quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Irã olha para o Oriente, em tempos de golpes e dificuldades que lhe vêm dos EUA, por Pepe Escobar

13/2/2019, Pepe Escobar, Asia Times


Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga



No 40º aniversário da Revolução Islâmica, 6ª-feira passada, o Supremo Líder Aiatolá Khamenei esforçou-se para expor a posição geopolítica do Irã em termos simples: Temos boas relações com todas as nações do mundo, não queremos romper relações com nenhuma nação europeia’, e explicou o slogan ‘Morte à América’.

O Aiatolá explicou que ‘Morte à América’ “significa morte a Trump, John Bolton e Mike Pompeo. Significa morte aos que governam os EUA. Não temos nenhum tipo de problema com o povo dos EUA.”

O slogan pois é realmente uma metáfora – para dizer morte à política externa dos EUA, como tem sido conduzida por grande parte da últimas quatro décadas.

Claro que nisso se inclui o desmonte, pelo governo Trump, do acordo nuclear com o Irã, conhecido como “Plano Amplo de Ação Conjunta” [ing. Joint Comprehensive Plan Of Action (JCPOA).

Em contundente crítica ao governo centrista do presidente Hassan Rouhani e do Ministro de Relações Exteriores Muhammad Javad Zarif – que negociaram o JCPOA com o governo Obama, e a Rússia, China, França, Reino Unido e Alemanha – Khamenei disse que jamais teria assinado tal ‘acordo’. A desconfiança legendária de Khamenei, que jamais confiou nos EUA, parece hoje mais do que justificada.


Sistema de pagamento 

Para os europeus que assinaram o ‘acordo’ JCPOA, só resta tentar catar os cacos. Entra em cena o Instex – Instrument in Support of Trade Exchanges, mecanismo apoiado pela União Europeia, que mantém sede em Paris e é dirigido por um banqueiro alemão; em teoria, o Instex permite que bancos e empresas europeias continuem a comerciar com o Irã sem serem multados, extraterritorialmente, pelo Departamento de Justiça dos EUA, nem serem totalmente excluídos do mercado norte-americano.

O ministro de Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, falou de “importante gesto geopolítico”. Mas talvez um “gesto” não baste, especialmente porque, de início, só cobre bens de ajuda humanitária vendidos ao Irã, como medicamentos, alimentos e equipamento médico.

Teerã paga o Instex, e o Instex reembolsa as empresas de alimentos e medicamentos envolvidas. Além do mais, empresas europeias de pequeno e médio porte podem também usar o Instex para negociar com o Irã, sem serem punidas pelos EUA, com sanções.

No longo prazo, o fator crucialmente importante relacionado ao Instex é que o mecanismo salta por cima do EUA-dólar. Por isso, estará sob dedicado escrutínio em todo o Sul Global. No curto prazo, o Instex não substituirá o sistema SWIFT de compensações internacionais, porque a capitalização é limitada a apenas $1 bilhão. A questão é se outras economias peso-pesadas, como Rússia, China e Turquia, passarão a usar o mecanismo Instex para deixar de lado o EUA-dólar e neutralizar as sanções, negociando outros muitos itens que nada tenham a ver com “bens da ajuda humanitária”.

O mecanismo Instex, mesmo que seja resposta apenas embrionária, mostra que as capitais europeias estão irritadas com o unilateralismo do governo Trump. Diplomatas disseram, off the record e também bem claramente pela mídia, que nada impedirá os europeus de negociar com o Irã, de comprar energia e de investir no mercado iraniano, e de, nesse processo, deixar de fora o EUA-dólar.

Assim há boa chance de o presidente Rouhani encontrar algum espaço para respirar. As mais recentes pesquisas internas revelam que, 40 anos depois da Revolução Islâmica, mais de 70% dos iranianos de todas as classes absolutamente não confiam em qualquer tipo de negociação que envolva o governo dos EUA. E isso inclusive inclui número crescentes de jovens das gerações para as quais a Revolução Islâmica é apenas evento remotamente passado.

Talvez não seja exatamente o sentimento em Teerângeles, Califórnia – capital da diáspora iraniana, de mais de meio milhão de pessoas em todo o mundo, a maioria das quais de classe média alta. Mas, sim, reflete a pulsação do país real.

PayMon, a cripto-alternativa 

Sempre e sempre, o governo Rouhani tem de lidar com uma contradição insuperável. O orgulho nacional, inflado agora que o Irã reassume o papel de superpotência do sudoeste asiático, sempre esteve minado por agudo sofrimento social, com incontáveis famílias sobrevivendo com menos de $200 por mês, com inflação rampante e padecendo os efeitos da ininterrupta queda no valor do rial, fossem quais fossem os fatores de bem-estar dos quais o governo falava sempre.

Jovem iraniana ergue pôster do Aiatolá Khomeini, fundador da República Islâmica, na comemoração dos 40 anos de sua volta do exílio em Paris. No mausoléu de Khomeini em Teerã, dia 1º/2/2019. Foto: AFP

Já houve um revide, relacionado ao mecanismo Instex. O Irá foi informado de que tem de se integrar à Força-Tarefa de Ação Financeira [ing. Financial Action Task Force (FATF)], um corpo global que visa a combater a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, e que tem de desistir de seu programa de mísseis – item que o Irã definiu como não negociável. A autoridade máxima do Judiciário do Irã, o Aiatolá Sadeq Amoli Larijani, descartou as duas condições que os europeus apresentaram, declarando-as “humilhantes”.

E no front europeu não há ainda qualquer evidência de que empresas menores acreditem que o sistema Instex de pagamentos as imunizará contra a ação de retaliação pelos EUA.

Mas os iranianos estão abrindo novas fontes criativas. Quatro bancos – Bank Melli, Bank Mellat, Parsian Bank e Bank Pasargad – desenvolveram uma criptomoeda com lastro em ouro, denominada PayMon, e as negociações já estão avançadas com os europeus, bem como com Rússia, Suíça e África do Sul, para expandir os negócios em PayMon. Funcionários do governo iraniano não têm dúvidas de que oblockchain [literalmente: “encadeamento de blocos”; é a tecnologia que está por trás das bitcoins (NTs, com informações de Explicando a cadeia de blocos)] será crucial para estimular a economia nacional.

Os movimentos do Irã repetem o que fez a Venezuela ao lançar sua própria criptomoeda com lastro em petróleo, o petro, em outubro passado. Mas não demora para que uma lei “Blocking Iran Illicit Finance Act entre em surto e frenesi, no Congresso dos EUA.

Entrementes, Rússia e Irã já deixaram de lado o EUA-dólar no comércio bilateral, e só usam rublos e rial, e “só em casos de urgente necessidade, o euro, se não houver nenhuma alternativa” – nas palavras do embaixador da Rússia no Irã, Levan Dzhagaryan.

China, Rússia, Irã e Turquia – os quatro vetores chaves da integração da Eurásia hoje em curso – então investindo em vias para deixar de lado o EUA-dólar no comércio, por seja qual for o mecanismo necessário. A União Econômica Eurasiana (UEE) também trabalha na criação de um sistema comum para “promover a soberania econômica”, como definida pelo presidente Putin. Já tem firmados acordos de livre comércio com grande número de parceiros, incluindo China e Irã.

Chamada para a OTAN árabe

Eis o pano de fundo sobre o qual se desenrola a convocação para o que, na essência, é uma conferência anti-Irã convocada pelo governo Trump em Varsóvia, nessa 4ª-feira.

Ninguém que realmente faça alguma diferença na Europa deseja ver-se publicamente conectado à demonização do Irã. Federica Mogherini, ministra de Relações Exteriores da União Europeia, não comparecerá. Empresas que alcançam toda a União Europeia dizem cada vez mais claramente aos seus ditos frágeis líderes políticos que o caminho a seguir é o da Eurásia Expandida – de Lisboa a Vladivostok, de Murmansk a Mumbai, passando por Teerã entre uma ponta e outra, e tudo sempre conectado à Iniciativa Cinturão e Estrada puxada pela China.

Exceção é a Polônia. Governada por nacionalistas ferozes, o país anseia por receber uma base militar dos EUA, que o presidente Andrzej Duda quer batizar como “Forte Trump”.

Incapaz de obrigar França, Reino Unido, Alemanha e Itália a absolutamente não negociar com o Irã, só restam a Washington os governantes do Golfo Persa e Israel, numa mesma sala, fazendo o que possam para criar uma mal definida OTAN árabe anti-Irã.

Com certeza só obterão dentro do Irã número ainda maior de “Principistas” de linha cada vez mais dura, que hoje fazem lobby para trazer de volta a estratégia do ex-presidente Ahmadinejad, de “olhar para o Oriente”.

O Irã já está olhando para o Oriente – considerando seus principais clientes asiáticos compradores de energia, e os íntimos laços com a Iniciativa Cinturão e Estrada e a União Econômica Eurasiana. Hoje, a equipe de Rouhani sabe que, em termos de realpolitik, absolutamente não podem confiar nos EUA; e que a União Europeia é parceira imensamente problemática. O próximo grande passo será o Irã tornar-se membro pleno da Organização de Cooperação de Xangai. A China quer. A Rússia quer.

A Venezuela parece estar sendo sob ataque de golpe para mudança de regime essencialmente porque tenta deixar o EUA-dólar fora do circuito de seus negócios. Não é problema grave para o Irã, o qual, já há décadas, é alvo preferencial de golpes para mudança de regime.*******

Nenhum comentário: