrutura específica da população permitiram que se estabelecessem generosos estados de bem-estar, necessário para evitar agitação social e o avanço do comunismo. Pela narrativa, instituições liberais sólidas produzem riqueza. Em vez disso, a verdade é que as instituições liberais é que são baseadas em riqueza adquirida numa longa história de capturar mercados e recursos mediante brutal colonialismo , escravidão e genocídio. 

Sociedades ricas seriam capazes de dividir essas vastas riquezas de modos pelos quais as várias elites e as massas ficariam satisfeitas com os pedaços que lhes caberiam respectivamente do bolo, criando um consenso social estável e níveis relativamente baixos de conflito e corrupção. Elas também permitiriam o desenvolvimento de métodos de controle social mais complexos, mais nuançados e mais indivisíveis, particularmente a distração, pelos veículos de comunicação de massa, e o consumismo. A grande vantagem na riqueza também permitiu que a ordem liberal tirasse de jogo o 'Segundo Mundo", relativamente mais pobre em recursos.

Apesar de uma elite que se apropriara, para si mesma, de relativamente pouca riqueza, a URSS não tinha recursos suficientes para prover simultaneamente, com facilidade, um consenso social estável, garantir a segurança do Estado e desenhar um regime nuançado e invisível de controle social. Com o fim da URSS, e Rússia tornou-se mais flexível em sua habilidade para abordar tais questões, mas permanece a desvantagem relativa no quesito recursos.

Contudo, mesmo ignorando a retórica do progressos liberal movido a valores, hoje, não é lógico que populações do leste europeu apoiem uma virada na direção do bloco atlanticista liberal, baseada só em haver riqueza disponível. O financiamento pela UE proveu vários estados do leste da Europa com muitas vantagens institucionais e infraestruturais. Mas a submissão ao bloco atlanticista, conduzida, no fundo, pelo velho impulso liberal a favor de explorar a propriedade e acumular capitais, tem seus próprios perigos. Absolutamente a viagem não foi sossegada, para o rico bloco liberal. 

Para manter o crescimento econômico depois da guerra e evitar o perigo real de uma repetição da Grande Depressão, ferrovias e trens foram desmontados e a produção do tempo de guerra foi encaminhada para a indústria automobilística. Desenvolveu-se o consumismo sob várias formas – marketing para tudo, na vida; necessidades artificiais de consumo; obsolescência planejada, técnicas refinadas de propaganda e anúncios, e, sobretudo, o indispensável crédito para que o consumidor... consumisse. Para poder arcar com o bem-estar social e o consumismo, os níveis de endividamento privado e soberano aumentaram sem parar, particularmente depois da crise do petróleo dos anos 70s. 

Entrementes, grande parte da fonte de riqueza real – a produção de mercadorias reais – foi transferida da Europa e dos EUA, para países sem sindicatos organizados de trabalhadores ou leis de proteção ao meio ambiente. Assim, a elite liberal conseguiu negar ao trabalho organizado salários mais altos e melhores condições de trabalho, e só ofereceu aos trabalhadores produtos mais baratos e renda estagnada. Em vez da produção, as dívidas, privada e soberana, tornaram-se alavancas chave do crescimento em sociedades capitalistas avançadas, o que levou inevitavelmente à crise financeira de 2008. A ferramenta usada para dar jeito na crise – imprimir dinheiro em escala massiva – só foi possível porque Nixon, em 1971, abandonou o padrão ouro. Mas nem a impressão massiva de papel-dinheiro produziu qualquer efeito significativo. Há portanto, combinadas com a exaustão global de recursos de hidrocarbonos facilmente acessíveis, todas as razões para crer que se aproxima outra crise, maior que a de 2008. 

Entrementes, o fim da Guerra Fria trouxe o colapso da esquerda organizada no ocidente, fundamente maculada como estava, o que removeu qualquer ameaça de derrubada violenta da ordem liberal, por grupos sociais explorados e oprimidos. 

Assim se abriu o caminho para o desmonte de tudo que os movimentos sociais haviam obtido, e para um retorno gradual às condições Dickensianas do liberalismo clássico, a golpes de muita 'austeridade' [é ARROCHO] e neoliberalismo. E afinal começaram a aparecer fissuras num outro dos pilares da narrativa de autodefinição liberal: a base econômica.

A elite liberal Atlanticista insiste em ter controle completo e irrestrito sobre os mercados e todos os recursos que foram da União Soviética, pintando toda e qualquer oposição a essa aspiração como agressão antiliberal ultrajante. A OTAN vive de provocar a Rússia, forçando-a a ações defensivas, que imediatamente o aparelho 'jornalístico' ocidental converte em ação de agressão. O ataque de Saakashvili contra a Ossétia do Sul levou a Rússia a ter de derrotar completamente o pequeno país, mas, em vez de ocupar o país, a Rússia escolheu retirar-se das duas repúblicas. 

O ex-secretário de Estado dos EUA, Zbigniew Brzezinski, tinha já preparado planos para criar situação tal na Ucrânia, que a única reação possível para a Rússia levaria a perda considerável. O mundo conhece a gravação em que se ouve Victoria Nuland nomeando Yatseniuk ao cargo de primeiro-ministro da Ucrânia. Não há nem sombra de dúvida quanto ao envolvimento profundo dos Atlanticistas no Maidan. Apesar de Yanukovich ter anunciado eleições na Ucrânia, que a oposição com certeza teria vencido, os autores de extrema-direita, que celebram o genocídio de Volyn, organizaram o tiroteio em plena praça, contra os que protestavam; esse ataque foi atribuído às autoridades, o que abriu caminho para um golpe de Estado, absolutamente inconstitucional, claro. Dois dias adiante, em flagrante violação da lei internacional, as regiões perderam o direito de usar as línguas nativas, nas instituições de governo e na educação. 

O Donbass, falante de russo, levantou-se espontaneamente na defesa de seus direitos. O conflito é extremamente complexo, com elementos de guerra civil entre o leste e o oeste da Ucrânia, que não partilham nem poderiam partilhar a mesma narrativa fundadora; conflito entre elites dentro da Ucrânia e entre facções na Ucrânia e na Rússia; e um forte elemento de geopolítica, descrito na agressiva Doutrina Wolfowitz dos EUA. Esses pretextos, acrescidos de uma referência absolutamente sem sentido ao programa de mísseis do Irã, são usados para fazer escalar agressivamente as forças e sistemas de mísseis da OTAN na direção das fronteiras da Rússia, o que só aumenta o risco de acidente, erro de cálculo ou ação para intencionalmente iniciar um conflito. 

Não há razão pela qual estadistas ocidentais mentalmente sãos, maduros e independentes não possam manter relações amistosas com a Rússia, como faz a Finlândia, desde a guerra. Mas os EUA, mediante ativa manipulação das elites e a promoção de uma ideologia liberal capengante, cuidam para que os leste-europeus mantenham-se o mais russofóbicos possível, contra os próprios interesses deles.

O leste da Europa está preso numa disputa entre duas eventualidades. A primeira é que continuem a deixar-se intoxicar pela narrativa liberal, em troca de continuar a se beneficiar do dinheiro, do prestígio que advém do consenso social e de instituições relativamente firmes, que a vasta riqueza do bloco Atlanticista vangloria-se de poder assegurar. Simultaneamente, têm de participar das provocações da OTAN, até que brote alguma oportunidade para que a OTAN assalte diretamente os mercados da Rússia e os recursos dos russos. Assim se terá inventado uma guerra, na qual o Leste Europeu estará na linha de frente. E também empurrará na direção de um mundo unipolar, sob a hegemonia triunfante de uma elite movida exclusivamente pela ânsia de acumular capital; ou levará ao inverno nuclear globalizado. 

A outra eventualidade é que sobrevenha uma grande crise no bloco capitalista saturado de dívidas e que vive de imprimir papel-dinheiro, antes de esse bloco ter meios e ocasião para subjugar a Rússia – a qual, por sua vez, só faz declarar que deseja cooperar com o ocidente, desde, é claro, que o ocidente retire as tropas da OTAN de onde estão hoje e ofereça garantias de segurança e soberania aos russos. Dado que os recursos não renováveis, especialmente o petróleo e derivados, já foram superexplorados, e que a degradação do meio ambiente vital do planeta já alcança estágios avançados, é mínima a possibilidade de que o mundo se recupere da crise que assim se gerará. 

Esse processo só levará a uma degradação crônica das instituições liberais e da fantasia de que marchariam movidas por valores, rumo a liberdade e progresso sempre maiores. 

A cada momento será mais difícil apresentar o bloco outrora liberal como institucionalmente superior aos estados 'não liberais' como a Rússia. Diferentes facções das elites ocidentais entrarão em confronto direto por recursos cada vez mais limitados, o que levará ao conflito, à ineficiência e à corrupção que hoje já se veem em todos os países que nunca se beneficiaram da exploração colonial e da exploração do novo mundo. 

Isso implica que já terá ruído também a terceira coluna que sustentava a narrativa de autodefinição dos liberais: a noção de que aquela narrativa permaneceria para sempre invisível, que jamais seria criticada, que sobreviveria eternamente, como se fosse um fato da natureza. Sem a proteção dessa narrativa ideológica, que terá sido desmascarada e já não servirá de 'garantia' para coisa alguma, os leste-europeus perderão afinal a certeza de que a aliança do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, seria garantia de alguma vantagem para eles, no jogo geopolítico.*****



[1] Sobre "atlanticistas" na Rússia contemporânea, ver 16/10/2013, "O longo (20 anos!) pas de deux de Rússia e EUA está chegando ao fim?", Redecastorphoto: "(...) o primeiro grupo viria a ser o que chamo de "Soberanistas Eurasianos"; e os segundos converter-se-iam no que chamo de "Integracionistas Atlanticistas". Podemos chamá-los de "turma de Putin" e "turma de Medvedev" [NTs]. 

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